sábado, maio 13, 2023

O PERDÃO DE JESUS III

 


 

            Se nos remetermos aos evangelhos, em Jesus há um perdão existencial e ontológico. “Vai e não tornes a pecar” é a emergência de uma nova antropologia, abrangendo uma pluralidade de sentidos, tais como não voltes a ceder e resiste, não te deixes ludibriar, explora uma nova forma de ver, não caias, toma cuidado e sê vigilante,…. Jesus apela a uma mudança comportamental, com ela uma mudança do nosso olhar. Esse novo olhar conduz inevitavelmente a uma nova dimensão afectiva e relacional: não voltar a pecar inaugura uma relação com o outro e com Deus: Sejas tu quem fores, não interessa de onde vens, o que fizeste, que caminhos cruzaste. Interessa que chegaste até aqui, agora, e é neste momento que és perdoado porque a tua fé te salvou; abriste-te a ti mesmo e disseste “basta”.

            No entanto, há um sentido novo que se impõe: “Vai e não tornes a pecar” é um marco que sedimenta uma relação profunda com o futuro, uma viragem não apenas na acção na mas interioridade. O convite de não voltar a pecar também significa a partir de hoje sê outro. É neste empenho todo ele esperança e fé que reside o afogar dos nossos erros. O perdão é um novo começo, uma mudança na nossa natureza. Perdoados por Jesus, em Jesus e com Jesus subimos um patamar existencial, a saber, abre-se o caminho para a santificação.

            O perdão é o tal momento em que surge, como se diz agora, um clic e nós dizemos: “É agora!” A fé em alguém ou em qualquer coisa é o grande móbil, seja um amigo muito especial que nos abanou no momento certo, seja o olhar em frente com mais incidência, seja uma ocorrência qualquer, seja um problema como os daqueles que os levaram a procurar Jesus.

            É verdade que não conseguimos viver sem pecado porque a nossa condição não no-lo permite, mas temos forças para combater as nossas tendências deletérias bem instaladas nas nossas mentes. Os Mentores dos grupos de trabalho espiritual não se cansam de recomendar a vigilância constante dos nossos pensamentos. É aí que tudo começa, logo é por aí que as nossas lutas devem começar também. Assim, o perdão não é uma questão de merecimento numa selecção rígida entre os que merecem e os que não merecem. Não voltar a pecar é expor-se, pelos seus próprios meios, a uma presença não punitiva e avassaladora, compreensiva e pedagógica. Não é uma questão de memória do que aconteceu nesta vida, nem de vidas passadas e que estão esquecidas. Perdoar não é reavivar a noção de erro, mas uma borracha forte que limpa tudo à sua passagem. Diz T. Mendonça que “o perdão é uma coisa diferente do esquecimento ou da memória … (1); nem aquele que perdoa é uma autoridade moral ou um poço de virtude a pregar sermões chatos: “O perdão não é uma afirmação de superioridade moral.” (2), esclarece o referido autor.

            Perdoar é incentivar à luta. É dar coragem. Quem não se sente perdoado não tem incentivo para mudar. Perdoar é levar o outro e o que perdoa a iniciar uma nova caminhada. Deus não pode ficar de fora, porque perdoar também é arrastar Deus para si, este si que é um nós, o que perdoa e o que é perdoado, Deus, a sociedade inteira. São todos. Perdoar é converter ao humano, expandi-lo, alarga-lo. Quem não perdoa vive numa prisão, amarrado a uma dor que não deixa passar; quem não é perdoado não cresce, julga que é um bem o que realmente é um mal. O perdão é uma chamada à consciência da noção de certo e errado.

            Nos contos de fadas e nos filmes policiais o Mal é destruído, não perdoado (veja-se o exemplo de Branca-de-Neve, ou do inspector que consegue provas irrefutáveis contra o malfeitor). O problema do mal é confiar cegamente em pequenas vitórias momentâneas que lhe parecem estáveis e decisivas, afundando-se na sua própria credulidade. Há uma ignorância característica do Mal, cujo uso da inteligência está ao serviço da astúcia, perspicácia, opressão, subjugação, etc., pelo excesso de confiança em si mesmo, pelo deslumbre e narcisismo. A minimização das forças do Bem que o caracteriza, e cujo potencial desconhece, e por isso não teme, leva-o a uma morte terrível. Os finais de Branca-de-Neve, que variam consoante as culturas, são horríveis; nos filmes policiais ou o malfeitor é condenado à morte, ou fica em prisão perpétua.

O Mal não tem experiência da vida porque esta está encerrada no ciclo vicioso da própria maldade. Ao ignorar por completo a força do Bem, possui uma entrega exclusiva às suas próprias forças, carregando um desejo de domínio do outro, sendo ele o dominado pela sua mesma vivência limitada e míope. O mal não tem amigos. Nos contos de fadas vive sozinho, ocupado com as suas poções mágicas maléficas; nos filmes policiais tem comparsas, extensões de si próprio.

            Podemos acreditar nas forças do Mal, porém jamais na força do Bem, porque só o Bem é Força, e o Bem não é para se acreditar, mas compreender. Compreende-se que o mundo é uma organização complexa, obra de uma Inteligência Suprema. O Mal tem a força que o nosso fraco bem lhe investe, o bem não, o bem, porque é Bem, é a sua própria força. A vitória e a força do Mal significam o fracasso de um bem pouco claro, pouco objectivo, deficitário, perturbado e confundido com outra coisa qualquer.

            Numa sociedade de arquétipos religiosos, o próprio religioso tem sido uma mistura de bem e de mal, o espaço privilegiado da luta entre ambos. É aí que o positivo e o negativo melhor se têm confrontado. A figura do diabo para justificar Deus tem sido o móbil dessa luta: De que lado estamos? Por que o Mal nos parece o Bem? O que é isso de ser enganado no nosso caminho para a Espiritualidade Superior? O que é que verdadeiramente nos engana?

            Podemos culpar os atractivos, as seduções e o brilho com que muitas vezes a vida nos ilude. Porém, é o nosso mau uso desses mesmos atractivos, que na nossa ignorância nos parecem um bem, que devemos perdoar em nós próprios. Podemos temer o ódio, a inveja, o ciúme; podemos combater a idolatria, a vaidade. Porém, a visão material da vida enfraquece-nos não raro a fé enquanto caminho libertador. Não é Deus que nos põe à prova. Somos nós que o fazemos com todas as ilusões que criamos, o desejo de nos sobrepormos, o julgarmo-nos mais inteligentes, mais aptos, mais perspicazes, mais ambiciosos, tudo qualidades de grande valor nos tempos que correm. Porém, talvez não haja o bom e o mau como nós os imaginamos, talvez para singrar na vida nem se precise de ser ambicioso/a ambicioso/a. Quem sabe? Efectivamente, o que nós precisamos é de saber que para ser feliz é preciso o outro e Deus e que, nesse quadro, todo o mal que possamos fazer é não mais que um acidente no percurso existencial.

             A nossa sociedade está cada vez mais esclavagista. Temos a sensação de viver num período histórico em tudo está virado no avesso. É preciso nervos de aço para conseguir manter a calma e a serenidade, alguma saúde mental. O perdão de Jesus é a força, a coragem de ir ao arrepio da onda de falsos valores, falsas noções de felicidade, uma quebra, enfim, nesta anulação do humano e da sobrevaloração da máquina e do instinto animal. Precisamos urgentemente da sair das cavernas, principalmente das doutrinas que nos aprecem perfeitas, dos sistemas fechados, do acriticismo e do silêncio que nos vão caracterizando.

A História, o palco da nossa vulnerabilidade e contingência, com os seus arquipélagos religiosos, numa transformação contínua e profunda a que nos expõe, relata-nos o mundismo em que caímos. Ao invés do aprendizado de uma força libertadora e compreensiva dos nossos comportamentos, mostra-nos o desejo de materializar o imaterializável. Ver Deus na História não significa fazer de Deus uma pedra, mas que a pedra pode ser um instrumento ao serviço de Deus. Tudo vai depender de como o humano lhe pega, que instrumentos constrói com ela, como é que ele a olha.

A História existe não como mero desfile espácio-temporal dos nossos actos, mas como pedagogia e estudo de nós mesmos, a saber, o que e quem somos. Há uma teleologia inerente ao acto histórico; ele tem um fito, bem como uma escatologia, isto é, caminhamos para alguma coisa, dirigimo-nos para algum lado, porque há algo que certamente nos espera. Caminhamos para um fim, não para o fim: a fusão do homem com Deus quando no mundo, finalmente, houver Paz.

(continua)

 

Margarida Azevedo

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(1)   MENDONÇA, J. T., Pai-Nosso que estais na Terra, Paulinas, Prior Velho, 2014, XI, Uma Decisão Unilateral de Amor, “…ASSIM COMO NÓS PERDOAMOS A QUEM NOS TEM OFENDIDO”,  O que o Perdão não é, p.123.

(2)__________________ idem, ibidem.

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