domingo, janeiro 17, 2021

A EVOLUÇÃO DESTE PRIMEIRO QUARTEL DO SÉCULO XXI

A história, na qual nos movemos, é um vasto compêndio de guerras e lutas, todas impulsionadas por cobiça, inveja, interesses obscuros rumo, no dizer de alguns, ao progresso e evolução espirituais. É importante salientar que nem sempre venceram os melhores, os mais aptos, os mais astutos. Venceram os mais fortes, quer na força muscular, quer na astúcia das tácticas utilizadas, quer na retórica das palavras. As mais recentes conclusões científicas dizem-nos que, perante uma situação em que é preciso agir rapidamente, os mais dotados intelectualmente, QI maior, têm menor probabilidade de resposta satisfatória face aos que possuem um QI inferior. Talvez tenha sido essa a razão da queda desastrosa das grandes civilizações face à barbárie. Se essas civilizações se tivessem estendido até aos nossos dias certamente que o rumo da História teria, inevitavelmente, sido outro. No entanto, dos deuses humanizados aos humanos endeusados, poucos têm a coragem de dizer, temendo talvez o ridículo, que a evolução se mede pela capacidade de amar, objectivando uma paz estável, e não pelas vitórias nos campos de batalha; as benesses espirituais se conquistam por meio de um coração e de uma mente cuja inteligência é directamente proporcional ao desejo de Bem. Pelo contrário, a procura de melhores condições de vida, confundida com consumismo esbanjador, acompanha necessariamente a ambição levada ao extremo. Surge, consequentemente, o fabrico de novos produtos bem como novas apresentações dos já existentes, aliciando as pessoas a comprar o que não precisam. O importante é incutir a dependência, e com ela criar a falsa noção de necessidade. A felicidade já não significa ser feliz, ter saúde, amar e ser amado, ter fé, orar a Deus para agradecer ou pedir benesses. A felicidade, agora, resume-se a isto: acompanhar o progresso, isto é, consumir para estar integrado na sociedade e ser aceite pelo círculo em que se movimenta, encher-se de dívidas, andar a comprimidos para dormir, ansiolíticos e antidepressivos, desprender-se do valor que é a saúde e a vida, afinal vamos todos morrer, aniquilar o passado, desprender-se dos avós, dos que lhes transmitiram, ainda que reste o vazio de nada ter que substitua esses saberes, o repúdio pelo aprendizado de matérias que gravitem fora do alcance dos interesses profissionais, a despolitização atroz enfim. O que resta, então? O divã do psiquiatra, naturalmente. O sofrimento, aspecto perigoso da natureza humana (um indivíduo em sofrimento é capaz de tudo para se libertar da situação), conduz, obviamente, a excessos de toda a ordem, agravando, naturalmente, o consumismo escravizante. Ora o desejo insaciável de comprar é indício de que algo não está bem. Os apologistas do sofrimento como forma evolutiva exemplar, baseados na máxima de que não há ninguém que não sofra, fazem tábua rasa quanto ao facto incontestável de que o sofrimento aumenta a vulnerabilidade, as más tendências, nomeadamente a absolutização/relativização do tipo o céu é tudo e a terra é nada. Ora, a absolutização/relativização é um binómio patológico uma vez que torna a existência humana redutível ao esperar da morte para alcançar o bem definitivo no outro mundo. De facto, assim o mundo jamais poderá elevar-se a outras esferas, mais leves, mais filantrópicas, mais altruístas. O humano fica reduzido à sua situação de problema num cenário de condenação perpétua. Urge, portanto, entrar noutra gramática da vida, encetar outro léxico. Que esta vida é uma passagem, parece que é facto claro para toda a gente; que não há ninguém que não sofra, igualmente. Porém, a nossa existência não se movimenta no tudo ou nada, no oito ou oitenta. Há um sem fim de pormenores pelo meio, há a vontade, há o desejo, há o grito existencial que se evidencia, há o arrependimento, há uma consciência que se constrói quando algo se manifesta e desencadeia um não sei quê que nos faz recuar. Fazer da vida um caminho para a morte é um suicídio espiritual, tornar este mundo redutível um vale de lágrimas. Isso é a conversa do insensato que não consegue empenhar-se na construção de algo que valha a pena e, parco de afectos, desprovido de sentimentos, espera a morte como uma libertação. Todavia, ela liberta, efectivamente, mas aqueles que viveram para a fé, para a partilha, para a sede de caminhar com Deus, que ultrapassaram as suas falhas, os seus fracassos, que des-sofreram com o que, para muitos, seria a escola do sofrimento; a morte é libertadora quando a vida criou os moldes para que, chegados ao outro lado, este seja, efectivamente, um feliz continuar do trabalho que na terra começou; a morte é libertação para todos aqueles que, abnegadamente, se entregaram à causa da Humanidade, isto é, ao amor sem limites, ao infinito no finito dos nossos corações; a morte é libertadora para todos aqueles que se transcenderam na imanência do desejo do muito querem amar. Dizem alguns que até hoje não havia maturidade para se perceber os assuntos da espiritualidade, faltava, e falta, uma linguagem mais súbtil. Mas o que é a maturidade e que linguagem é essa? Não absolutizemos as nossas necessidades. Se não há, então trabalha-se com o que há, porque o que há já é bastante, só não o é para aquele que vive preocupado com o que não há. Nos meios espíritas está tudo explicado. Por exemplo, perceber o Pentateuco de Kardec é uma aventura intelectual de tal forma exigente que não é para qualquer um. Por isso é que há um punhadinho que entende mesmo, do tipo uma coisa como deve de ser, que faz parte dos que atingiram a maturidade e o léxico: explicam tudo porque sabem tudo por brilhantes intuições, e se as não têm, há sempre uma psicografia que tem; esse punhadinho responde, tem resposta pronta para tudo, tem tudo muito claro porque o punhadinho fala com Espíritos muito especiais, a que só o punhadinho tem acesso. Habitualmente esconde-se atrás das reencarnações, ou seja, um passado inteiramente desconhecido, por graça divina, acrescente-se, mas que é a grande revelação do punhadinho que diz coisas muito sapientes, do lado de lá, que resolve tudo o mais do lado de cá, com grandes máximas moralistas, normas, preceitos, regras, leis, comportamentos, pedagogias, todas relativizadoras, todas culpabilizadoras, todas minimizadoras da natureza humana, enfim. São os que atingiram a tal maturidade, alguns até viveram no tempo de Jesus Cristo, tal como os Espíritos que com eles falam tu cá tu lá, que se lembram de tudo e que, como foram seguidores presenciais de Jesus Cristo, são uma autoridade na matéria. Há mesmo quem tenha chegado a ser membro do Sinédrio. Mas, continuemos. Submersos num vazio de que não se sabe como sair, resultado do desenraizamento judaico-cristão de que naturalmente somos herdeiros, entrou-se na era da desautorização e do vale tudo. As grandes ideias humanistas do passado e os grandes ideais não foram continuados. Tem-se hoje a sensação de que se quebrou a linha de continuidade da História das Ideias. Os fiéis, levados por falsos conceitos de espiritualidade, estão de tal modo vulneráveis que acreditam em tudo, basta para isso que alguém, munido de esperteza aguçada, lhes fale ao coração com palavras bem articuladas, pensamentos cheios de compreensão, numa retórica argumentista onde tudo está pensado ao mais ínfimo pormenor. No caso dos espíritas, a situação piora tão simplesmente porque deixaram de estudar os livros da Codificação, além de que os poucos que o fazem tornaram-se fanáticos, na sua maioria. E ficamos na mesma. Estes novos ventos, os da ignorância como virtude, gerou verdades absolutas como nunca se viu, comportamentos sociais perigosíssimos, em nome de Deus, na esperança de que há um prémio no outro mundo. Com isto, os avós são velhos parados no tempo, as ideias das Luzes, da Antiguidade Clássica ou da Renascença estão ultrapassadas, mais, abafam-se; são antiquadas, os seus representantes um bando de lunáticos. De facto, a “profissão” de livre pensador sempre foi uma aventura, hoje mais ainda. Nesta incultura, o resultado é este: p. ex., o padre António Vieira agora passou a racista, S. Francisco de Assis é um pobrezinho tonto, Gandhi uma personagem de contos, Teresa de Calcutá a grande santinha. O enquadramento, o contexto que deu razão ao seu trabalho, a lutas que travaram, a coragem que foi necessária, a entrega incondicional ao bem ao próximo, o desapego, enfim, não é referenciado. Onde está então a tão almejada maturidade do século XXI? Quando alunos do nosso brilhante sistema de ensino, às portas das universidades, diziam há bem pouco tempo que os presuntos vêm do supermercado, tal como as laranjas e as sapatilhas para as actividades desportivas, isto é representativo da evolução do nosso século. Já agora, os bebés vêm de onde? De Paris, pois claro! É urgente combater esta sensação de que tudo cai do céu, sem a mínima noção do que é o trabalho, do que significa produzir alguma coisa que vai ter um preço e que vai fazer parte de um sistema de trocas complexo. De igual modo é fundamental saber que o campo do religioso existe para tornar a humanidade melhor aqui e agora, não para projectar os homens e as mulheres para o mundo dos anjinhos. Deus é Deus e nós somos nós. A fé é perceber isso, racionalmente, mas é, e muito mais, como uma antropologia, uma sensibilidade para lá do tangível. É uma experiência do foro existencial rumo a uma escatologia que se define, se assim podemos dizer, de amor. Se a fé não rumar ao amor não é fé, mas força confusa e cega que cai redonda no egoísmo asfixiante. Por outro lado, a crescente quão preocupante massa de pobres, ou melhor, de míseros, a praga de sucata humana, rendidos à iletracia que lhes foi imposta, porque a educação está cada vez mais cara e selectiva, não pensa porque tem a barriga vazia. Em primeiro lugar comemos e só depois pensamos, temos fé, acreditamos seja lá no que for, cantamos, poetamos. Não há ética nem moral de estômago vazio, nem direitos nem deveres, nem justiça nem piedade. É como o ar e a água. Sem ar ninguém respira e sem água ninguém vive. Então parece que é por aí que temos que começar, pelas coisas mais simples, que só o são aparentemente. Se os grupos religiosos não mudarem rapidamente os seus discursos dos pobrezinhos, se não educarem para uma vida com condições materiais satisfatórias, baseadas no conforto, entenda-se, dignidade, continuarão a alimentar uma falsa teologia dos escolhidos, a representarem Deus como o prolongamento das suas fantasias discriminatórias e, pior do que isso, a ensinarem que Deus é mais amigo dos pobrezinhos ou, dito de outro modo, só se ama verdadeiramente Deus na pobreza. Ora Deus é pai da humanidade inteira. As condições sociais e económicas são trabalho nosso. Se tomarmos Jesus como exemplo, temos o ensinamento gratificante e consolador: “Vai e não voltes a pecar”, o mesmo é dizer, faz a tua parte cá deste lado com tudo o que te rodeia. Religião, espiritualidade, fé não podem pactuar com interesses obscuros, mas serem organizações de discurso e prática transparentes. Muitos templos estão vazios para dar lugar ao enchimento transbordante de outros. Não numa regra de substituição, mas numa repulsa do estagnicismo, numa revolta silenciosa aos atavismos dos lugares marcados, fartos de estar ao canto, de serem nada o ano inteiro e serem tudo apenas no natal. Outros porque lhes é dado o acesso a falar com os Espíritos. É a ânsia do desconhecido, de um conforto de outro mundo materializado num médium; ou então a esperança de ter por perto o ente que já partiu, ou falar com o anjo da guarda para zelar pela vida todos os dias; ou ainda, perante o grande desconhecido que é a morte, saber se existe mesmo alguma coisa do lado de lá, como é e o que diz. É lamentável. Dos templos antigos vazios, aos novos movimentos cheios, há um traço comum: não há maturidade alguma, ninguém até hoje percebeu nada de nada, e continuamos num eterno recomeço. O que há é um sentimento de urgência num mundo que se tornou demasiado apressado e construtor de castelos no ar onde emerge uma insaciedade descontrolada a rumar ninguém sabe para onde, numa humanidade infantilizada. Margarida Azevedo

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