sábado, julho 29, 2023

RUMO A UM NOVO CRISTIANISMO III


 

“E vieram os fariseus e os saduceus que, testando-o, lhe pediram que lhes mostrasse um sinal do céu. Jesus, respondendo, disse-lhes: “Ao entardecer vós dizeis: “Fará bom tempo, pois o céu está vermelho.” E de manhã:” Hoje vai estar mau tempo, pois o céu está vermelho e carregado.” Sabeis avaliar o aspeto do céu, mas não conseguis <fazer o mesmo em relação a> os sinais dos tempos? Uma raça iníqua e adúltera procura um sinal, mas o sinal não lhe é dado, a não ser o sinal de Jonas.” E deixando-os, foi-se embora.”* (Mt 16: 1-4)

            Nos nossos momentos de recolhimento, e passando os olhos por esta perícopa, que sinais pediríamos nós hoje a Jesus? Como cristãos, a que sinais nos referiríamos, ou de que sinais somos transportadores? Já não sabemos ler os sinais do tempo, vamos à internet; também já não perguntamos a ninguém opinião sobre o que quer que seja, é mais fácil e seguro clicar sobre uma tecla e ter o mundo a opinar num segundo.  

Este teste transporta-nos inevitavelmente para outro mundo. Lembremo-nos de que naquela altura não bastava dizer-se profeta, havia que dar provas disso. Porém, e porque a intenção não era saber mas de fazer um teste de má-fé, as provas milagrosas ou espectaculares que esperavam não aconteceram. Pelo contrário, foram os inquiridores os testados e confrontados com uma crítica contundente por não entenderem nada dos assuntos do céu. Hoje, colocando inevitavelmente a mesma questão, que resposta nos daria Jesus? Se calhar, é melhor nem pensar.

Estamos a ser uma humanidade cheia de vulnerabilidades: afectivas, de fé, familiares, profissionais, civilizacionais, e muitas mais. A procura do religioso, seja por quais destes motivos for, é sempre uma procura pelo mundo, prisioneira do nosso universo caracterizado pela problematicidade. Continuamos sem saber de onde viemos, porque estamos aqui e para onde iremos. Continuamos a ser os grandes desconhecidos à procura de uma explicação que nos satisfaça, não propriamente a curiosidade, mas que, de alguma forma, nos garanta estabilidade e nos permita continuar a viver de uma forma sofrível, aceitável, com uma nesga de momentos de alguma alegria.

Dito de outro modo, a vulnerabilidade abre-nos caminhos, não nos encerra. Isto é, cada momento da vida, por mais doloroso que seja, o cristão vê-o como uma possibilidade. A cruz é um móbil poderoso, que não desejamos, que repelimos, que se nos impõe mediante propósitos que nos escapam, não aquela a que, karmicamente ou não, nos propomos submeter para pagar um débito qualquer de um passado mais ou menos remoto. “A verdadeira cruz é aquela que nós não queremos…caso contrário, de cruz pouco teria.” (1) E James Martin acrescenta “a cruz não é consequência do pecado.” (idem, ibidem) A cruz ainda faz parte da natureza de um animal irreverente, para o qual a fé é uma força que acorre em seu auxílio nos momentos mais sequazes. Cruz e Homem fundem-se existencialmente, por isso o pecado fala uma outra linguagem que não a da cruz. É bom lembrar que “Mesmo aquele que não tinha pecado sofreu.” (idem, ibidem)

Como enquadra o Cristianismo a problemática do sinal, do teste, do pecado e da cruz nos dias de hoje? Inevitavelmente, somos levados numa onda descontrolada, fora do âmbito do religioso, muito impulsiva, que se baseia na mudança, só que ninguém sabe qual. Por isso, não esclarece nem parece em conformidade com uma noção de equilíbrio que não se é capaz de definir mas que defende como uma virtude. Por outras palavras, esta onda que só tem gerado insegurança porque filha da insensatez, dá um sinal do Cristianismo como uma força política mais que religiosa. O Cristianismo anseia, voraz, por marcar território, afirmar-se no mundo, conquistar espaço, dominar todos os quadrantes da vida. Porém, está cada vez mais distante de dar uma resposta satisfatória ao momento actual. Por isso surgem cada vez mais organizações cristãs procurando, cada uma de per si, conquistar o lugar da resposta. Mas não está a ser fácil, ou porque se perdem na vaidade do discurso fácil e manipulador, ou porque ambicionam um lugar à sombra na sociedade. Falta-lhes Jesus.

O Cristianismo sempre se debateu, e com isso se perdeu no tempo e muito na fé, com grandes questões internas desde a sua formação até aos nossos dias. Ora porque temia a fusão com o Paganismo, ou, numa vertente contrária, com o Judaísmo. Com isso foi perdendo o Cristo Jesus e impondo uma força fictícia que apagou parte significativa da sua herança judaica, do helenismo, bem como da força dos ensinamentos de Jesus, os quais deturpou a seu bel-prazer.

 A grande luta do Cristianismo como doutrina sumamente salvífica contra o Paganismo; com a Inquisição, contra os bruxos; com o Holocausto, contra os Judeus; com a política, contra a laicização; com os descrentes, contra os sinais dos tempos. E hoje, contra quem ou contra o quê está o Cristianismo? Haverá ainda mais alguma coisa contra a qual combater? As novas igrejas cristãs estão cada vez mais paganizadas. Há uma concorrência infernal entre elas, precisamente porque não significam esclarecimento de fé, mas nascem da revolta contra a instituição Cristianismo, crendo que inauguram uma nova era cristã. Envereda-se hoje por um cristianismo simpático, sorridente e poético, em ambiente de autêntica orgia de suposta fé libertadora. Se dantes era à espada, hoje é à mesa em grandes comeretes e beberetes. Quanto a servir desinteressadamente o próximo, servir o próprio Cristianismo, vestir o escândalo do Cristo Redentor Ressuscitado, isso é para outras núpcias. O escândalo da Cruz, concomitante com a nossa natureza essencialmente propensa ao escândalo também, mas rejeitando-o impiedosamente, é o rosto da própria fé ainda cambaleante.

Ora, ser cristão é, efectivamente, assumir uma apresentação diferente do religioso, não pela via da superioridade, mas pelo escândalo da Cruz, de uma condenação: o cristão prega um Crucificado.

Estamos longe da epopeia, dos heróis, dos soldados que se confundem com os deuses e dos deuses intriguistas e tendenciosos antropomórficos, desejando ser humanos, apenas, ou confundindo-se com eles. Estamos, pelo contrário, no cerne da própria fé, o mesmo é dizer, da natureza humana. A fé cristã vive com o escândalo da Cruz. Kierkegaard esclarece que “Porque tal é a lei: quem abolir a fé abole a possibilidade do escândalo (..); e quem abolir a possibilidade do escândalo abole a fé” (2). E mais à frente esclarece que” os dezoito séculos não contribuíram para um enriquecimento que provasse a verdade do cristianismo; pelo contrário, contribuíram com uma força cada vez maior para abolir o cristianismo.” (idem, ibidem) É este o sinal do cristão: o escândalo da Cruz.

A formatação mental que pretende alargar-se ao mundo inteiro, jamais permitirá explicar esta realidade: a Cruz. Fictícia porque baseada nos interesses comerciais e económicos, criando dependências perigosas, subjugação esclavagista a quem não cumprir com os requisitos da ambição avara de doentes mentais mal disfarçados, uma abordagem saudável da Cruz e do sofrimento é abafada porque ninguém quer falar deles. Como combatê-los, então?

Os cristãos, mais como resultado das aflições, que não são nem a Cruz nem o sofrimento, mas a ambição e ganância pelo poder, e mercê de uma consciência pesada, esperam por um novo cristianismo como uma forma renovada da fé que não é fé, mas avareza. Porém, a renovação não radica nos confessionários, nem vem por um processo milagroso. A renovação do Cristianismo jamais será uma limpeza mitológica. A mitologização nada tem a ver com os evangelhos. A mudança vem de dentro. E são chegados os tempos em que temos que mudar. Passarmos inevitavelmente a ser outros. Cortar com o abismo hermenêutico conducente ao maxismo de uns em prol do minismo de outros.

            Porém, a problemática da limpeza do Cristianismo não é nova e não começa só com os cristãos. O Cristianismo limpa-se também com a própria sociedade, porque está dentro dela. A sociedade civil também tem uma palavra a dizer, e a exigir, dos movimentos religiosos, e nomeadamente do Cristianismo, em qualquer ponto em que ele estiver implementado. E isto não é uma novidade. Constantino, por exemplo, que supostamente se converteu ao Cristianismo, trouxe para dentro deste o seu culto pagão ao Sol, bastante difundido pelo Mediterrâneo e Ásia Menor. Tudo se modifica na medida em que estiver ciente de que há sempre contágios. Vamos ver é se eles começam a ser para as coisas boas.

(cont.)

 

            Margarida Azevedo

Referências:

(*)Trad. Frederico Lourenço

(1) SJ. MARTIN, James, Jesus, Um Encontro Passo a Passo, Paulinas, Prior Velho, 2014, cap. 22, Ressuscitado, p.452.

(2)KIERKEGAARD,S., L´école du christianisme, Éditions de l´Oriente, Paris, 1982, 7. L´Homme-Dieu est objet de foi justement parce qu´il est la possibilite du scandale, pp.131. Trad. Azevedo, M

(3) _________idem, p. 132. Trad. Azevedo, M.

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