terça-feira, março 01, 2011

O JUDEU JESUS




“Séculos de manipulação e ocultação esconderam a verdade de que Jesus não foi um cristão nem nasceu no meio ocidental. Jesus nasceu, viveu e morreu judeu e é impossível compreender tanto a sua pessoa como a sua doutrina sem ter em conta estes factos.” (VIDAL, C., 2011, cit. na capa da obra).

A problemática acima indiciada é defendida por estudiosos há muito tempo. Quando dizemos que Jesus é o Cristo, tradução para o grego de messias (massiah em hebraico/messiah em aramaico), referimo-nos a um judeu que veio reformular o judaísmo, sobretudo farisaico. Por exemplo, não era a componente exterior da prática dos costumes e da tradição que lhe interessava, mas o homem no seu íntimo, aquilo que o vulgo não vê mas que não escapa a Deus.
Orar na praça pública não, mas em recolhimento; usar belas vestes também não é o mais importante, limpar a casa interior torna-se fundamental para entrar no Reino de Deus. Jesus, herdeiro de uma concepção de que Deus se manifesta na História, apresenta-se como mensageiro directo de Deus que vem trazer aos judeus e gentios uma nova concepção de fé, não como um libertador político, mas como um caminho para o Reino de Deus, o que implicava uma reestruturação da vivência religiosa. A nova concepção de fé não era um caminho para uma nova ordem vinda de cima, um messias que viria libertar Israel do jugo de Roma, mas a de uma preparação de cada um para ascender ao reino de Deus.
Saliente-se que esta posição não é a de um profeta helenizado, mas a de um judeu convicto da sua missão, empenhado em arrastar consigo judeus e não judeus.
Por outro lado, se Jesus não fosse judeu não poderia entrar no Templo nem na sinagoga e dissertar sobre a Lei, sob pena de os profanar. Além disso, para ser considerado judeu, o indivíduo tinha que ser circuncidado, ser filho de mãe judia e não se ter convertido a nenhuma outra religião ao longo da vida. Ora, Jesus reuniu todas estas condições.
Os apóstolos eram judeus e os primeiros cristãos eram judeus-cristãos. Eles tiveram a missão de transmitir ao mundo aquilo que estava só dentro do Judaísmo. Esse Deus único era tanto para judeus como para gentios. Esta uma das grandes novidades.
Como se sabe, falar de Cristianismo, independentemente do Judaísmo surge muito mais tarde. Os estudiosos não são unânimes na data que os demarca, mas alguns consideram que a separação deu-se por volta do ano 90.
Além destes breves considerandos, basta ler com atenção o NT (Novo Testamento). Por exemplo, sobre a Lei tomemos em atenção a seguinte passagem de Mt 5: 17-19:

“Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não vim abrogar, mas cumprir.
Porque, em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um til se omitirá da lei, sem que tudo seja cumprido.
Qualquer, pois, que violar um destes mais pequenos mandamentos, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar, será chamado grande no reino dos céus.”

Ainda quanto à Lei, o próprio Evangelho Segundo o Espiritismo, no cap. I “Não vim Destruir a Lei”, (CEPC, 1987, p.42) faz uma abordagem a Moisés enunciando o Decálogo do Livro do Êxodo, dizendo, entre outras coisas, que “esta lei…tem um carácter divino.” (ibidem)
Mais à frente, a referida obra diz o seguinte: "Ele veio cumprir as profecias que haviam anunciado o seu advento.” (idem, p. 43).

Em Jo 4: 22 a posição de Jesus consegue ser ainda mais radical:

“Vós adorais o que não sabeis; nós adoramos o que sabemos, porque a salvação vem dos judeus.”

Quanto à metodologia, a exposição por parábolas, tão usada em Jesus, é uma herança “(…) de um género didáctico judeu conhecido como mashal (…)” (o.c., p. 45). Temos parábolas, por exemplo, em Isaías 5: 1-6, 2 Samuel 12: 1-4, entre muitos outros.

Não se confunda, como fazem grande parte dos espíritas, toda a reformulação das práticas judaicas que para Jesus são fundamentais para a entrada no reino de Deus, com o facto de se dizer, erroneamente que Jesus não era judeu, ou, o que é pior, que não teve religião.
Compreenda-se que naquele tempo os povos estavam agrupados não só em tribos e cidades com estruturas bastante complexas, mas e acima de tudo, porque identificados com práticas religiosas, o seu registo de fé girava em torno do culto aos deuses da tribo ou da cidade.
Acrescente-se ainda que não podemos comparar o judaísmo de então com as igrejas de hoje. Não era possível ser judeu por tradição, como alguém é nos tempos que correm católico por tradição, ou espírita porque fala na reencarnação como uma fórmula que tudo explica. Podia, isso sim, ser um crente segundo os parâmetros da tradição. Mas isso é outra coisa.
Do que fica exposto, não estamos em presença do abandono da Tora. Jesus enraíza os seus ensinamentos na Lei, o que significa que não vem criar novas leis, mas fazer cumprir as que já existiam. Além disso, essa posição está em consonância com a literatura rabínica.
Quanto à palavra Cristo é uma colagem a Jesus, a qual temos muita dificuldade em explicar. Por outro lado, dizer o que é o Cristianismo é um autêntico mistério nas História das Religiões.
Relativamente às questões doutrinárias, ao sermos alertados para a questão dos falsos Cristos e falsos profetas, isso significa, entre outros aspectos, que na altura havia vários messias, entre eles João Baptista, mas nenhum afirmou que tirava os pecados do mundo ou falava em nome de Deus, ou disse que ia para o Pai. Estes três pontos foram os mais importantes na colisão com os fariseus.
Entre os apóstolos e seguidores de Jesus, alguns vinham de J. Baptista, isto é, de um judaísmo austero e apocalíptico, tais como os discípulos Pedro e o seu irmão André, Tiago e João, filhos de Zebedeu (o.c., p. 43). Mas na altura nem todos encaravam Jesus como o verdadeiro messias, chegando mesmo alguns a retroceder e voltar a seguir o judaísmo como até então. Para aqueles que viam em Jesus o verdadeiro Messias, esse facto que não foi bem visto pelos fariseus e saduceus, que discordavam das suas ideias radicais, como vimos anteriormente. Outros, porém, continuavam fiéis a Baptista para quem este é que era o verdadeiro messias.
Em suma, Jesus viveu um judaísmo do segundo Templo, profundamente plural. Os próprios seguidores de Jesus não tinham sobre ele a mesma opinião, quer fosse os apóstolos ou a massa anónima de seguidores e simpatizantes.
Alguns espíritas, longe destas abordagens, para os quais são uma novidade dos novos tempos tenebrosos, apesar de tão antigas, sentem-se ameaçados na sua fé cheia de preconceitos. Na minha opinião, o pior que pode acontecer a uma organização, seja ela qual for, é mergulhar nas teias do desconhecimento e ler bibliografia só relativa à mesma. O resto do mundo fica reduzido a uma existência menor, de tal forma que acaba por ir contra os seus próprios alicerces.

Bibliografia
Citada:
KARDEC, A., O Evangelho Segundo o Espiritismo, CEPC, Lisboa, 1987.
VIDAL, César, Jesus, o judeu, A Esfera do Livros, Lisboa, 2011.

Não citada:
Josèphe, Flavius, La Guerre des Juifs, Les Éditions de Minuit, Paris, 1977.
MEIER, J.P., Un certain Juif Jésus, Les Données de l´Histoire, Les Éditions du Cerf, Paris, 2005, tomo I.
SANDERS, E.P., A Verdadeira História de Jesus, Notícias Editorial, Cruz Quebrada.

Bíblias:
Tradução do pastor João Ferreira de Almeida, Sociedade Bíblica Editores, 1996.
Tradução dos Padres Capuchinhos, Verbo Editora, 1976.
Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas, Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, 2006

Margarida Azevedo

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