O PERDÃO DE JESUS
“E
perdoa-nos as nossas dívidas,
tal como nós
perdoamos aos nossos devedores;
e não nos leves
para sermos postos à prova,
mas livra-nos do iníquo.” (1) (Mt 6: 13-15)
“E Jesus, vendo a fé deles, diz ao paralítico: ’Filho, os teus pecados
estão perdoados’.” (2)
(Mc 2: 5)
“Nem
eu te condeno. Vai. A partir de agora não voltes nunca mais a errar.” (1) (Jo 8:11)
Os espiritas vivem
demasiado ocupados com a fé raciocinada. Tudo tem uma explicação, científica,
já se vê, e só ela tem o domínio do conhecimento de tudo quanto nos acontece.
Sofrer, significa, portanto, ignorar a culpa, desconhecer por completo a raiz
de todas as coisas. Quando esta é revelada pela razão, tudo fica mais fácil. Se
descobrirmos, por exemplo, que fomos nós quem escolheu a tortuosidade do nosso
próprio caminho, então mais fácil ainda, porque não temos de que nos queixar. Dito
de outro modo, explicar significa anular, ou pelo menos aliviar
consideravelmente o sofrimento. Será?
Diz-se habitualmente que nada acontece por acaso. Mas, como
aceitar a culpa de um facto desconhecido? Como justificar que o presente é
totalmente o rosto desse passado mais ou menos remoto? Pode ser verdade, mas
também pode não o ser. É arriscado generalizar e conferir à razão a
responsabilidade da chave-mestra que abre todas as portas da nossa vida.
Lembremos que temos três formas de explicar o real: a razão, a fé e o mito.
Conseguimos claramente separá-las? Eis o grande dilema.
Lamentavelmente, a frieza e a
inconsistência do excesso de racionalidade tem levado a que a fé seja encarada
como um pormenor técnico: acreditar significa saber que tudo se enraíza no
passado; que fomos nós que escolhemos as nossas próprias provas; que a vida é
um processo de limpeza que só o sofrimento consegue realizar; por outras
palavras, quanto mais sofrer melhor. Porém, Jesus disse: “ … Vinde até mim, todos vós que estais esgotados e carregados, e eu
dar-vos-ei descanso. Levantai o meu jugo para vós e aprendei comigo, pois sou
gentil e humilde de coração e encontrareis descanso para as vossas almas. Pois
o meu jugo é brando e o meu fardo é leve.” (1) (Mt 11: 28-30) Jesus convida-nos a
aprender com ele que é gentil e humilde de coração, se quisermos o descanso
para a alma. Dito de outro modo, o bem aprende-se, e o bem é a capacidade de
nos aliviarmos dos nossos pesados fardos. Esta explicação pela fé liberta-nos igualmente
do Jesus milagreiro e conduz-nos ao Jesus todo amor.
No entanto, os espíritas enfatizam este
propósito: “Se alguém quer vir atrás de
mim, renegue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.” (3) (Mt 16: 24), numa
espécie de viva tudo o que me dá dor de
cabeça; viva o cancro, a casa a arder e viver na rua, viva não ter nada,
viva estender a mão à caridade, viva a guerra, as torturas e tudo o mais. É
que, falar de sofrimento é fácil, cair nos exemplos concretos é que é difícil.
A nossa cruz significa carregar o fardo pesado,
mas ainda mais a luta contra nós próprios, contra as nossas vis tendências, a
começar pela defesa do sofrimento como processo catártico (gr. κᾰ́θᾰρσῐς,
kátharsis). Carregar a cruz é
carregar o que nós somos e não conseguimos combater; suportar uma natureza que
ainda é deficitária de fé, de conhecimentos, de desapego de nós próprios; a
cruz é o medo do outro porque é diferente; a cruz chama-se egoísmo, banalidade,
indiferença; a cruz é “quero lá saber!”;
é “perdão, nem vê-lo”.
Ora o cristianismo do sofredor é uma falácia que já não
faz sentido nos tempos que correm. Ninguém está interessado em saber de onde
vem o sofrimento, mas em combate-lo. Vão longe os tempos do amor e uma cabana
para ser feliz. Os conceitos de felicidade e de amor expandiram-se. É de
liberdade que o ser humano está ávido, de estabilidade familiar, laboral,
social. O ser humano nunca desejou tanto perder o medo de viver como hoje.
Temos a sensação que de um momento para o outro algo nos pode cair em cima e
esmagar-nos num ápice. É disso que se teme. Já não é a Deus que se teme, o
karma, os Espíritos, mas a vida na terra, que se tornou drasticamente complexa.
Tudo está periclitante, até o amor, que se tornou fugaz, trágico, incompreendido.
Quanto
ao sofrimento é bem visível até onde nos leva: problemas psicológicos, ruptura
da fé, ou fé doente baseada na superstição e no castigo divino, um autêntico
grilhão em vez de força libertadora; problemas sociais de toda a ordem (são cada
vez mais refugiados), miséria monetária e humana, agressividade e violência. É o
sofrimento a gerar sofrimento ainda maior, sem se saber como sair dele. As
organizações de solidariedade social sentem-se impotentes para dar resposta a
tão grandes necessidades e necessitados. A sensibilização para a prática do bem
ao próximo está na ordem do dia com o número crescente de voluntários.
Em
suma, o planeta é um palco onde se jogam duas forças contrárias: a da
destruição em massa de pessoas e bens, e a da construção e defesa da vida.
Mercê das novas tecnologias, o planeta está unido, como nunca, na grande luta
contra o sofrimento. E não será isso o gesto mais válido, a razão da nossa
existência: a luta pela felicidade? Aprendamos com o humilde e brando de
coração, e o deus do olho por olho dará lugar ao Deus todo amor e misericórdia.
(continua)
Margarida
Azevedo
______________________________________
(1)
Trad. F. Lourenço.
(2)
Trad. Dimas de Almeida.
(3)
Trad. Conferência Episcopal Portuguesa
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