QUANDO OS INFERNOS SÃO A MINHA SALVAÇÃO
A
todos aqueles que fazem a santinha caridade junto dos sem-abrigo, que lhes
deixam o descargo de consciência num pacotinho de leitinho, num pãozinho com
queijinho, e em todos os demais “inhos”, aqui deixo o testemunho de um
ex-sem-abrigo, verdadeiro exemplo de esperança, de desmedida capacidade de
sonhar, uma verdadeira força da Natureza e de fé.
Nos
tortuosos caminhos da vida, naquilo a que chamamos problemas e/ou karma, este exemplo de luta leva-nos ao
ridículo quando falamos de problemas, fora do âmbito da saúde: uma humidade no
tecto, uma unha que se partiu, estar atrasado para o ginásio, não saber o que
fazer para o jantar...
Deus,
em Sua sabedoria, deu-me o sublime privilégio de conhecer esta alma triunfante,
e não seria justo guardá-la só para mim. Por isso, aqui vos deixo a Introdução
das Notas de Conferência do Ricardo, um vulto no Ilusionismo português e nas
Artes Marciais Kempo / Karaté, de que é instrutor, mas, e acima de tudo, um
exemplo para a Humanidade.
“
Olá. O meu nome é Ricardo Pimenta, sou mágico de rua, embora também trabalhe
noutros contextos com close-up (1) em eventos, casamentos,
aniversários, etc. Foi no entanto na magia de rua que consegui ganhar algum
destaque, experiência e o que gosto de chamar “calo”.
Por vezes fico
preso ao dilema de contar ou não as minhas origens, pelo que temo que as
pessoas confundam superação com vitimização. Mas a verdade é que já estive numa
situação precária que me obrigou a viver nas ruas ainda que por pouco tempo.
Num desespero
criativo, forcei-me não só a aprender “cups and balls “(2) como a fazê-lo com hamsters reais. Comprei os
hamsters e uma gaiola com tudo o que me restava no bolso. Era o último
“cartucho”…
Para meu espanto,
à medida que lhe ia apanhando o jeito, tornou-se um sucesso nas ruas e
ajudou-me a transitar para um hostel e mais tarde, finalmente para uma situação
mais estável financeira e psicologicamente.
Desde a desenvolver
resiliência, força de vontade, controlar mentalmente a fome, lavar a roupa em
hostels, etc, inclusive treinava na casa de banho ou no quarto quando ninguém
estava a ver para nunca enferrujar (mesmo nesta fase não deixei criar
desculpas). Foi uma vida em que paradoxalmente me senti livre, de certa forma.
O paradoxo de ser livre não tendo nada por garantido excepto uma ferramenta
para obter o básico. Foi uma descida ao inferno, muitas noites de choro, menos
10kg e busca de forças que desconhecia.
Não deixei nunca
que a minha paixão pela magia ou as artes marciais fosse posta de parte mesmo
vivendo num inferno. Tanto que foi precisamente o que me salvou. Mesmo sem
palco ou investimento em material, mesmo com o estômago tão apertado que doía
quando comia, fiz o melhor que pude com o que tinha e sabia. Cups and balls com
4 hamsters vivos…
Hoje sei que como
humanos ou como artistas devemos ser mais gratos por cada oportunidade de
atuar, por cada cliente que nos contrate, por cada audiência que nos encoraje e
aplaude. Gratos por termos uma casa onde ensaiar e estudar as nossas rotinas.
Gratos por ter sequer a oportunidade de viver num país onde podemos exercer
esta profissão.
E gratidão não
significa o oposto de ambição. Pelo contrário, nunca fui tão ambicioso na vida
como hoje, estendendo mesmo essa ambição até aos meus hábitos de exercício
físico, alimentação, leitura, etc.
Uma ambição e
disciplina que não sei se vos consigo passar por uma meras notas de conferência
mas que desejo que as consigam alcançar.
A dor, meus caros
leitores, não se deseja, mas quando é inevitável, é o melhor adubo para as
nossas raízes, pois quanto mais amarga a batalha, mais doce é a vitória.
Hoje em dia,
felizmente, não necessito de fazer magia de rua diariamente, porém vou sempre
que posso durante algumas horas pois por mais aterrador que possa parecer, é
uma experiência que me faz crescer. Se dá medo, então talvez seja o que mais
devo enfrentar.
Se vos disser que
me assusta a rua mas nunca me assustou um palco, parecerá parvo. Mas é esse
calo que vos quero transmitir ao experimentarem vocês mesmos uma experiência
semelhante ou simplesmente ficando a conhecer esta vertente da magia.
Como disse, a
ideia não é vitimizar-me mas dar-te a ti leitor, um motivo para repensares na
próxima vez que te ocorrer uma desculpa para não fazeres o que sabes que tens
de fazer. Porque gostar de ser mágico e querer ser mágico são coisas
diferentes.”
Margarida Azevedo
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Notas:
Fotografia
e respectivas citações da responsabilidade de Ricardo Pimenta
1.
Close-up – magia de proximidade;micromagia
2.Cups and Balls – Copos e Bolas – um
efeito de ilusionismo com vários séculos de existência.
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