sábado, julho 22, 2023

RUMO A UM NOVO CRISTIANISMO ii



“Primeiro levaram os comunistas,

Mas eu não falei, por não ser comunista.

Depois, perseguiram os judeus,

Nada disse então, por não ser judeu,

Em seguida, castigaram os sindicalistas

Decidi não falar, porque não sou sindicalista.

Mais tarde, foi a vez dos católicos,

Também me calei, por ser protestante.

Então, um dia, vieram buscar-me.

Nessa altura, já não restava nenhuma voz,

Que, em meu nome, se fizesse ouvir.”

                                      Martin Niemoller (1)


            Um dos grandes cancros da actualidade é a indiferença. Mas atenção, não uma indiferença qualquer. Falamos da indiferença perante o outro, o acontecer presente, o que lhe sucede de mau, porque se for de bom surge a vil inveja, e já ninguém é indiferente.

            Também não há indiferença quanto ao passado histórico. Aliás, quer-se fazer dele uma rememoração constante, um castigo do tipo pena de Talião, porque no passado foi tudo muito mau. E enquanto se anda às voltas com uma espécie de limpeza étnica do passado, ninguém se ocupa com o presente, e as decisões nefastas são mais fáceis de tomar e sedimentar. Ora, se fôssemos atrás desta loucura, a Europa, e o mundo inteiro, entrava em colapso, pois todos fomos guerreiros uns contra os outros, escravos uns dos outros.

            A indiferença também não é contra grupos perigosos que nos vão invadindo. Esses são os novos visitantes definitivos, necessitados de tudo. Ninguém é indiferente a quem chega, de uma forma ou de outra. A indiferença vem depois.

            Os perigos da indiferença têm a ver com uma sociedade fragmentada e estigmatizada, num esforço por manipular o passado para cair nas boas graças de um presente cada vez mais asfixiante.

            Assegurando o triunfo da máquina, o ser humano deixou de pretender, ou de perceber, a necessária companhia do outro, a pertença ao outro numa cumplicidade civilizacional, para o substituir por uma coisa. Ora, deambulando no meio de tantas coisas, o humano é mais uma coisa que está em estreita ligação às coisas, e é assim que se perspectiva a sedimentação da indiferença.

            A insensibilidade social e política por parte dos dirigentes das nações gerou débeis, meninos e meninas, não homens e mulheres. O avanço tecnológico criou brinquedos de tal forma importantes que há quem deixe de comprar o indispensável para adquirir, por exemplo, telemóveis de última geração, sob pena de ser rejeitado pelo grupo social, no emprego, etc. Questões como o mérito, o espírito de luta, misturam-se e confundem-se com as da ambição, da disponibilidade total, o que faz do ser humano um permanente insatisfeito, desvalorando-se e asseverando o triunfo da máquina sobre si próprio. E porquê? Porque a máquina sabe mais, é omnipresente, não tem dores de cabeça, não carece de licença de parto. Está sempre ali, para tudo.

            Podemos dizer, agora sim, vamos entrar na Era da Escravatura a valer, só que tecnológica: a pior de todas porque esta não vai ter quem dê a vida para a combater; desta vez não vai haver associações em prol da liberdade nem da libertação, porque a máquina criou a ilusão de que estão todos libertos, são todos homens, mulheres e dos demais géneros livres. O desemprego vai ser mais que muito, todos vão lutar sem escrúpulos por chegar a cargos de chefia; uma massa de imberbes, os novos eunucos, está-se a construir. Para onde nos leva esta nova ordem mundial? Para a já famosa e ofuscante vitória da inteligência artificial, que de inteligência não tem nada, que não pensa nem é sensível a coisa alguma, o triunfo do novo bezerro de oiro.

            Vamos ser escravos, já não no Egipto, nem em parte alguma do mundo; vamos ter um líder, já não Moisés, nem de nenhum outro profeta mensageiro do além, mas um aparelho sofisticado; iremos ser levados para uma nova terra, já não a Prometida, mas a das organizações de carne humana, mas para os confins de um recanto que parecia paradisíaco mas que se revelou agreste; receberemos novas ordens, novas leis, já não um Decálogo, mas regras de conduta que não firam a “sensibilidade” da máquina; quem dá as ordens já não será Deus, mas um robot super-potente, super-presente, super-poderoso. Porém, a História vai repetir-se. Passaremos novamente pelo desejo do servilismo à morte, porque a vida continuará a ser o bem mais precioso e nunca perderá o seu carácter divino.

            Pode ser muito giro um sacerdote robot. É muito moderno, até parece um filme de ficção científica tornado realidade mesmo em frente do nariz. Porém, há que perceber que o religioso é uma questão de corpo do tipo olhos nos olhos. É preciso sentir a respiração, ver o brilho dos olhos, sentir o coração do outro a bater. O religioso é um encontro corpo a corpo. Sem a presença física do outro não há religião alguma. Uma coisa é um desenrasca, assistir a uma sessão, uma cerimónia pela televisão para quem está doente, outra bem diferente é fazer do virtual uma realidade quotidiana, trancando as pessoas em casa, impedindo-as de conviver, e a orar pedindo aos deuses que, antes de tudo, não se vá a bateria do aparelho abaixo, senão lá teremos um sacerdote calado porque se lhe foi a carga.

Se o ser humano persistir em não mudar intrinsecamente, não é por pertencer a esta ou àquela religião que vai ser diferente. Se os homens mudarem, as fés mudarão também. O cristianismo tem que humanizar e humanizar-se. Como?

Quando se repensar; quando assumir que não é superior a ninguém; quando reflectir em que medida o seu profeta principal, Jesus, foi humano e muito humano, e que não é um deus à semelhança dos deuses do Paganismo; quando assumir que espalhar o Evangelho é sinónimo de ressurreição e vida; quando se aperceber que Jesus não veio criar nenhuma nova religião, que não era, portanto, cristão, mas um profeta que nasceu, viveu e morreu judeu; quando se assumir como um igual à humanidade inteira; quando aprender, se quiser, que todos os profetas são igualmente importantes, apenas cada um escolhe o da sua preferência, o Cristianismo será renovado.

            Não se trata do cristianismo das congregações, mas do dos corações, sede dos comportamentos e dos pensamentos que a mente não consegue decifrar. Precisamos de um Cristianismo sem receio de nada, porque se sente caminho para Deus; um Cristianismo que não tema a verdade, outras formas de fé, outras filosofias de vida, outras formas de evolucionismo.

O bom seria que os tempos que correm fossem tempos novos, em que esta conversa já não fizesse sentido, que todos tentássemos, ao menos uma vez, uma única vez, colocarmo-nos no lugar do outro. Não tentarmos ser o outro, o que é naturalmente uma impossibilidade, mas sentirmos, pela força do amor e da dádiva, a dor que não nos dói nem nos pertence. Não na natural impossibilidade ontológica com que a filosofia nos confronta, mas na possibilidade teológica no corpo de uma fé livre, própria daqueles que fazem do outro um fim em si mesmo e não meios para fins alheios.

            Podemos avançar algumas explicações, nomeadamente: que estão a reencarnar espíritos mais ignorantes e belicosos; que os que aprenderam alguma coisa e com isso evoluíram já cá não estão; que o materialismo se impôs à espiritualidade, etc. Mas nada disso explica o dramático silêncio dos relativamente bons (“Ninguém é bom senão um só: Deus.” Mc10:18), da impotência generalizada em mudar alguma coisa. Continua a ser tão bom o aconchego do lugarzinho ao sol, das influências, da sobreposição a tudo e a todos. Um cristão só o é verdadeiramente quando virar as costas a tudo isso, quando a vida espiritual se sobrepuser à vida material. Não num desprezo pela terra, mas por muito a amar como obra divina. Pisamos solo sagrado.

(cont.)

 

            Margarida Azevedo

 

 

Referências:

(1)Imagens de martin niemoller, e vieram os católicos, e eu …

(2)Trad. Frederico Lourenço. Ver também Lc18:19.

 

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