domingo, maio 26, 2024

À PROCURA DO MILAGRE


 


            Movidos pelo muito sofrimento e pela fé milagreira, ou pelo inexplicável a que chamam os nós da vida, peregrinam rumo aos santuários em busca de consolo, procurando uma bênção super-poderosa que faça a vida rumar a outros portos.

Por seu lado, o desespero converte as estradas em caminhos de esperança, rotas cujo fim é o encontro com forças incomuns e com a multidão, aquela massa gigantesca de gente com muitas coisas para contar, o que confere ao acontecimento uma energia fabulosa, tornando o momento num acontecimento partilhado em que todos estão unidos pela dor, ou por uma história rocambolesca que não ata nem desata, aguardando um final feliz.

            Dizem que é a fé que os move. É relativamente verdade. Mas é a fé na solução radical dos problemas, levada a efeito, creem, por uma Entidade ou por várias Entidades super-poderosas. Deus, para os que se dizem monoteísta (?), como para os politeístas, tem um papel idêntico: passa para segundo plano. O desejo incondicional do milagre e a força do sofrimento estão completamente fora desses assuntos de Deus, deuses, Entidades e Forças Superiores. Libertar-se do problema é mais importante do que perder-se em questões teológicas ou teístas. Há um poder tão forte que é capaz de acabar definitivamente com a dor, o problema, o sofrimento, tudo, e é isso que importa.

Entre velas, fórmulas e talismãs, lágrimas e mágoa profunda, a oração pede o fim de uma dor que se não quer, que ninguém quer, ou uma limpeza radical da vida, o desejo de toda a gente. É esse o móbil. Quando o sofrimento é forte, é só isso que nos importa a todos. É que o sofrimento, por si só, já impõe regras que desconhecemos, nomeadamente a relativização das nossas crenças, das nossas doutrinas, reduz a magnânima sabedoria à sua verdadeira natureza: a ignorância total. Quando a dor dói mesmo, nada faz sentido; acabar com ela é o objectivo principal. O mundo pára, a razão pára, a fé fica em suspenso e tudo passa a outro: dor e sofrimento transportam-nos a outro mundo, outra razão, outra fé. Na verdade, em que é que realmente acreditamos? Em momento de calmia, pode ser no verde. Em momento de tempestade, acredita-se até naquilo em que nunca pensámos acreditar. Por isso se diz que o sofrimento e a dor nos fazem despertar para outros mundos, abrindo-nos outros caminhos e novas perspectivas.

 Na verdade, no muito sofrimento e na dor mais aguda tem-se outro léxico, surgem sentidos novos, uns mais mágicos do que outros; é quando a vida se reveste de objectivos diferentes daqueles quando nada acontece, tal como um rio quando o ser humano quer à viva força desviar o seu curso natural. Efectivamente, vivemos ou movemo-nos entre linguagens que se nos impõem mediadas pelo aqui e agora, que manipulam a nossa mente e os nossos sentimentos. Tudo o que dizemos é interna ou externamente vivencial, de uma forma ou de outra. Isto é, o que dizemos, o que gostaríamos de dizer e o que possivelmente nunca diremos fazem de nós marionetas dos acontecimentos cuja linguagem é um mecanismo por eles manipulado, em todos os sentidos. São os factos que determinam tudo, mentais, vivenciais, de fé, de não fé. Factos e mais factos dos quais a linguagem anda ao sabor, como uma caravela ao vento.

Infinitamente mais pobre que os factos, a linguagem, uma força metafísica poderosa do nosso ser, é impotente para transmitir a totalidade do que acontece. Há sempre um resíduo, um algo de não dito. Por isso os místicos preferem o silêncio, assim como a sabedoria popular que diz que a palavra é de prata, mas o silêncio é de ouro.

 Não havendo romarias a Deus, o que implicaria um encontro baseado na Palavra liberta e libertadora, e, portanto, na oração nua e crua, também não há romarias a pedir a modificação interior. Eis o grande e único milagre humano, a saber, deixar de se ser o que se é e passar-se a ser outro.

Fazer uma romaria para pedir a Deus a graça de não mais ser violento nem agressivo, não mais ser invejoso nem maledicente; pedir a abertura de espírito à diversidade e ser tolerante; empenhar-se em ser útil dentro das suas possibilidades, e querer ser hoje melhor do que ontem e amanhã melhor do que hoje…, eis o grande milagre humano.

E ainda, combater a vaidade ridícula, a ambição desenfreada, o instinto de açambarcamento, a ganância, o querer privilégios só para si e ser servido, tudo isto e muito mais são os elementos que constituem o milagre da negação que ninguém, ou muito poucos, pede a Deus.

As romarias podem continuar. O ritual vai-se repetindo ad infinitum. Enquanto o ser humano persistir na lonjura das virtudes divinas, nada feito. O bem, nos nossos corações, ainda está por fazer. As mentes continuam direccionadas para o imediatismo, e Deus, Jesus e todos os profetas condenados ao milagreiro que ofusca as verdadeiras virtudes.

Porque é que os problemas não desaparecem definitivamente, apesar de tantas romarias? Porque as pessoas não se modificam, para melhor, acrescente-se. Enquanto o interior continuar em ebulição porque ocupado com supérfluos, nada mudará. Podem continuar a negociar com as divindades ou a Divindade oferecendo ouro, dinheiro, adquirir todo o tipo de talismãs, na sua diversidade simbólica, tudo isso é como o sino que tine. Como diz o salmo: “Os ídolos deles são prata e ouro, obra das mãos dos homens”.* Com o nome de tolerância, chama-se fé à crença nos ídolos, que cada vez são mais, o que vai ao arrepio do que se esperava para o século XXI. Elementos aprisionadores da fé, na tentativa de fazer esquecer que amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo encerra toda a Lei e os profetas.

A verdadeira fé não é prisioneira de coisa alguma, impõe-se pela liberdade de crer. Paulo adverte: “É, com efeito, à liberdade que vós, irmãos e irmãs, fostes chamados! Somente não transformeis esta liberdade em base de operações para a Carne. Em vez disso, através do amor, tornai-vos servos uns dos outros.”** (Gl 5:13) Ora há os que fazem do próprio Deus um ídolo do terror, da guerra, do nihilismo. Em que se baseia o ser humano quando quer impor ao outro a sua forma de crer? Urge o milagre do servir com amor, do desprendimento, da liberdade de fé.

São múltiplos os caminhos para Deus que, por muito diferentes que sejam, têm em comum o amor que nos deve unir e a paz em que devemos viver. Uma alma sem amor e sem paz é uma alma atormentada. É nosso dever a ajuda incondicional a quem vive no tormento, e atormentados somos todos nós, de uma forma ou de outra, de forma totalmente gratuita: sem esperar recompensa alguma, sem fazer do outro um caminho para si, para atingir objectivos pessoais, sem a fragilidade da imposição de ideologias. Qualquer ser humano vale mais que todas as ideologias juntas.

Precisa-se, com urgência, do milagre de uma fé livre, qual ligação directa a Deus, na alegria infinita do encontro com o outro. Que as nossas orações vão nesse sentido

 

Margarida Azevedo

 

 

*Conferência Episcopal Portuguesa, Bíblia, Os quatro Evangelhos e os Salmos, Fundação Secretariado Nacional da Educação Cristã, Lisboa, 2019, Sl 115: 4.

**Trad. Dimas de Almeida, polic., s/data.

                 

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