sábado, agosto 05, 2023

RUMO A UM NOVO CRISTIANISMO IV



A ideia de uma lavagem a fundo das mentes cristãs tem sido uma constante ao longo da história, logo aquando da sua implementação nas primeiras comunidades. Nada foi pacífico. Paulo foi quem melhor o percebeu: não se define o cristão judeu pela circuncisão, alimentação cosher ou pela Lei. Amar a Deus acima de todas as coisas é tomar o infinito como fundamento da nossa vivência, uma presença constante. É deixar a terra e partir ao desconhecido (Gn 12:1), é perceber que o mundo é plural, é ter uma perspectiva evolucionista da vida, é expandir-se na procura do verdadeiro sentido do religioso como a grande aventura antropológica/espiritual; é ir ao encontro de outra terra, é aproximar o distante, é construir teologicamente o Caminho, como nos sugere o evangelho de Marcos.

Estamos longe da parábola erroneamente designada como do Filho Pródigo (é, sim, do Pai Benevolente), estamos longe do regresso a casa porque o mundo é falso e mau, nem é esse o sentido da parábola. O pai benevolente ensina que a porta nunca se fecha. O texto da Bíblia Hebraica, e concretamente o Génesis, e da Bíblia Cristã, é intencional. A sua leitura conduz o leitor para contextos, sentidos, ilacções, conclusões absolutamente provocatórias. Sair da casa do pai é ir ao encontro do mundo, desbravando-se a si mesmo, descobrir-se. Ir ao desconhecido é expor-se a um mimetismo do outro, que se deseja sem disso se ter consciência. É a experiência da vida que nos faz perceber a urgência do encontro

A diferença entre Génesis 12:1 e a parábola do pai benevolente reside no desfecho. No primeiro, não se volta ao Pai miserável nem como refúgio e porque a lição do mundo foi castradora e desastrosa. Viver no mundo não é uma má experiência. O filho, na parábola, não tem força porque exigiu precocemente uma herança que ainda não estava preparado para receber; em Génesis, o filho parte porque foi o Pai quem lhe ordenou que o fizesse. Não se trata de um acto trágico, mas da faculdade da natural propensão para a descoberta da vida, mantendo a força para se sobrepor ao desaire. É a diferença entre o alicerce e a falta dele.

Os primeiros cristãos, dirigidos por Paulo, pretendiam uma profunda remodelação no interior do Judaísmo. Paulo e os apóstolos não se converteram a uma nova religião, mas a Jesus, o Cristo, dentro do Judaísmo. A pregação de Jesus objetivava-o: enraizado nas tradições e dependente das mesmas, embrenhado na ritualística tecnicista, ao invés de no sentido da mesma, na riqueza dslumbrante das vestes. Em Mateus, considerado o evangelho mais judaico de todos os canónicos, é posta na boca de Jesus esta afirmação preremptória: “Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel.” (Mt 15: 24)

Há quem leia esta afirmação como uma tirada de mau gosto, xenófoba e discriminatória. Penso que é não perceber o texto no seu contexto, não apenas sociológico-antropológico, mas teológico, principalmente. Jesus, embora não ordenado, teve a coragem de se afirmar como um crítico dos costumes religiosos judaicos do seu tempo.

Esta moldura socio-antropológica enquadra-se entre a morte de João Batista, no capítulo 14, por um lado, e o enfrentar os fariseus e saduceus, no capítulo 16, por outro, o qual contém a confissão de Pedro (“Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo.” Mt 16:16). Entre os interesses que conduziram à decapitação de Batista e a salvaguarda das práticas dos fariseus e saduceus, Jesus responde com uma nova dinâmica: há um fermento diferente do do pão, mas doutrinário de que urge precaver-se (vv.1-12); há revelações que não são pertença da carne (v. 17). Jesus propõe uma nova antropologia de repercussões sociológicas profundas, verdadeiramente revolucionárias, uma fé sólida e firme que passa pela destrinça entre o que é dos homens e o que é de Deus. Sendo o Judaísmo uma religião de amor, é nessa base que toda a Lei e profetas devem ser entendidos, e é aí que o Cristianismo tem as suas raízes.

Quanto ao contexto teológico, o versículo supra-mencionado (16) inscreve-se em momentos de grande reflexão e milagres, sedimenta Pedro como pedra, culminando o capítulo 16 com o primeiro anúncio da Paixão e do significado da cruz pessoal, intransponível e particular que pertence a cada um de nós. Só na basa da aceitação da nossa condição de sofredores podemos combater o próprio sofrimento. No amor, é a cruz que sai derrotada.

Com Jesus, o sofrimento não é uma virtude, nem um castigo implacável. É uma condição da natureza humana cuja libertação é possível mediante uma fé inabalável. O ambiente em que se enquadra esta passagem é o exemplo dessa libertação mediante a fé.

Estamos longe do mito. Não se afigura uma luta entre deuses e humanos, castigo pelos mesmos das nossas más acções, guerras de tronos e de heróis, lutas pelo poder, superstição, mas tão simplesmente a esperança de que apenas a fé totalmente livre e emancipadora é capaz de renovar a condição humana. Não há deuses, há Deus, não há forças, há uma Força. Não há catástrofes, todas as dores são passageiras; há modificação, mudança, regeneração. A nossa existência não é uma tragédia. A dimensão trágica da Cruz não está em oposição à ordem, não é uma luta entre particular e geral. O trágico teológico da Cruz não é o trágico ético-filosófico de Antígona nem do helenismo em geral. A superação da Cruz não se faz por meios dissuasores da retórica, da argumentação afiada da eloquência da linguagem. Só assim faz sentido que as águas se separem aquando da fuga do Egipto, a liberdade as atravesse poderosa, e um povo se sedimente no outro lado. E Jesus não quer que ele se perca. Andamos todos à procura do outro lado.

Perceber a renovação do Cristianismo é perceber o fenómeno teológico da Passagem. Só nessa moldura faz sentido a infinidade, a saber, como o pó da terra (Gn.13:16); as areias do mar, as estrelas do céu, (22:17); a aproximação da vegonha da Cruz 26:4) os pães e os peixes que se multiplicaram (Mt 14:13-21, 15:32-39; Mc 6:30-44, 8:1-9), e todos se saciarem em perfeita comunhão, e porque ao infinito das almas humanas jamais faltará o alimento. A Passagem é caminho para a infinidade de que nenhum ser humano é capaz de construir sózinho. Unidos em Deus, somos uma força sem fim.

  Vivemos uma Páscoa permanente donde o Cristianismo não pode temer a liberdade. Ser cristão é estar permanentemente a viajar porque o Cristianismo é uma viagem, uma doutrina sempre nova, universal, pacificadora e renovadora do coração humano. Porém, uma doutrina não é sinónimo de uma interpretação, nem de uma hierarquia das mesmas. Todas são parceiras, todas contribuem para o mesmo todo. Ora o Cristianismo não pode perder o barco deste desafio. Deve desfrutar ao máximo da sua natural pluralidade, sob pena de se perder e não ser cristrianismo, mas uma doutrina qualquer ao lado das muitas que o mundo já conhece. Cristianismo é casa, lugar de chegada, de aceitação, de reconciliação; é braços abertos, é festa, é bem sem fim. 

(cont.)

Margarida Azevedo


Bíblia consultada: trad. de ALMEIDA, J. F.


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