O PERDÃO DE JESUS III
Se nos remetermos aos evangelhos, em Jesus há um perdão
existencial e ontológico. “Vai e não
tornes a pecar” é a emergência de uma nova antropologia, abrangendo uma pluralidade
de sentidos, tais como não voltes a ceder
e resiste, não te deixes ludibriar, explora uma nova forma de ver, não caias,
toma cuidado e sê vigilante,…. Jesus apela a uma mudança comportamental,
com ela uma mudança do nosso olhar. Esse novo olhar conduz inevitavelmente a
uma nova dimensão afectiva e relacional: não voltar a pecar inaugura uma relação
com o outro e com Deus: Sejas tu quem
fores, não interessa de onde vens, o que fizeste, que caminhos cruzaste.
Interessa que chegaste até aqui, agora, e é neste momento que és perdoado
porque a tua fé te salvou; abriste-te
a ti mesmo e disseste “basta”.
No entanto, há um sentido novo que se impõe: “Vai e não tornes a pecar” é um marco que
sedimenta uma relação profunda com o futuro, uma viragem não apenas na acção na
mas interioridade. O convite de não voltar a pecar também significa a partir de hoje sê outro. É neste
empenho todo ele esperança e fé que reside o afogar dos nossos erros. O perdão
é um novo começo, uma mudança na nossa natureza. Perdoados por Jesus, em Jesus
e com Jesus subimos um patamar existencial, a saber, abre-se o caminho para a
santificação.
O perdão é o tal momento em que surge, como se diz agora,
um clic e nós dizemos: “É agora!” A
fé em alguém ou em qualquer coisa é o grande móbil, seja um amigo muito
especial que nos abanou no momento certo, seja o olhar em frente com mais
incidência, seja uma ocorrência qualquer, seja um problema como os daqueles que
os levaram a procurar Jesus.
É verdade que não conseguimos viver sem pecado porque a
nossa condição não no-lo permite, mas temos forças para combater as nossas
tendências deletérias bem instaladas nas nossas mentes. Os Mentores dos grupos
de trabalho espiritual não se cansam de recomendar a vigilância constante dos
nossos pensamentos. É aí que tudo começa, logo é por aí que as nossas lutas
devem começar também. Assim, o perdão não é uma questão de merecimento numa
selecção rígida entre os que merecem e os que não merecem. Não voltar a pecar é
expor-se, pelos seus próprios meios, a uma presença não punitiva e
avassaladora, compreensiva e pedagógica. Não é uma questão de memória do que aconteceu
nesta vida, nem de vidas passadas e que estão esquecidas. Perdoar não é
reavivar a noção de erro, mas uma borracha forte que limpa tudo à sua passagem.
Diz T. Mendonça que “o perdão é uma coisa
diferente do esquecimento ou da memória … “ (1);
nem aquele que perdoa é uma autoridade moral ou um poço de virtude a pregar
sermões chatos: “O perdão não é uma
afirmação de superioridade moral.” (2), esclarece o referido autor.
Perdoar é incentivar à luta. É dar coragem. Quem não se
sente perdoado não tem incentivo para mudar. Perdoar é levar o outro e o que
perdoa a iniciar uma nova caminhada. Deus não pode ficar de fora, porque
perdoar também é arrastar Deus para si, este si que é um nós, o que perdoa e o
que é perdoado, Deus, a sociedade inteira. São todos. Perdoar é converter ao
humano, expandi-lo, alarga-lo. Quem não perdoa vive numa prisão, amarrado a uma
dor que não deixa passar; quem não é perdoado não cresce, julga que é um bem o que
realmente é um mal. O perdão é uma chamada à consciência da noção de certo e
errado.
Nos contos de fadas e nos filmes policiais o Mal é
destruído, não perdoado (veja-se o exemplo de Branca-de-Neve, ou do inspector
que consegue provas irrefutáveis contra o malfeitor). O problema do mal é confiar
cegamente em pequenas vitórias momentâneas que lhe parecem estáveis e decisivas,
afundando-se na sua própria credulidade. Há uma ignorância característica do
Mal, cujo uso da inteligência está ao serviço da astúcia, perspicácia,
opressão, subjugação, etc., pelo excesso de confiança em si mesmo, pelo
deslumbre e narcisismo. A minimização das forças do Bem que o caracteriza, e
cujo potencial desconhece, e por isso não teme, leva-o a uma morte terrível. Os
finais de Branca-de-Neve, que variam consoante as culturas, são horríveis; nos
filmes policiais ou o malfeitor é condenado à morte, ou fica em prisão perpétua.
O
Mal não tem experiência da vida porque esta está encerrada no ciclo vicioso da
própria maldade. Ao ignorar por completo a força do Bem, possui uma entrega
exclusiva às suas próprias forças, carregando um desejo de domínio do outro,
sendo ele o dominado pela sua mesma vivência limitada e míope. O mal não tem
amigos. Nos contos de fadas vive sozinho, ocupado com as suas poções mágicas maléficas;
nos filmes policiais tem comparsas, extensões de si próprio.
Podemos acreditar nas forças do Mal, porém jamais na
força do Bem, porque só o Bem é Força, e o Bem não é para se acreditar, mas
compreender. Compreende-se que o mundo é uma organização complexa, obra de uma
Inteligência Suprema. O Mal tem a força que o nosso fraco bem lhe investe, o
bem não, o bem, porque é Bem, é a sua própria força. A vitória e a força do Mal
significam o fracasso de um bem pouco claro, pouco objectivo, deficitário,
perturbado e confundido com outra coisa qualquer.
Numa sociedade de arquétipos religiosos, o próprio
religioso tem sido uma mistura de bem e de mal, o espaço privilegiado da luta
entre ambos. É aí que o positivo e o negativo melhor se têm confrontado. A
figura do diabo para justificar Deus tem sido o móbil dessa luta: De que lado estamos? Por que o Mal nos
parece o Bem? O que é isso de ser enganado no nosso caminho para a
Espiritualidade Superior? O que é que verdadeiramente nos engana?
Podemos culpar os atractivos, as seduções e o brilho com
que muitas vezes a vida nos ilude. Porém, é o nosso mau uso desses mesmos
atractivos, que na nossa ignorância nos parecem um bem, que devemos perdoar em
nós próprios. Podemos temer o ódio, a inveja, o ciúme; podemos combater a
idolatria, a vaidade. Porém, a visão material da vida enfraquece-nos não raro a
fé enquanto caminho libertador. Não é Deus que nos põe à prova. Somos nós que o
fazemos com todas as ilusões que criamos, o desejo de nos sobrepormos, o
julgarmo-nos mais inteligentes, mais aptos, mais perspicazes, mais ambiciosos,
tudo qualidades de grande valor nos tempos que correm. Porém, talvez não haja o
bom e o mau como nós os imaginamos, talvez para singrar na vida nem se precise
de ser ambicioso/a ambicioso/a. Quem sabe? Efectivamente, o que nós precisamos
é de saber que para ser feliz é preciso o outro e Deus e que, nesse quadro,
todo o mal que possamos fazer é não mais que um acidente no percurso existencial.
A nossa sociedade
está cada vez mais esclavagista. Temos a sensação de viver num período
histórico em tudo está virado no avesso. É preciso nervos de aço para conseguir
manter a calma e a serenidade, alguma saúde mental. O perdão de Jesus é a força,
a coragem de ir ao arrepio da onda de falsos valores, falsas noções de
felicidade, uma quebra, enfim, nesta anulação do humano e da sobrevaloração da
máquina e do instinto animal. Precisamos urgentemente da sair das cavernas,
principalmente das doutrinas que nos aprecem perfeitas, dos sistemas fechados,
do acriticismo e do silêncio que nos vão caracterizando.
A
História, o palco da nossa vulnerabilidade e contingência, com os seus
arquipélagos religiosos, numa transformação contínua e profunda a que nos
expõe, relata-nos o mundismo em que caímos. Ao invés do aprendizado de uma força
libertadora e compreensiva dos nossos comportamentos, mostra-nos o desejo de
materializar o imaterializável. Ver Deus na História não significa fazer de
Deus uma pedra, mas que a pedra pode ser um instrumento ao serviço de Deus.
Tudo vai depender de como o humano lhe pega, que instrumentos constrói com ela,
como é que ele a olha.
A
História existe não como mero desfile espácio-temporal dos nossos actos, mas
como pedagogia e estudo de nós mesmos, a saber, o que e quem somos. Há uma
teleologia inerente ao acto histórico; ele tem um fito, bem como uma
escatologia, isto é, caminhamos para alguma coisa, dirigimo-nos para algum
lado, porque há algo que certamente nos espera. Caminhamos para um fim, não para
o fim: a fusão do homem com Deus quando no mundo, finalmente, houver Paz.
(continua)
Margarida
Azevedo
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(1)
MENDONÇA,
J. T., Pai-Nosso que estais na Terra, Paulinas,
Prior Velho, 2014, XI, Uma Decisão Unilateral de Amor, “…ASSIM
COMO NÓS PERDOAMOS A QUEM NOS TEM OFENDIDO”, O que o Perdão não é, p.123.
(2)__________________
idem, ibidem.
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