RUMO A UM NOVO CRISTIANISMO III
“E vieram os fariseus e os saduceus que, testando-o, lhe pediram que lhes mostrasse um sinal do céu. Jesus, respondendo, disse-lhes: “Ao entardecer vós dizeis: “Fará bom tempo, pois o céu está vermelho.” E de manhã:” Hoje vai estar mau tempo, pois o céu está vermelho e carregado.” Sabeis avaliar o aspeto do céu, mas não conseguis <fazer o mesmo em relação a> os sinais dos tempos? Uma raça iníqua e adúltera procura um sinal, mas o sinal não lhe é dado, a não ser o sinal de Jonas.” E deixando-os, foi-se embora.”* (Mt 16: 1-4)
Nos
nossos momentos de recolhimento, e passando os olhos por esta perícopa, que
sinais pediríamos nós hoje a Jesus? Como cristãos, a que sinais nos
referiríamos, ou de que sinais somos transportadores? Já não sabemos ler os
sinais do tempo, vamos à internet; também já não perguntamos a ninguém opinião
sobre o que quer que seja, é mais fácil e seguro clicar sobre uma tecla e ter o
mundo a opinar num segundo.
Este
teste transporta-nos inevitavelmente para outro mundo. Lembremo-nos de que
naquela altura não bastava dizer-se profeta, havia que dar provas disso. Porém,
e porque a intenção não era saber mas de fazer um teste de má-fé, as provas
milagrosas ou espectaculares que esperavam não aconteceram. Pelo contrário,
foram os inquiridores os testados e confrontados com uma crítica contundente
por não entenderem nada dos assuntos do céu. Hoje, colocando inevitavelmente a
mesma questão, que resposta nos daria Jesus? Se calhar, é melhor nem pensar.
Estamos
a ser uma humanidade cheia de vulnerabilidades: afectivas, de fé, familiares,
profissionais, civilizacionais, e muitas mais. A procura do religioso, seja por
quais destes motivos for, é sempre uma procura pelo mundo, prisioneira do nosso
universo caracterizado pela problematicidade. Continuamos sem saber de onde
viemos, porque estamos aqui e para onde iremos. Continuamos a ser os grandes
desconhecidos à procura de uma explicação que nos satisfaça, não propriamente a
curiosidade, mas que, de alguma forma, nos garanta estabilidade e nos permita
continuar a viver de uma forma sofrível, aceitável, com uma nesga de momentos
de alguma alegria.
Dito
de outro modo, a vulnerabilidade abre-nos caminhos, não nos encerra. Isto é,
cada momento da vida, por mais doloroso que seja, o cristão vê-o como uma
possibilidade. A cruz é um móbil poderoso, que não desejamos, que repelimos,
que se nos impõe mediante propósitos que nos escapam, não aquela a que,
karmicamente ou não, nos propomos submeter para pagar um débito qualquer de um
passado mais ou menos remoto. “A
verdadeira cruz é aquela que nós não queremos…caso contrário, de cruz pouco
teria.” (1) E James Martin acrescenta “a cruz não é consequência do pecado.” (idem,
ibidem)
A cruz ainda faz parte da natureza de um animal irreverente, para o qual a fé é
uma força que acorre em seu auxílio nos momentos mais sequazes. Cruz e Homem
fundem-se existencialmente, por isso o pecado fala uma outra linguagem que não
a da cruz. É bom lembrar que “Mesmo
aquele que não tinha pecado sofreu.” (idem, ibidem)
Como
enquadra o Cristianismo a problemática do sinal, do teste, do pecado e da cruz
nos dias de hoje? Inevitavelmente, somos levados numa onda descontrolada, fora
do âmbito do religioso, muito impulsiva, que se baseia na mudança, só que
ninguém sabe qual. Por isso, não esclarece nem parece em conformidade com uma
noção de equilíbrio que não se é capaz de definir mas que defende como uma
virtude. Por outras palavras, esta onda que só tem gerado insegurança porque
filha da insensatez, dá um sinal do Cristianismo como uma força política mais
que religiosa. O Cristianismo anseia, voraz, por marcar território, afirmar-se
no mundo, conquistar espaço, dominar todos os quadrantes da vida. Porém, está
cada vez mais distante de dar uma resposta satisfatória ao momento actual. Por
isso surgem cada vez mais organizações cristãs procurando, cada uma de per si,
conquistar o lugar da resposta. Mas não está a ser fácil, ou porque se perdem
na vaidade do discurso fácil e manipulador, ou porque ambicionam um lugar à
sombra na sociedade. Falta-lhes Jesus.
O
Cristianismo sempre se debateu, e com isso se perdeu no tempo e muito na fé,
com grandes questões internas desde a sua formação até aos nossos dias. Ora
porque temia a fusão com o Paganismo, ou, numa vertente contrária, com o
Judaísmo. Com isso foi perdendo o Cristo Jesus e impondo uma força fictícia que
apagou parte significativa da sua herança judaica, do helenismo, bem como da
força dos ensinamentos de Jesus, os quais deturpou a seu bel-prazer.
A grande luta do Cristianismo como doutrina
sumamente salvífica contra o Paganismo; com a Inquisição, contra os bruxos; com
o Holocausto, contra os Judeus; com a política, contra a laicização; com os
descrentes, contra os sinais dos tempos. E hoje, contra quem ou contra o quê
está o Cristianismo? Haverá ainda mais alguma coisa contra a qual combater? As
novas igrejas cristãs estão cada vez mais paganizadas. Há uma concorrência
infernal entre elas, precisamente porque não significam esclarecimento de fé,
mas nascem da revolta contra a instituição Cristianismo, crendo que inauguram
uma nova era cristã. Envereda-se hoje por um cristianismo simpático, sorridente
e poético, em ambiente de autêntica orgia de suposta fé libertadora. Se dantes
era à espada, hoje é à mesa em grandes comeretes e beberetes. Quanto a servir
desinteressadamente o próximo, servir o próprio Cristianismo, vestir o
escândalo do Cristo Redentor Ressuscitado, isso é para outras núpcias. O
escândalo da Cruz, concomitante com a nossa natureza essencialmente propensa ao
escândalo também, mas rejeitando-o impiedosamente, é o rosto da própria fé
ainda cambaleante.
Ora,
ser cristão é, efectivamente, assumir uma apresentação diferente do religioso,
não pela via da superioridade, mas pelo escândalo da Cruz, de uma condenação: o
cristão prega um Crucificado.
Estamos
longe da epopeia, dos heróis, dos soldados que se confundem com os deuses e dos
deuses intriguistas e tendenciosos antropomórficos, desejando ser humanos,
apenas, ou confundindo-se com eles. Estamos, pelo contrário, no cerne da
própria fé, o mesmo é dizer, da natureza humana. A fé cristã vive com o
escândalo da Cruz. Kierkegaard esclarece que “Porque tal é a lei: quem abolir a fé abole a possibilidade do escândalo (..);
e quem abolir a possibilidade do escândalo abole a fé” (2).
E mais à frente esclarece que” os dezoito
séculos não contribuíram para um enriquecimento que provasse a verdade do
cristianismo; pelo contrário, contribuíram com uma força cada vez maior para
abolir o cristianismo.” (idem, ibidem)
É este o sinal do cristão: o escândalo da Cruz.
A
formatação mental que pretende alargar-se ao mundo inteiro, jamais permitirá
explicar esta realidade: a Cruz. Fictícia porque baseada nos interesses
comerciais e económicos, criando dependências perigosas, subjugação
esclavagista a quem não cumprir com os requisitos da ambição avara de doentes
mentais mal disfarçados, uma abordagem saudável da Cruz e do sofrimento é
abafada porque ninguém quer falar deles. Como combatê-los, então?
Os
cristãos, mais como resultado das aflições, que não são nem a Cruz nem o
sofrimento, mas a ambição e ganância pelo poder, e mercê de uma consciência
pesada, esperam por um novo cristianismo como uma forma renovada da fé que não
é fé, mas avareza. Porém, a renovação não radica nos confessionários, nem vem por
um processo milagroso. A renovação do Cristianismo jamais será uma limpeza
mitológica. A mitologização nada tem a ver com os evangelhos. A mudança vem de
dentro. E são chegados os tempos em que temos que mudar. Passarmos
inevitavelmente a ser outros. Cortar com o abismo hermenêutico conducente ao
maxismo de uns em prol do minismo de outros.
Porém, a problemática da limpeza do Cristianismo não é
nova e não começa só com os cristãos. O Cristianismo limpa-se também com a
própria sociedade, porque está dentro dela. A sociedade civil também tem uma
palavra a dizer, e a exigir, dos movimentos religiosos, e nomeadamente do
Cristianismo, em qualquer ponto em que ele estiver implementado. E isto não é
uma novidade. Constantino, por exemplo, que supostamente se converteu ao
Cristianismo, trouxe para dentro deste o seu culto pagão ao Sol, bastante
difundido pelo Mediterrâneo e Ásia Menor. Tudo se modifica na medida em que
estiver ciente de que há sempre contágios. Vamos ver é se eles começam a ser
para as coisas boas.
(cont.)
Margarida Azevedo
Referências:
(*)Trad.
Frederico Lourenço
(1)
SJ. MARTIN, James, Jesus, Um Encontro
Passo a Passo, Paulinas, Prior Velho, 2014, cap. 22, Ressuscitado, p.452.
(2)KIERKEGAARD,S.,
L´école du christianisme, Éditions de
l´Oriente, Paris, 1982, 7. L´Homme-Dieu est objet de foi justement
parce qu´il est la possibilite du scandale, pp.131. Trad. Azevedo, M
(3)
_________idem, p. 132. Trad. Azevedo, M.
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