AS MANIFESTAÇÕES CONTRA O RACISMO SÃO MANIFESTAÇÕES RACISTAS
O carácter
baseia-se em ações virtuosas que são fundamentadas na verdade. A verdade é,
portanto, a fonte e a base fundamental para todas as coisas que são boas e
grandiosas. Assim, a busca resoluta e sem medo do ideal da verdade e da conduta
correta é a chave da verdadeira saúde, assim como de tudo o resto.
Gandhi*
Com 50 anos de doutrinação política deformadora, onde
abundam os clichés e perigosamente dualista, isto é, dualidades do tipo bom/mau,
branco/preto, azul/verde, a sociedade foi sedimentando atitudes e modos de
estar que, chegados ao século XXI, estão a dar os seus frutos amargos e
nocivos.
Doutrinados para não pensar, tentam apagar as
benfeitorias construídas em séculos de história, na formatação mental que foi
sendo construída ao longo de décadas. Sedimentando-se o discurso do ódio,
confundido com um discurso emancipador portador de uma reacção cheia de sentido
face a um explorador sanguinário que tem que ser abatido, impôs-se uma
segregação jamais existente na sociedade portuguesa. Hoje diz-se o que nunca se
pensou dizer, em uma estranheza de cada um perante si próprio.
Confundindo Racismo e Escravatura, pretende-se apagar uma
era, sob pretexto de com o apagão se acabar com o mal, dando uma imagem do
presente como algo que surge de geração espontânea, sem passado, isto é, sem
uma linha condutora como é próprio da História. Com isso se pretende dar ao
presente um aspecto limpo e atractivo, fazer dele um período de inauguração de
novos tempos cheios de virtude, camuflando o próspero negócio do tráfico humano,
de todas as raças, acrescente-se.
Antropólogos
alemães chegaram à conclusão de que nunca houve tanta escravatura como hoje.
Podemos não ter o ferro com o número, podemos não ter perdido uma batalha ou
uma guerra e ficarmos à mercê de um senhor, mas temos a segregação, a riqueza
cada vez mais centrada em um punhado de espertos, terrenos férteis incultos,
fogos postos nas florestas com a culpa sobre bodes expiatórios, fome e miséria
a aumentar a olhos vistos, em nome de uma vontade esquizofrénica de criar um
exército de gente disponível para tudo o que se quiser fazer. Assim se constroem-se
barreiras contra o progresso civilizacional, cria-se o fosso entre pobres e
ricos, implementa-se a alienação mediante um conceito de felicidade baseado no
consumismo poluidor. É a virtude e a felicidade do desnecessário. Compram-se
produtos baratos e fazem-se fortunas a troco de trabalhadores com salários de
miséria, a viver em condições miseráveis, faz-se figura de rico só porque se
tem nas mãos um produto electrónico, produzido nas cadeias obtusas de produção
sem direitos humanos (em todas as raças). Mas isto não é tema para as
manifestações.
Porque
culpabilizadoras de uma só raça, Branca, confusas e manipuladas, as
manifestações contra o racismo alimentam a discriminação e a segregação ao
invés de a combaterem. Mercê do clique que nos expõe ao mundo através da
internet, os problemas específicos de uma sociedade depressa se tornam
endémicos. As nossas sociedades tornaram-se caricaturas, generalizando
problemas e modus operandi. Deita-se
abaixo uma estátua de um traficante de escravos, em Inglaterra. Muito bem. E o
resto, também veio abaixo? Há uma atitude igualmente repulsiva contra os
comerciantes de gente que, em qualquer parte do mundo, vendem os da sua tribo/casta/desempregados/mulheres/crianças
aos traficantes (de todas as raças)? Mas isto não vai às manifestações. É que,
no próspero e escandaloso negócio de pessoas, não há raça nem nacionalidade. Há
os poderosos e há os outros, em qualquer parte do mundo, em qualquer época,
prova de que a evolução civilizacional não se pode confundir com revolução
tecnológica. Lutar contra o racismo é lutar contra todos os comportamentos desviantes por motivos raciais, venham eles
de onde vierem.
Sabe-se
que é próprio da multidão os ânimos à flor da pele, a emotividade, o grito
reivindicativo, quantas vezes irreflectido. Porém, porque manipuladas por
interesses escusos, pouco ou nada definidos, as manifestações são multidões de
gente que diz o que não pensa, que muitas vezes até vai contra os ideais e
interesses dos manifestantes. Os ímpetos não são bons conselheiros e, como tal,
não podemos permitir que, em nome de um ideal, se anulem outros de grande valor
civilizacional tais como sociais, económicos, espirituais. As manifestações
contra o racismo não podem ser um chorrilho de discursos de ódio contra raça
nenhuma. Pelo contrário, devem ser momentos de convergência de ideais nobres, objectivando
o progresso de uma sociedade que se quer pluralista e inclusiva.
Vão longe os tempos em que as manifestações, que apesar
da emotividade característica das mesmas, se moviam impulsionadas pelo desejo
de mudar alguma coisa, de trazer à praça pública o descontentamento com
injustiças sociais, laborais, perda de direitos, ou a luta pela conquista dos
mesmos. Hoje, o descontentamento é arma de arremesso nas mãos dos manipuladores
que, sem escrúpulos, o utilizam para desviar a atenção da verdadeira raiz dos
problemas.
E
uma das verdadeiras raízes é o facto de todos querem vir para a terra do antigo
colonizador, porque na sua se tornou insuportável viver. Certamente porque na
Europa ainda há um fundo de esperança de uma vida melhor, uma vida com alguma
dignidade, é onde ainda é possível sonhar. Porém, vítimas do embuste, não são
poucos os que caiem nas mãos do vigário. Quanto à sua terra, porque em guerra,
porque com regimes insuportavelmente corruptos, ou por outras razões, se não é
um lugar onde se possa viver com a dignidade que um ser humano merece, então o
melhor é partir. Eu sei o que isso é. Também sou filha de emigrantes, aliás,
estou numa família de emigrantes (tenho família em França há 60 anos, a maioria
nem português falam. No entanto, jamais se disse algo contra o país/países que
os receberam).
Na manifestação grita-se que o racismo está a aumentar em
Portugal. Será? Não seria melhor reflectir por que muitas pessoas se revoltam
contra determinados comportamentos? Este é outro problema. A associalização é o
móbil da discriminação, criando uma sociedade de hostis. Aquilo a que estamos a
assistir é ao crescimento da aceitação forçada de comportamentos, quando
praticados por uma raça ou etnia, mas que são penalizados quando praticados por
outra.
Com leis cada vez mais desculpabilizadoras do erro, em
nome de uma falsa noção de tolerância, põe-se em risco a identidade social,
cria-se a tensão entre os cidadãos e culpa-se a democracia como sendo um regime
falhado. Efectivamente, a continuar assim, chama-se democracia, porque é um
vocábulo simpático, a um regime que não é carne nem peixe. Ora é essa “coisa” indefinida
que interessa aos manipuladores.
Um
dos problemas que a sociedade global levanta é precisamente o da identidade. O
que é hoje a identidade racial? Não se sabe. Quando uma pessoa sai do seu país
de origem e vai viver noutro, deve ir receptiva ao que irá encontrar. Dito de
outro modo, não são apenas os outros que devem aceitar quem chega, é também
quem chega que deve tornar-se aceitável para os outros. Até porque, parece, é
impossível manter os mesmos comportamentos e costumes em locais e momentos
completamente diferentes (o aqui e agora são determinantes para as atitudes que
tomamos). Há sempre mudanças estruturais que implicam qualquer coisa do género:
sair de um lugar para outro é deixar para trás alguma coisa e abrir-se a novas
realidades. Tem sempre que haver uma adaptação, uma mudança. Não há sociedades
sem contágios culturais. Todos somos emissores e receptores, todos damos e
recebemos alguma coisa.
Porém,
cada vez mais as pessoas se vão calando a situações absolutamente intoleráveis,
comportamentos inaceitáveis. Está instalado o medo de falar, de dizer “não está bem”. Atrever-se a falar é
sujeitar-se a ser chamado de racista, xenófobo e, quem sabe, candidatar-se a um
processo judicial, e até perder o emprego e ser lançado na marginalidade – ter
ou não razão, nem sequer é questão que se levante -. Por outro lado, são
conferidas regalias, direitos e deveres com os quais na sua terra nem sonhavam,
a indivíduos que, não poucos, odeiam quem lhos oferece e quem os paga com os seus impostos. Assim se
alimentam comportamentos arrogantes, olhares de ódio movidos por complexos de
inferioridade racial, e não só, se criam tensões que dificilmente se apagam,
tendo como pano de fundo os silêncios da revolta, ou a revolta silenciada. O
resultado é o virar das costas, o olhar distorcido, o implementar da
indiferença.
As
manifestações contra o racismo, que se confundem com reacções contra a raça
Branca, desculpabilizam as restantes, vitimizando-as, fazendo dos Brancos os
maus da sociedade, da vida e do mundo. Dividindo os cidadãos entre santos e
diabos, este tudo e nada culmina numa instrumentalização das mentes, em uma
ausência de valores de tal forma que quem é odiento e complexado com a sua cor
de pele sai de lá ainda pior.
O racismo é transversal à humanidade e só pela educação
se pode combater. Ele existe em indivíduos de todas as raças, isto é, não há
raças sem racistas, infelizmente. Ora, a educação é o aprendizado de regras,
entre elas a do respeito mútuo, da tolerância e da igualdade perante a Lei. O
que na prática, mercê da desculpabilização agoniante e do silêncio forçado, não
está acontecer.
Lamentavelmente, aquilo que verdadeiramente se deveria
combater, a ideologia Racismo,
permanece intocável, e isso é que é preocupante. Ninguém parece estar
interessado em educar, formar, fazer convergir num mesmo ideal, a saber, o de
uma sociedade com lugar para todos, onde todos os cidadãos têm os mesmos
direitos e deveres. Pelo contrário, inventam-se culpados e vítimas,
constroem-se sensibilidades à flor da pele, implementa-se a desconfiança e o
atrito de tal forma que as pessoas se olham com indiferença e revolta. O medo
está instalado. Ninguém se conhece nem se quer conhecer. Vive-se
compartimentado e segregado. A própria sombra assusta.
As manifestações, porque são um mar de gente, podiam ser
momentos de grande abordagem conjunta do motivo que as incentiva, motivo que se
deseja emancipado e livre. Isso não seria impossível. Tudo iria depender do
líder que as dirige. Só que isso iria implicar uma luta genuína por um ideal
colectivo, sem manipulações, uma reconfiguração do que deve ser uma
manifestação, bem como uma abordagem dos problemas isenta.
Em matéria racial não há só vítimas e só culpados. É a
nossa ignorância quanto ao diferente, e a ignorância cria a temeridade, que
leva a atitudes repreensíveis. Face a isso, há todo um aprendizado que tem que
ser feito, que tem vários caminhos, mas com toda a certeza o do medo não é um
deles. Uma sociedade onde impera o medo, o silêncio, a discriminação, seja ela
por que motivo for, jamais se pode chamar democrata.
Ninguém se está a tornar racista. Nem são os cidadãos que
criam o mal-estar. A culpa está em quem os manipula, em quem decide, em quem
aplica a Lei. Se isso não mudar, não se perspectiva uma sociedade tolerante. E
a tolerância é o pão da democracia.
Margarida Azevedo
P.S. É claro que não se revêem neste texto os daltónicos,
os pacifistas, os reencarnacionistas, que acreditam que em uma vida somos de
uma raça e noutra seremos de outra; nem aqueles que se consideram seres em
evolução, cheios de defeitos, mas lutadores contra os seus maus pendores.
Também não se revêem aqueles que se dizem muito ignorantes, que vivem em aprendizado
permanente, que dizem que passamos pelo planeta em jeito de lição, rumo à Luz e
à Fraternidade. Nem se revê aquele que vive em paz consigo próprio, com o outro
e com Deus.
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*MAHATMA, G., O Caminho da Paz, 4 Estações Editora,
lda., Parede, 2020, 2. A verdade é a
fonte do carácter, p.54.
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