RUMO A UM NOVO CRISTIANISMO ii
“Primeiro levaram os comunistas,
Mas eu não falei, por não ser comunista.
Depois, perseguiram os judeus,
Nada disse então, por não ser judeu,
Em seguida, castigaram os sindicalistas
Decidi não falar, porque não sou sindicalista.
Mais tarde, foi a vez dos católicos,
Também me calei, por ser protestante.
Então, um dia, vieram buscar-me.
Nessa altura, já não restava nenhuma voz,
Que, em meu nome, se fizesse ouvir.”
Martin
Niemoller (1)
Um dos grandes cancros da actualidade é a indiferença.
Mas atenção, não uma indiferença qualquer. Falamos da indiferença perante o
outro, o acontecer presente, o que lhe sucede de mau, porque se for de bom
surge a vil inveja, e já ninguém é indiferente.
Também não há indiferença quanto ao passado histórico.
Aliás, quer-se fazer dele uma rememoração constante, um castigo do tipo pena de
Talião, porque no passado foi tudo muito mau. E enquanto se anda às voltas com
uma espécie de limpeza étnica do passado, ninguém se ocupa com o presente, e as
decisões nefastas são mais fáceis de tomar e sedimentar. Ora, se fôssemos atrás
desta loucura, a Europa, e o mundo inteiro, entrava em colapso, pois todos
fomos guerreiros uns contra os outros, escravos uns dos outros.
A indiferença também não é contra grupos perigosos que
nos vão invadindo. Esses são os novos visitantes definitivos, necessitados de
tudo. Ninguém é indiferente a quem chega, de uma forma ou de outra. A
indiferença vem depois.
Os perigos da indiferença têm a ver com uma sociedade
fragmentada e estigmatizada, num esforço por manipular o passado para cair nas
boas graças de um presente cada vez mais asfixiante.
Assegurando o triunfo da máquina, o ser humano deixou de
pretender, ou de perceber, a necessária companhia do outro, a pertença ao outro
numa cumplicidade civilizacional, para o substituir por uma coisa. Ora,
deambulando no meio de tantas coisas, o humano é mais uma coisa que está em
estreita ligação às coisas, e é assim que se perspectiva a sedimentação da
indiferença.
A insensibilidade social e política por parte dos
dirigentes das nações gerou débeis, meninos e meninas, não homens e mulheres. O
avanço tecnológico criou brinquedos de tal forma importantes que há quem deixe
de comprar o indispensável para adquirir, por exemplo, telemóveis de última
geração, sob pena de ser rejeitado pelo grupo social, no emprego, etc. Questões
como o mérito, o espírito de luta, misturam-se e confundem-se com as da
ambição, da disponibilidade total, o que faz do ser humano um permanente
insatisfeito, desvalorando-se e asseverando o triunfo da máquina sobre si
próprio. E porquê? Porque a máquina sabe mais, é omnipresente, não tem dores de
cabeça, não carece de licença de parto. Está sempre ali, para tudo.
Podemos dizer, agora sim, vamos entrar na Era da
Escravatura a valer, só que tecnológica: a pior de todas porque esta não vai
ter quem dê a vida para a combater; desta vez não vai haver associações em prol
da liberdade nem da libertação, porque a máquina criou a ilusão de que estão
todos libertos, são todos homens, mulheres e dos demais géneros livres. O
desemprego vai ser mais que muito, todos vão lutar sem escrúpulos por chegar a
cargos de chefia; uma massa de imberbes,
os novos eunucos, está-se a construir. Para onde nos leva esta nova ordem
mundial? Para a já famosa e ofuscante vitória da inteligência artificial, que
de inteligência não tem nada, que não pensa nem é sensível a coisa alguma, o
triunfo do novo bezerro de oiro.
Vamos ser escravos, já não no Egipto, nem em parte alguma
do mundo; vamos ter um líder, já não Moisés, nem de nenhum outro profeta
mensageiro do além, mas um aparelho sofisticado; iremos ser levados para uma
nova terra, já não a Prometida, mas a das organizações de carne humana, mas
para os confins de um recanto que parecia paradisíaco mas que se revelou
agreste; receberemos novas ordens, novas leis, já não um Decálogo, mas regras
de conduta que não firam a “sensibilidade” da máquina; quem dá as ordens já não
será Deus, mas um robot super-potente, super-presente, super-poderoso. Porém, a
História vai repetir-se. Passaremos novamente pelo desejo do servilismo à
morte, porque a vida continuará a ser o bem mais precioso e nunca perderá o seu
carácter divino.
Pode ser muito giro um sacerdote robot. É muito moderno,
até parece um filme de ficção científica tornado realidade mesmo em frente do
nariz. Porém, há que perceber que o religioso é uma questão de corpo do tipo
olhos nos olhos. É preciso sentir a respiração, ver o brilho dos olhos, sentir
o coração do outro a bater. O religioso é um encontro corpo a corpo. Sem a
presença física do outro não há religião alguma. Uma coisa é um desenrasca,
assistir a uma sessão, uma cerimónia pela televisão para quem está doente,
outra bem diferente é fazer do virtual uma realidade quotidiana, trancando as
pessoas em casa, impedindo-as de conviver, e a orar pedindo aos deuses que,
antes de tudo, não se vá a bateria do aparelho abaixo, senão lá teremos um
sacerdote calado porque se lhe foi a carga.
Se
o ser humano persistir em não mudar intrinsecamente, não é por pertencer a esta
ou àquela religião que vai ser diferente. Se os homens mudarem, as fés mudarão
também. O cristianismo tem que humanizar e humanizar-se. Como?
Quando
se repensar; quando assumir que não é superior a ninguém; quando reflectir em
que medida o seu profeta principal, Jesus, foi humano e muito humano, e que não
é um deus à semelhança dos deuses do Paganismo; quando assumir que espalhar o
Evangelho é sinónimo de ressurreição e vida; quando se aperceber que Jesus não
veio criar nenhuma nova religião, que não era, portanto, cristão, mas um
profeta que nasceu, viveu e morreu judeu; quando se assumir como um igual à
humanidade inteira; quando aprender, se quiser, que todos os profetas são
igualmente importantes, apenas cada um escolhe o da sua preferência, o
Cristianismo será renovado.
Não se trata do cristianismo das congregações, mas do dos
corações, sede dos comportamentos e dos pensamentos que a mente não consegue
decifrar. Precisamos de um Cristianismo sem receio de nada, porque se sente
caminho para Deus; um Cristianismo que não tema a verdade, outras formas de fé,
outras filosofias de vida, outras formas de evolucionismo.
O
bom seria que os tempos que correm fossem tempos novos, em que esta conversa já
não fizesse sentido, que todos tentássemos, ao menos uma vez, uma única vez,
colocarmo-nos no lugar do outro. Não tentarmos ser o outro, o que é
naturalmente uma impossibilidade, mas sentirmos, pela força do amor e da dádiva,
a dor que não nos dói nem nos pertence. Não na natural impossibilidade
ontológica com que a filosofia nos confronta, mas na possibilidade teológica no
corpo de uma fé livre, própria daqueles que fazem do outro um fim em si mesmo e
não meios para fins alheios.
Podemos avançar algumas explicações, nomeadamente: que
estão a reencarnar espíritos mais ignorantes e belicosos; que os que aprenderam
alguma coisa e com isso evoluíram já cá não estão; que o materialismo se impôs
à espiritualidade, etc. Mas nada disso explica o dramático silêncio dos relativamente
bons (“Ninguém é bom senão um só: Deus.”
Mc10:18),
da impotência generalizada em mudar alguma coisa. Continua a ser tão bom o
aconchego do lugarzinho ao sol, das influências, da sobreposição a tudo e a
todos. Um cristão só o é verdadeiramente quando virar as costas a tudo isso,
quando a vida espiritual se sobrepuser à vida material. Não num desprezo pela
terra, mas por muito a amar como obra divina. Pisamos solo sagrado.
(cont.)
Margarida Azevedo
Referências:
(1)Imagens de martin niemoller, e vieram os
católicos, e eu …
(2)Trad.
Frederico Lourenço. Ver também Lc18:19.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home