NATAL 2023
É impossível
separar o Homem da fé.
António Manuel Bento
Se há festividades religiosas e espiritualidades
fecundas, esmagadoramente exuberantes, contagiantes e avassaladoras, nenhuma
iguala o Natal.
Encher as localidades de luzes cintilantes,
pintar as ruas de gente vestida de Pai Natal, de outros a cantar e a tocar, ou
a transportar presentes para crianças e adultos, e a desejar a Boas Festas,
apaga a infinidade de sem importâncias de um ano inteiro a que vulgarmente nos
dedicamos.
Contudo, é necessário separar as luzes da
oração, não lhes permitir o silêncio de palavras benditas, nem descolorir os
corações do calor que só o amor é capaz. A festividade reluzente e extroversora
não pode esterilizar o Natal, embrulhando-o de pequenos nadas.
Por mais azáfama que haja, o Natal é
naturalmente uma paragem: no sofrimento, por maior que ele seja, e não deixe de
estar presente; na distância que criamos entre nós, na ausência de
espiritualidade no “não há tempo” do
quotidiano. Há sempre um momentinho de felicidade na maior das angústias, uma
pequena reflexão, por mais insignificante que pareça, um toque de ternura, um
chamamento, qual voz do Divino, que, ainda que tímida ou acanhadamente se faz
presente, e não escolhe corações. O Natal não nos divide entre mais ou menos
sofredores, mais ou menos ricos, mais ou menos sábios. No Natal somos todos
festa, todos celebração, todos irmãos, porque o Natal não é apenas um dia, mas
um dia que celebra a eternidade do nascer.
Numa época em que ter um filho se
tornou um acto pensado e repensado, bem reflectido e economicamente avaliado,
não porque se tema falhar enquanto pai ou mãe, porque se vive a preocupação de
que não vão faltar aos filhos os supérfluos inventados pela sociedade de
consumo, o Natal da manjedoura transporta-nos para a simplicidade do amor
verdadeiro, aquele que está livre dos vernizes brilhantes do efémero, a que
damos tanta importância.
Que
queremos nós mais? Ter um filho é ter um filho. Não tem complicações. Em
qualquer lado se nasce, em qualquer momento. Nascer é vir ao outro mundo, sim,
nós somos o outro mundo, o mundo em que nascer se faz carne, o infinito
finitiza-se, o invisível torna-se visível. Somos portadores de tudo isso na
medida em que somos filhos de Deus, criados simples e ignorantes, preparados
para a descoberta da alegria que é viver.
Cada um de nós é um ínfimo Jesus. Nascemos
nus e recebemos presentes, como Ele, e, tal como Ele, nascemos para uma família
universal, para amar incondicionalmente, para trazermos uma mensagem
renovadora.
Já nos dispusemos a pensar: Que mensagem trago eu para o mundo? O que é
que Deus gostaria que eu dissesse? E fizesse? Que exemplo sou de humanidade?
Que filho/a de Deus sou eu? Em que medida o meu natal pessoal se confunde com o
de Jesus?
Para nos entregarmos à aventura das
respostas, temos que primeiramente nos converter a outros horizontes, tais
como: ter uma família não pode ser um luxo, amar ser um desejo longínquo, o
amor um sentimento inatingível, uma família estável uma quimera.
A vida tornou-se uma fragilidade, um
sem-importância, uma qualquer coisa que qualquer coisa com ares de importante
derruba. Tudo se sobrepõe, no momento difícil e complexo que atravessamos, à
importância da vida.
Vivemos rodeados de coisas que nos atacam,
quantas vezes até as próprias religiões com o fanatismo que implementam.
Algumas coisas, ainda somos capazes de combater, outras, mercê dos seus ardis,
nem damos por elas e enterramo-nos no seu lodo.
E, neste cenário, o que é amar? O
que é que amo quando digo que amo? Amar é uma transcendência, é compreender que
a vida material é o necessário palco da espiritualidade, esta que é a nossa,
com todos os nossos quês e porquês.
Por mais que tentem finitizar a
vida, descaracterizá-la, afundá-la nos ardis da luxúria ou da ganância, ela
será sempre infinita, magnânima, extraordinariamente simples, uma força
vertiginosa.
Vivem-se mitos, não para explicar o
inexplicável, mas o do homem endeusado, que busca do auto-controlo, o
auto-domínio, o cuidado em não ter filhos, porque um filho passou a significar
fome, miséria, privação; vive-se o mito de que a família já não é o laço, um nó
apertado, aqui, neste outro mundo; criou-se o mito de que se é feliz sem nada
disso, que se é auto-suficiente, que o sucesso na vida depende única e
exclusivamente do trabalho pessoal, e que só a mim, e a ninguém mais, devo o
triunfo e a glória na minha vida; é o mito de que o outro é um incómodo, que
triunfar, ou não, é sempre por mérito próprio ou por falta dele,
exclusivamente, porque perder ou não singrar é ser fraco, dispensável; vive-se o mito de que o contacto com o mundo se faz
unicamente com um telemóvel. Vive-se a pobreza como uma vitória, o mito da
auto-suficiência como uma sobredotação.
No entanto, se nos interrogarmos porque é
que há abandonados, porque dormem cada vez mais irmãos espalhados pelas ruas
frias da indiferença, a resposta está inevitavelmente na raiz dos nossos
corações, nessas auto-qualquer-coisa que não têm outro nome que não seja avareza,
no acreditar que por graça de Deus se nasce superior, que os fracos dormem ao
relento porque nasceram limitados e não têm forças para lutar pela vida.
Porém, alguns desses que nem sequer olhamos,
de que nem tampouco sabemos a cor dos olhos, já poderão ter sido nossos filhos
e nossas filhas, nossos pais ou nossas mães. Não sabemos. Mas isso também não é
o mais importante. Importante mesmo é a indiferença, por um lado, o escândalo
do desamor, por outro.
Ainda que soubéssemos quem nos foram os
que dormem nas ruas, a ajuda deve ser sempre um impulso irreflectido do amor
espontâneo, e jamais a resposta a uma dádiva existencial perdida algures nos
laços da consanguinidade: Não te dou
porque foste meu pai, porque até foste o meu maior amigo sabe-se lá quando e
onde. Dou-te porque me dou a ti, no amor que transporto, na gratuitidade do meu
natal que desejo que se aproxime do de Jesus. Mais, dou-te apesar de Jesus,
porque é na espontaneidade que está o Natal que me fazes conhecer. E é aí que,
efectivamente, está Jesus de Quem me quero aproximar.
O nosso dever não é para com o
passado. Os nossos deveres, e muitos, são para com o futuro, que é hoje. O hoje
está prenhe de futuro. A ajuda deve acontecer porque sim, não porque há uma
razão perdida, existencialmente, numa ou em várias vivências. Não apouquemos a
grandiosidade de olhar para quem precisa, descalço e esfarrapado nas calçadas
frias, não limitemos o ilimitável. O amor não tem limites nem uma razão para
ser. Ele é, simplesmente.
Está-se cada vez mais nas mãos de um
controlador invisível, de uma liderança qualquer. Entreguemo-nos nas mãos de
Quem verdadeiramente nos lidera, Daquele que tudo sabe e tudo perdoa; sigamos sem
receios quem nos disse “Eu sou o caminho,
a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim” (Jo 14:6);
entreguemo-nos à oração e acreditemos que somos felizes, sim, há muita gente
que é feliz e não sabe, somos nós todos.
E por isso, no Natal, todas as
exuberâncias do coração são poucas, as alegrias sempre limitadas, porque o
nascimento de um Salvador não há alegria que o represente, cânticos que o
elevem. Tudo o que fizermos ficará, inevitavelmente, sempre, aquém.
Precisamos que fé e alegria se
confundam, que falem uma mesma linguagem, porque ser Homem é ser fé.
Um Natal feliz, mas feliz mesmo, inesquecível.
Margaria Azevedo
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