sábado, janeiro 09, 2021

SOB O CÉU AZUL

Quando nascemos entramos num túnel que não sabemos aonde vai ter nem aonde nos leva. Esse túnel que percorremos durante umas escassas dezenas de anos, para os que habitam neste plano durante esse tempo, e ao qual chamamos vida, também ele nos percorre e desafia. Esse túnel também precisa de nós para ser habitado. O habitante e o habitado necessitam-se, precisam-se mutuamente, interagem, encontram-se. O presente, que tantos rios de tinta faz correr quando se fala de crise, valores, insegurança, corrupção, e tantas outras coisas que nos estremecem, faz-nos sentir que a vida se relativiza perante um conjunto de manobras cujo objectivo é fazer esquecer uma infinidade de coisas boas, sim, coisas boas, que acontecceram em todas as épocas. As grandes vozes defensoras do sofrimento como a melhor e única forma de evolução, perigosas quão fanáticas, e as primeiras a lutar com todas as forças contra o seu próprio sofrimento, o que é muto natural, anti natura seria não o combater, mais não são que forças negativas que retratam este planeta como exclusivamente um mar de dores sem fim a partir do chavão “vivemos num mundo de provas e de expiações.” Só que isso significa que há provas e expiações, não diz que só há provas e expiações; há sofrimento, mas não há só isso. O túnel não é apenas um espaço limitado e longo, é também uma protecção face a situações indesejáveis, bem como uma forma mais rápida e segura de chegar ao outro lado. Viver aqui também é uma forma de protecção face a outros planos mais complicados, chamemos-lhes assim num português doce. Sempre houve, anonimamente, e não apenas aquelas figuras de referência mundial que transformaram a fé em figuras de cartaz, gente que, pelo muito amar, igualmente muito contribuíu para o alívio do sofrimento do próximo. Há que perceber que dentro do túnel circulam vidas de tantas etiologias que nem fazemos uma pequena ideia. É um lugar pluralista onde se entrecruzam arqueologias e objectivos de tal forma que estar lá dentro não retrata a natureza de todos como semelhantes. Pelo contrário, o que têm em comum é apenas habitar o mesmo espaço. Lá dentro, a queda da democracia, o seu fracasso e os falsos conceitos e falsos direitos que a ela foram anexados, colocou a humanidade no caminho recto para a opressão como forma única e exemplar de, hipotética e saudosistamente, repor uma suposta ordem plena de virtude, tão virtuosa quão rígida. Só que o túnel não suporta o retrocesso, precisamente pela sua natureza própria. Ao longo dos tempos produziu ideias, lutou contra as opressões, gerou valores, desenvolveu pedagogias, tudo para minimizar a vulnerabilidade dos mais fracos, limitar a tendência para a criação de super-poderosos. Com sucesso? Talvez não como o que desejaríamos, mas com muitas vitórias pelo meio. Não um dos maiores fracassos, mas o maior de todos, é demolir a democracia. O resultado está à vista desarmada. A eleição dos líderes políticos não se baseia em alternativas a uma forma de governação, os eleitores já não votam porque ouviram debates televisivos esclarecedores ou leram jornais objectivos e isentos, ou simplesmente porque são fiéis a determinada corrente política que, historicamente, lhes diz alguma coisa. O eleitorado vota naquele que prometer “endireitar isto tudo”, lhe garantir um trabalho (?), é provável, ainda que a preço miserável (Oh! Mas que sorte encontrá-lo, foi Deus); acabar com a corrupção, com a vagabundagem, os homicidas e os incendiários, isso sim, é verdadeiro empenho. Só que isso não tem partido, nem devia fazer parte de programa eleitoral algum. Como que querendo absolver-se, ou representando o papel de quem está de fora, os políticos fazem esquecer de que absolutamente todos, independentemente da cor política, devem estar empenhados na construção de uma sociedade mais justa, com regras que todos devem cumprir, independentemente de raças e etnias, e cujos exemplos têm que vir de cima. Como chegámos até este caos? Foi muito fácil. Os cidadãos, já não se lhes chama povo, preocupados com a insegurança, descuram o papel das grandes decisões políticas, laborais e sociais, remetendo-as para a classe política. A insegurança tornou-se na maior arma do sistema, o crime convém à política e até à religião: à primeira, porque lhe garante completa autonomia para agir como quiser, implementando um sistema baseado na sobrevivência como uma alternativa virtuosa, do tipo pobres mas seguros, o que nem isso acontece; à segunda, porque garante templos cheios, donativos generosos para agradar aos deuses, e garantir uma felicidade qualquer num reino qualquer. A vagabundagem transformou os líderes da política e da religião em construtores de promessas vãs, retóricos, pronunciadores de belos discursos, acesos manipuladores das palavras (onde é que nós já ouvimos isto?). Os líderes honestos, políticos e religiosos, porque os há, além de silenciados são vistos como indesejáveis, os tais que não estão a perceber nada de nada, não alcançam que a vida está em grandes mudanças e que, na sua teimosia, estão a ficar para trás porque desactualizados. Lutar pelo bem nunca foi tão difícil como agora, é uma aventura perigosa. Já não vale a pena prender, torturar ninguém, porque além de caro é deshumano. Quando alguém denuncia, corajosamente, irregularidades, é apenas meia coragem porque tem que tapar a cara e distorcer a voz. Ora aí está. Pois, entrámos na era da cara tapada e voz distorcida, senão… Sempre é mais barato. Neste beco sem saída, apesar do túnel ter tantas ramificações, triunfa a esperança de uma fé que supera montanhas, ultrapassa fronteiras, se assume como a alternativa mais humana. Porém, neste plano existencial onde, o que dá muito jeito aos corruptos políticos e religiosos, lamentavelmente, ainda há os que defendem a pobreza como a forma mais fácil e a mais elevada de atingir o céu. Assim torna-se quase impossível a criação de melhores condições de vida. Ora, parece que Deus não tem nada a ver com ricos e pobres, mais ou menos sofredores. Será mais acertivo pensar que, talvez, a construção de modelos de vida libertadores, gerar formas de felicidade, vivências pacíficas será mais o Seu género. Isto sem ter a ousadia de falar dos gostos de Deus. As religiões não podem adormecer sobre esta questão. Se há movimentos, organizações que tragam um sólido universo de esperança a tudo quanto é gente, devem ser as correntes religiosas. Sem verdades absolutas, entenda-se, elas são apenas formas de representaçao da fé, mutáveis como tudo o que vive e pernoita neste túnel, à procura de acertar com o caminho directo para Deus. Por outras palavras, mais que pensar no que Deus gosta ou não gosta, será mais sensato pensar em como tornar este mundo num sorriso universal. Bom, mas isto é apenas uma prosa de túnel coberta pelo céu azul. Margarida Azevedo

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