terça-feira, janeiro 26, 2021

PARA ONDE CAMINHAMOS

E mais uma vez o mundo se vestiu de luto. É mais uma vez entre tantas vezes. A natureza há muito que se manifesta, aflita, num grito dilacerante. Mas os humanos têm sido insensíveis. Os interesses económicos e ideológicos têm-se imposto com veemência, desprezíveis e vis. Não é apenas uma pandemia que está a derrubar vidas, é o cenário desastroso em que a mesma está a acontecer. Entre alterações climáticas irreversíveis, espécies a desaparecer, lixo acumulado sem tratamento, poluição dos rios e oceanos; insegurança no trabalho, empobrecimento galopante, enriquecimento fácil de um grupo cada vez mais reduzido, miséria humana crescente; refugiados, terrorismo religioso e político; insegurança social, famílias desmembradas, obscurantismo, intrigas, suborno, manobras políticas e económicas dúbias, falsa democracia; educação cada vez mais deficitária, crescente analfabetismo, universidades a moldarem mentes, formatização do pensamento e consequente falta de liberdade de expressão; leis só no papel, o Estado cada vez mais forte com os fracos e cada vez mais fraco com os fortes, o peso de estar nas mãos de alguém, impunidade dos desfalques ao Tesouro Público, as desculpas esfarrapadas, etc.,etc. O ser humano tornou-se alvo de desconfiança. Tudo o que se diz ou faz é observado, analisado, dissecado ao mais ínfimo pormenor. A pessoa não interessa, e a pandemia mascarou, “desinfetou”, afastou ainda mais. Todos somos portadores/transmissores de algo perigoso, todos imagem da morte. Ninguém é pessoa nem é gente, nem se sabe o que é, é 5467439865. Profissionalmente, cada um vai para onde o mandam. Permite-se-lhe que tire um curso de Línguas e Literaturas Modernas, mas já se sabe que vai vender telemóveis; licencia-se em Engenharia Civil, mas já se sabe que vai ter que emigrar; tirou um curso de enfermagem, mas vai para Inglaterra, caso lhe apeteça ter dignidade; tirou um curso de Teatro, mas vai servir à mesa em bares e restaurantes. Para onde, de facto, caminhamos? Passemos um olhar atrevido sobre ténues salpicos de fé, isto é: como enquadrar Deus neste cenário, que universo de esperança, que futuro nos espera? Primeiro, há uma interrogação prévia: o que é o caminho? Há um trajecto diferente, particular, singular, único. É o historial longínquo de uma existência perdida na noite dos tempos e que, por graça divina, aterrou aqui e que nos conduz a reflexões de outra natureza: Qual o caminho que me é permitido fazer? Estarei preparado/a para as surpresas do caminho? Todas estas questões são por demais grandes e nós habitamos um mundo demasiado pequeno e limitado. O nosso alcance é curto. A preocupação com a saúde impõe-se acima de todas as outras preocupações porque caminhar é, efectivamente, estar saudável, mas não apenas a saúde do corpo, a da alma também. Porém, a situação pandémica que atravessamos está a remeter-nos para a noção de degradação da vida humana resultado do acumular de erros que não foram corrigidos, o que torna inevitável atracarmos aqui. Sente-se o desvalor do humano, a precaridade existencial do homem, o empobrecimento das acções inter-pessoais. Com o afastamento físico entrou-se noutra era. Irreversível? Não se sabe. Vive-se uma tensão entre a verdade e a mentira, entre a luta pela vida objectivando o enfraquecimento da morte, não apenas física, mas também da integridade da pessoa humana. Por outro lado, consequentemente ou não, há no ar uma noção de ressurreição urgente, aqui e agora, a imposição de outra dimensão existencial que glorifique este não-sei-quê que atormenta sem cessar. Vive-se a terrível questão: que tempo é este? ou então: que momento é este? O que é que de nós vai sobreviver? Para onde estamos a ser levados? Entrou-se na era do triunfo do paradoxo: o mundo inteiro está a viver o mesmo pesadelo, porém, nunca se viveu tão encarcerado, nem se morreu tão só, tão isolado, tão distante. Criaram-se muros, a humanidade exilou-se. Os computadores são a grande máquina isolacionista. Sentado/a sozinho/a numa sala frente ao monitor, o indivíduo tem a sensação de estar com o mundo. Mas o mundo é uma transmissão existencial de afectos, é o calor de sentir um coração abater que não o seu, sorrisos que se trocam. O mundo não é de plástico, é amor. Quanto à morte, assunto da ordem do dia, esta já não é cerimoniosa. Abdicou da mortalha, do mar de flores, dos acompanhamentos autênticas multidões, dos discursos clamorosos, das ovações, das orações complexas e demoradas, dos sentimentos dos presentes porque já não há presentes, já não há mesmo ninguém, nem as anedotas durante os velórios, as risadas e a célebre frase: ”Se precisar de alguma coisa, estou aqui.” Acabou-se, foi-se. A morte já não se festeja nem se chora; os corpos embrulham-se em sacos de plástico. Depois cremam-se ou vão para a terra. Está feito. A dor já não se partilha, isola-se. Ninguém quer saber. Surge o proliferar de teorias como cogumelos, cada uma com a resposta mais pronta, reclamando a verdade explicativa de todas as coisas que estão a acontecer. E o paradoxo vai triunfando: entrámos na era apocalíptica, para a grande maioria, ou na de uma espécie de limpeza existencial da humanidade, para alguns, ou então na de um castigo divino sem precedentes, para os apologistas dos infernos. Mas se assim é, porque não souberam prevenir? Porque não impuseram a sua sabedoria magnânima ao serviço da prevenção. “Ah! Mas nós fizemo-lo”, dirão, “só que ninguém nos ouviu”, esquecendo-se de que Deus conhece as intenções de todos. A nossa história está repleta de apocalipses, fins do mundo, castigos divinos, ira de deuses, demagogias religiosas de toda a ordem. Temos disso que sobra. O que falta é perceber que o amor incondicional pela pessoa humana ainda não é o móbil existencial unificador da humanidade, menos ainda das religiões. Está-se cada vez mais longe da universalidade do amor, e a prova é a degradação a que se chegou. O ódio inter-religioso, uma vergonha, é apenas uma parte, a pandemia, a outra, o seu duplo no corpo. É caso para dizer, a pandemia caiu na fraqueza de toda a gente. Como nos salvamos da tormenta? Tolentino Mendonça dá uma resposta: ”O que nos salva é um excesso de amor, uma dádiva que vai para lá de todas as medidas. É essa a bem-aventurança que nos salva. É esse assombro de amor que nos relança. Não é um acordo, um pacto. Isso é para os negócios, mas devemos saber que tal não salva um homem, não põe de pé um pecador, não traz um filho de volta, não sinaliza a infinita misericórdia de Deus.” p.155 (1) Pois não, mas traz um novo sentido à vida, quebra o gelo, torna fértil o solo mais estéril. O amor sem medida é o móbil que constrói e sedimenta o Reino de Deus aqui e agora, independentemente de tudo o que possa estar a acontecer. A vida corre voraz, está a escapulir-se por entre os dedos. E há tanta coisa para fazer, modificar, melhorar, transformar e poderá já não haver tempo. Estivemos demasiado ausentes. E nada há de pior que sentir que se está a ficar sem tempo, que se viveu longe da vida, isto é, há quem tenha vivido morto sem saber: não deu pelos filhos a crescer, não se deu conta de que alguém o/a amou, mas não permitiu que o amasse, que esbanjou o tempo precioso a reclamar que não tinha nada nem ninguém, não olhou para a natureza. Com que sentimento se tem vivido face à natureza, por exemplo? O escritor norueguês Karl Ove Knausgard, que escreve sobre as cenas banais da vida comum, aquelas de que se pode dizer que não se passa quase nada, partilha connosco as suas reflexões ao dizer:” …o que vou procurar na natureza é o sentimento de uma presença.”, tendo como base a máxima de que “…a vida quotidiana contém igualmente as questões mais fundamentais, que são, é claro, as mais simples.” (p.70) (2), Todas as coisas se mostram na emergência de serem observadas, porque olhar atentamente é uma forma de amor. O sentimento de uma presença é a descoberta da alteridade na grandeza da vida que nos rodeia. Que fizemos do nosso quotidiano? Como temos passado os nossos dias? Que importância demos ao que, só aparentemente, não tem importância nenhuma? Há quem se queixe da falta de tempo, mas que tempo? O que é o tempo? O grande paradoxo é não percebermos que nós somos tempo, não somos o tempo nem estamos no tempo, e é nessa condição que acontece a compressão do tempo. A nossa expansão está a retrair-se, os grandes objectivos da vida cessaram, os desejos, os gostos, os projectos, tudo se desmoronou: temos pouco tempo, igual a temos pouco nós para existir, expandir, crescer, alargar, superar e superar-se. Acumulou-se o não feito. Há uma sensação colectiva de que alguma coisa se está a aproximar. O que é que aí vem? Um gigante que nem nos vê porque, face ao seu tamanho, somos micro-organismos? A ignorância revelou-se, a fraqueza impôs-se e o medo instalou-se, e os gigantes aí estão: ……………. “Quem é que ousou entrar Nas minhas cavernas que não desvendo, Meus tectos negros do fim do mundo?” ……………… “Quem vem poder o que só eu posso, Que moro onde nunca ninguém me visse E escorro os medos do mar sem fundo?” (3) Quem somos? Somos vozes que tremem, seres habitados por uma força que se desconhece, que lutam pela descompressão e pela transcendência. Aguarda-se que o paradoxo faça o milagre da paragem rápida neste desconcerto do mundo onde o que não é se quer impor como o que é, e que já Camões cantava: “O recado que trazem é de amigos, Mas debaxo o veneno vem coberto, Que os pensamentos eram de inimigos, Segundo foi o engano descoberto. Oh! Grandes e gravíssimos perigos, Oh! Caminho da vida nunca certo, Que, aonde a gente põe sua esperança, Tenha a vida tão pouca segurança!” (4) Seremos loucos? Mas jamais poderemos deixar de o ser. Não se vive sem a loucura. É ela a nossa identidade, é ela a reveladora das grandes máximas e das grandes verdades, a impulsionadora de momentos de inspiração ímpar. No evangelho de Marcos, por exemplo, devemos ao louco a revelação de quem é Jesus: “Sei quem tu és: o santo de Deus.”(Mc 1: 24) (5) Há uma sabedoria na loucura, o soltar-se de um sentido que nos leva mais longe e nos faz compreender o que está perto. É importante destacar que esta revelação feita pelo louco está enquadrada entre a escolha dos quatro pescadores, primeiro Simão e André, depois Tiago e João, filhos de Zebedeu, e a cura da sogra de Simão (Mc 1: 16-19, 29-34). Assim, as revelações da loucura gravitam entre a escolha e a cura, porque é outra a sua natureza. Dito de outro modo, não é por ser-se escolhido, ou porque se é curado, ainda que milagrosamente, que se compreende o que está perto, mas por meio de outro sentido - os nossos trabalhos espirituais não são do nosso alcance -. Também não é um pagamento nem um gesto grato. Agir por gratidão é uma dependência, porém, não agradecer é uma falta. A revelação é inteiramente gratuita/livre e mora na casa da loucura (= o sentimento de uma presença quando se olha a natureza?). É o paradoxo existencial do Homem. Serão os demónios quem age por nós? Seremos nós que agimos por eles? Este tempo, nós, caminha para alguma coisa que ultrapassa a história. O mundo já foi visitado por tempos (pessoas) que marcaram a história com o objectivo de a transcendermos. São tempos que irrompem neste mundo de onde emergem coisas novas. São daimonions, à maneira de Sócrates, que nos habitam e que não são dizíveis pela linguagem científica ou da fé, mas por outra. Qual? Aquela em que algo fala através de nós. Procuramos uma qualificação para esse daimonion, mas sem sucesso. À semelhança de Sócrates, apenas sabemos que esses daimonions que falam através de nós objectivam uma libertação. É o outro lado do paradoxo, uma necessidade intrínseca de nos libertarmos através de algo totalmente desconhecido, e por meio de uma linguagem que se esconde. Talvez sejamos nós mesmos esse oculto, porque nós somos também daimonion, desconhecidos de nós mesmos. Precisamos de despertar para a vertigem das coisas simples, para as vozes ocultas/desocultas, revelação de uma única realidade, a vida. É nela que procuramos o amor como o móbil existencial. Para onde caminhamos? Caminhamos para a transcendência, para uma antropologia que se define pela fé. Caminhamos para a epifania do mundo como solo sagrado, representativo de Deus Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis. Caminhamos para a absolutização da alma, sacralização dos actos humanos identificados com Deus, como em espalho reflector encandeante pelo Sol. Caminhamos para a construção do mundo santidade divino puro. Caminhamos para o despertar da consciência, a luz, a vitória do bem querer. Isto é novo? Não. É isto que está connosco desde sempre, porque é eterno como eterno é o nosso daimon existencial. Margarida Azevedo Bibliografia citada: (1) MENDONÇA, J.T., Elogio da Sede, Quetzal, Lisboa, 2018, 10. A bem-aventurança da sede, A bem-aventurança que nos salva, pp.154-156. (2)Philosophie magazine, Plaidoyer pour la nuance, Karl Ove knausgard, “Je cherche le sentiment d´une présence”, Décembre 2020 Janvier 2021, Paris, n.º 145, pp. 68-73. (3) MARTINS, F., Ao encontro de Fernando Pessoa, Antologia, edições Asa, Porto Codex, 1987, p.77. (4) CAMÕES, Os Lusíadas, Porto Editora, Lda., Porto, 1974, Canto I, estrofe 105, p. 79. (5) Aconselho a leitura da perícopa na sua totalidade – Mc 1: 21-28. A tradução utilizada nas citações é de Dimas de Almeida, realizada no âmbito de estudos exegéticos no Grupo Ecuménico de Carcavelos.

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