sexta-feira, junho 09, 2023

QUANDO OS INFERNOS SÃO A MINHA SALVAÇÃO

 


A todos aqueles que fazem a santinha caridade junto dos sem-abrigo, que lhes deixam o descargo de consciência num pacotinho de leitinho, num pãozinho com queijinho, e em todos os demais “inhos”, aqui deixo o testemunho de um ex-sem-abrigo, verdadeiro exemplo de esperança, de desmedida capacidade de sonhar, uma verdadeira força da Natureza e de fé.

Nos tortuosos caminhos da vida, naquilo a que chamamos problemas e/ou karma, este exemplo de luta leva-nos ao ridículo quando falamos de problemas, fora do âmbito da saúde: uma humidade no tecto, uma unha que se partiu, estar atrasado para o ginásio, não saber o que fazer para o jantar...

Deus, em Sua sabedoria, deu-me o sublime privilégio de conhecer esta alma triunfante, e não seria justo guardá-la só para mim. Por isso, aqui vos deixo a Introdução das Notas de Conferência do Ricardo, um vulto no Ilusionismo português e nas Artes Marciais Kempo / Karaté, de que é instrutor, mas, e acima de tudo, um exemplo para a Humanidade.

“ Olá. O meu nome é Ricardo Pimenta, sou mágico de rua, embora também trabalhe noutros contextos com close-up (1) em eventos, casamentos, aniversários, etc. Foi no entanto na magia de rua que consegui ganhar algum destaque, experiência e o que gosto de chamar “calo”.

Por vezes fico preso ao dilema de contar ou não as minhas origens, pelo que temo que as pessoas confundam superação com vitimização. Mas a verdade é que já estive numa situação precária que me obrigou a viver nas ruas ainda que por pouco tempo.

Num desespero criativo, forcei-me não só a aprender “cups and balls “(2) como a fazê-lo com hamsters reais. Comprei os hamsters e uma gaiola com tudo o que me restava no bolso. Era o último “cartucho”…

Para meu espanto, à medida que lhe ia apanhando o jeito, tornou-se um sucesso nas ruas e ajudou-me a transitar para um hostel e mais tarde, finalmente para uma situação mais estável financeira e psicologicamente.

 

Desde a desenvolver resiliência, força de vontade, controlar mentalmente a fome, lavar a roupa em hostels, etc, inclusive treinava na casa de banho ou no quarto quando ninguém estava a ver para nunca enferrujar (mesmo nesta fase não deixei criar desculpas). Foi uma vida em que paradoxalmente me senti livre, de certa forma. O paradoxo de ser livre não tendo nada por garantido excepto uma ferramenta para obter o básico. Foi uma descida ao inferno, muitas noites de choro, menos 10kg e busca de forças que desconhecia.

Não deixei nunca que a minha paixão pela magia ou as artes marciais fosse posta de parte mesmo vivendo num inferno. Tanto que foi precisamente o que me salvou. Mesmo sem palco ou investimento em material, mesmo com o estômago tão apertado que doía quando comia, fiz o melhor que pude com o que tinha e sabia. Cups and balls com 4 hamsters vivos…

Hoje sei que como humanos ou como artistas devemos ser mais gratos por cada oportunidade de atuar, por cada cliente que nos contrate, por cada audiência que nos encoraje e aplaude. Gratos por termos uma casa onde ensaiar e estudar as nossas rotinas. Gratos por ter sequer a oportunidade de viver num país onde podemos exercer esta profissão.

E gratidão não significa o oposto de ambição. Pelo contrário, nunca fui tão ambicioso na vida como hoje, estendendo mesmo essa ambição até aos meus hábitos de exercício físico, alimentação, leitura, etc.

Uma ambição e disciplina que não sei se vos consigo passar por uma meras notas de conferência mas que desejo que as consigam alcançar.

A dor, meus caros leitores, não se deseja, mas quando é inevitável, é o melhor adubo para as nossas raízes, pois quanto mais amarga a batalha, mais doce é a vitória.

 

Hoje em dia, felizmente, não necessito de fazer magia de rua diariamente, porém vou sempre que posso durante algumas horas pois por mais aterrador que possa parecer, é uma experiência que me faz crescer. Se dá medo, então talvez seja o que mais devo enfrentar.

 

Se vos disser que me assusta a rua mas nunca me assustou um palco, parecerá parvo. Mas é esse calo que vos quero transmitir ao experimentarem vocês mesmos uma experiência semelhante ou simplesmente ficando a conhecer esta vertente da magia.

Como disse, a ideia não é vitimizar-me mas dar-te a ti leitor, um motivo para repensares na próxima vez que te ocorrer uma desculpa para não fazeres o que sabes que tens de fazer. Porque gostar de ser mágico e querer ser mágico são coisas diferentes.”

Margarida Azevedo

 

 

 

 

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Notas:

Fotografia e respectivas citações da responsabilidade de Ricardo Pimenta

1. Close-up – magia de proximidade;micromagia

2.Cups and Balls – Copos e Bolas – um efeito de ilusionismo com vários séculos de existência.

 

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