RUMO A UM NOVO CRISTIANISMO I
“ A cristandade
aboliu o cristianismo sem se dar conta; desta forma, é preciso fazer alguma
coisa; é preciso tentar reintroduzi-lo na cristandade.”
Kierkegaard (1)
Numa tentativa de esconder o passado e de reescrever a
história, à mercê dos gostos e conveniências do momento, porque de repente o
passado tornou-se redutível a classificações fétidas tais como racismo,
xenofobia e homofobia, terrível colonização e afins, a temática do novo
cristianismo está cada vez mais na ordem do dia, seguindo a triste onda de
modernança.
Ser-se
cristão hoje, defensor de uma herança e um processo histórico tão vasto quão
rico, é fazer parte de um movimento que urge abater. O bem que fez, e que a
história perfeitamente relembra, é abafado em prol de um punhado de
malfeitorias que, face ao bem praticado, nem deviam ter, nem têm, a maior expressão.
Se tomarmos como exemplo a Inquisição, ela estendeu-se por um período bem curto,
embora de vergonhosas e terríveis práticas, nestes vastos dois mil anos de
cristianização, e digo cristianização, não de cristianismo, porque o
Cristianismo é um movimento e, como tal, está sempre inacabado. Porém, hoje, há
outras inquisições, nomeadamente a luta pela imposição de uma igreja decadente
sobre todas as restantes, fora do tempo, estagnada, perdida entre falsas noções
de pecado, tão falsas quanto as da modernidade a que pretende dar expressão.
A
história é a narrativa do nosso vasto quão complexo e moroso processo
evolutivo, num jogo de vitórias e derrotas num passado sangrento, mas também
com bastantes virtudes. Abordá-la implica, portanto, uma posição de tolerância
face aos nossos comportamentos pretéritos, o que nos tempos que correm é
encontrar uma agulha num palheiro, porque se vive precisamente a intolerância
face ao passado.
Não
se trata de desculpar o erro, mas de o enfrentar e transformar em lição
valorosa, para que o presente seja mais feliz e o futuro mais sólido na
fraternidade, quer para a vida material, quer espiritual. Se cada país
colonizado, que os são todos, de uma forma ou de outra, fizesse uma avaliação
séria do papel desempenhado pelo colonizador, certamente encontraria uma
imensidade de aspectos positivos. Uma coisa é a independência a que todos têm
direito, outra, bem diferente, que marcas o colonizador por lá deixou e que
melhorias trouxeram as descolonizações, no contexto em que foram feitas.
Ninguém
o diz, é politicamente incorrecto (expressão cínica que significa travagem ao
progresso e à construção do processo de paz social e política; fascização das
sociedades), que parte das descolonizações foram uma entrega dos povos a
genocídios, à miséria nunca dantes vista, à fome e à deslocação em massa de
milhões de pessoas à procura de dignidade, que os deles não lhes dão.
Há
que perceber que descolonizar não significa abandonar, mas que implica um
período de transição visando uma maturação política, que habitualmente não se
faz porque interesses mais altos se levantam de parte a parte.
Com isso, os povos receptores das massas que fogem dos
seus, os tais racistas e intolerantes, sentem-se ameaçados, perdidos em
realidades que não construíram, de que até são contra, mas das quais se sentem
prisioneiros. A onda de medo destas novas formas de invasão, que não são
colonialistas, assenta no facto de que arrastam consigo complexos sociais,
raciais e políticos. Há um sentimento generalizado de ameaça constante, o que
faz perigar a paz social, transformando, por exemplo, bairros seguros e
tranquilos em lugares perigosos. Sair de casa à noite para tomar um simples
café entre amigos tornou-se numa aventura em muitas cidades.
Mas
a questão é ainda mais vasta. Os povos receptores estão sobrecarregados de
impostos. Cada vez mais se vive a contar os tostões na ânsia de que chegue
depressa o fim do mês. É que parte significativa dos receptores são pobres também
ou para lá caminham a passos largos. Entre famílias desmoronadas, cada vez mais
monoparentais (mais uma expressão filha da modernança), universo de esperança
quase nulo e caídos na oca expressão um
dia atrás do outro, sem afectos de espécie alguma e perdidos no álcool,
droga e sensualismo, consumismo e simulacro de riqueza, qual expressão de quem
não tem quase o indispensável para viver, de colarinhos brancos às portas das
instituições de caridade, etc. etc., veem
os seus escassos direitos ameaçados todos os dias, imagem contrária àquela que
os políticos dão aos donos dos que
chegam nus, famintos e doentes.
Estes
recém-chegados, por sua vez, trazem o rancor contra os seus e os complexos
raciais contra os que os recebem, confusos e manipulados, fechando-se à
aceitação de novos modos de vida, sob receio de perda de identidade e fusão com
o ex-colonizador agora receptor. Dito de outro modo, quem chega não se vê livre
daquele a quem chama colonizador, agora numa versão contrária, a saber, é o
colonizado que é expulso pelos seus da sua própria terra/casa, procurando o
colonizador que em muitos casos odeia, como o único refúgio, apenas porque bem manipulado.
Nunca
o mundo passara por uma experiência tão dramática, de tamanho número de
deslocados como hoje, maltratados, sem direitos, mão-de-obra esclavagista a
troco de se manter vivo, porque se ficarem nas suas terras não sobrevivem, se
partirem caiem nas redes mafiosas de mão-de-obra escrava, sem dignidade, mas vendidos
primeiramente pelos seus.
A
amizade entre os povos está cada vez mais frágil, e a pouca que há é baseada em
interesses perversos. O mundo está a ser conduzido a que cada um de per si objective viver uma vida que destrua
o passado onde tudo foi mau, o que é
manifestamente falso. Por outro lado, quem não puder ou não quiser fugir da sua
terra corre o risco de ficar à mercê da caridadezinha dos antigos exploradores/colonizadores. É a política
do pião: com capa não anda e sem ela não pode andar.
Perceber
o papel do Cristianismo na história passa por aqui. Ninguém diz que lhe devemos
a cultura e respectivo combate ao analfabetismo. Ninguém diz que devemos ao
mundo cristão estradas, fábricas, serviços, arte, ciência e cultura. Ninguém diz
o que se transportou, apenas se fala de escravatura, tal como ninguém diz que a
sociedade ocidental europeia era esclavagista. Nós fomos escravos de nós
mesmos. Não podíamos transportar o que não éramos. Além disso, as lutas anti-esclavagistas
são nossas também. Custaram a vida a muitos de nós. O Cristianismo nunca foi
esclavagista, separatista, divisionista, dualista. Paulo esclarece-o
peremptoriamente: “Não há judeu nem
grego, não há escravo nem pessoa livre, não há macho e fêmea: todos vós sois um
em Cristo Jesus.” (Gl 3: 28) (2).
As políticas assim o fizeram, os falsos religiosos também, os interesses e a
perversidade sempre falaram mais alto; porque o desconhecimento do homem
perante si mesmo tem sido uma constante, e está cada vez mais longe de ser definitivamente
erradicado. Para isso, as novas tecnologias estão a sedimentar o fosso. Fala-se
melhor através da máquina do que olhos nos olhos.
O
Papa Francisco afirma: “ Às vezes
deixa-me triste o facto de, (…), a Igreja ter demorado tanto tempo a condenar
energicamente a escravatura e várias formas de violência.” (3) É
verdade. Porém, violência e Religião têm sido inseparáveis ao longo da
História. Não apenas dentro do Cristianismo, mas no geral. Ora esta questão
levanta uma problemática complexa, a saber, até que ponto a religião se impõe à
nossa natureza; será ela capaz de o fazer; em que medida a religião não é uma
forma de camuflar, ou lutar, contra a nossa natural propensão para cairmos em
desgraça? Numa palavra, o que é que a religião munda no mundo? Somos mais
felizes por sermos crentes? Somos crentes para quê? (Este parêntesis cheio de
interrogações pertinentes deve fazer parte de toda a reflexão teológica).
O
que nos envergonha não é a nossa natureza, mas o papel do ser humano que se
encostou ao religioso para justificar a sua avareza, o que tem feito das
religiões organizações perigosas. Todas. Religião e natureza humana tem sido um
binómio devastador, não apenas em termos de fé, mas da razão também, muito
especialmente nas religiões monoteístas, arrastando consigo incompatibilidades
onde, de facto, o que há é complementaridade.
Assim,
a humanidade parece mais um bando de condenados a prisão perpétua, a tentar
fugir a todo o custo de uma prisão de alta segurança, mas infrutiferamente.
Só
em conjunto, só a humanidade no seu todo, ecuménica, na aceitação do seu
natural pluralismo cultural, racial, étnico, poderá levar a nossa existência
terrena a bom porto e alcançar o que tanto deseja, a felicidade. Só juntos no
amor universal conduziremos este mundo à felicidade que todos perseguimos, ou
devíamos perseguir, e que Aristóteles tão bem abordou “porque a felicidade é uma actividade da alma em conformidade com uma
virtude realizada.” (4) Dito de numa forma
cristã: precisamos de querer ser virtuosos, lutar por realizar uma só virtude
que seja, que a felicidade se tornará uma realidade estável e não uma quimera.
Não
podemos continuar a calarmo-nos perante o ridículo do politicamente correcto, silenciar
verdades, sejam elas cruéis ou felizes. A paz e a concórdia não se coadunam com
o calar da verdade factual. É tempo de aprender a viver na base da aceitação da
nossa natureza, natureza que é por si própria evolutiva. Não podemos matar a História,
como não podemos dar azo à loucura de só nós possuirmos a verdade e
tornarmo-nos numa espécie de salvadores do mundo, destruindo tudo à nossa volta,
tão simplesmente porque há alguém que não é ou não pensa ou não crê como nós.
No presente, os nossos comportamentos são em tudo
idênticos aos do passado mais ou menos remoto, e esse é que é o problema. O que
é que nós evoluímos até hoje? Descontextualizados face ao tempo e à inevitável
emergência de um avanço espiritual que não pára, ou não devia parar,
agudizaram-se as diferenças de tal forma que o fosso entre os seres humanos é
cada vez maior. Dito de outro modo, aprendeu-se nada com a História, e por isso
ela se repete. Como diz o Papa Francisco, na obra supra-citada: “10. Durante décadas, pareceu que o mundo
tinha aprendido com tantas guerras e fracassos e, lentamente, ia caminhando
para variadas formas de integração. (…) 11. Mas a história dá sinais de regressão.” (5)
Isto significa que não evoluir já é regredir, o que advém do facto de não se
perceber que ninguém é bom, mas que todos devemos ser lutadores pelo bem.
A
ignorância parece ser a mãe de todos os males, mas não está só. A teimosia e a
vaidade são preciosas aliadas. Assim, hoje, toda a gente se sente muito sábia,
porém tudo continua na mesma. Os conhecimentos deviam ser libertadores, mas se
a nossa natureza se mantiver intacta de pouco ou nada nos servem. Realmente, o
Papa Francisco salienta, ainda a propósito da escravatura e da violência, que, “Hoje, com o desenvolvimento da
espiritualidade e da teologia, não temos desculpas.” (ibidem, p.53) pois é,
mas é isso que se verifica: há avanço intelectual, mas há-o espiritual? A
violência crescente o que é que significa, em que moldes e em que contexto ela
existe?
Vive-se o sem sentido, a infantilização dos
comportamentos que toca a ingenuidade de quem está permanentemente a começar,
num autêntico elogio da estupidez. A TV tornou-se numa máquina manipuladora
perigosa na medida em que constrói ideologias, opiniões, culpas e desculpas, tal
como aceitação e revolta irreflectidas, fabrica gostos e desgostos, prazeres e
desprazeres. Há que promover o não pensar, a euforia exuberante esquizofrénica
do ridículo.
Quando
se pensava que tudo iria tomar o rumo certo num crescendo civilizacional, de repente, tudo se desmorona. A História
tornou-se o grande alvo desse abate: “vamos enterrar o passado como se a nossa
existência tivesse começado hoje”. E, como ninguém quer assumir a sua quota-parte
de culpa, há que arranjar um bode expiatório: o Colonialismo, o homem Branco,
os Judeus, o Ocidente, e, é claro, o próprio Cristianismo.
O mundo caiu redondo nas binaridades,
uma cultura do 2, tipo Eu/Tu, branco/preto, bom/mau. Só que o mundo não é
assim. Nunca foi nem nunca será. Um jardim, se não tiver múltiplas flores de
cores diferentes, não é um jardim, mas outra coisa qualquer.
(cont.)
Margarida
Azevedo
Referências:
(1)S.
Kierkegaard, L´école du christianisme, Éditions
de l´Orante, Paris, 1982, cap. I, p. 36. trad. M. Azevedo.
(2)Trad.
Frederico Lourenço
(3)
PAPA FRANCISCO, Fratelli Tutti, Carta Encíclica sobre a Fraternidade e a
Amizade Social, Paulinas, Prior Velho, 2020, 86, p.53.
(4)ARISTOTE, Éthique de Nicomaque, Garnier Flammarion, Paris, 1965, p.39.
(5)_________10,
11, pp.11-12.
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