O PÃO DE CADA DIA
“O
pão nosso de cada dia nos dai hoje”
“Duas coisas eu te
pedi;
não mas negues
antes de eu morrer:
afasta de mim a
falsidade e a mentira;
não me dês nem
riqueza nem pobreza,
concede-me o meu
pedaço de pão;
não seja eu
saciado, e te renegue,
dizendo: “Quem é
Iahweh?”*
No mundo global cada vez mais se fala em competências
técnicas e científicas, em resiliência e boa capacidade de trabalho, espírito
de ambição e vontade de vencer, isto se quer medrar na complexa quão des-humana
competitividade.
Aqueles que de alguma forma asseguram uma relativa
estabilidade laboral são os superiores, porque vencem na luta por chegar em
primeiro lugar à meta, porque alcançaram a fasquia, como se diz, ou porque
simplesmente nasceram em famílias privilegiadas e alcançam tudo sem lutar por
nada, ou muito pouco.
Neste contexto, aqueles que se dizem cristãos são-no como
um apêndice, não como uma forma de estar com o objectivo de atingir voos
espirituais mais elevados. É bonito casar nas igrejas e batizar, mas fica-se
por aí. O discurso religioso não passa, tudo parece desfasado, ficando-se pela
beleza estética do ritual, pelos seus poderes mágicos de limpeza da alma sem
esforço pessoal. O próprio pregador, sacerdote, pastor, ancião, conferencista
também já perdeu, na maioria dos casos, o sentido da oportunidade espiritual
que Deus lhe oferece de ser uma voz redentora e apaziguadora junto dos fiéis.
Vão longe os tempos em que a pregação cristã era uma exortação ao exame de
consciência, à reflexão e à oração. Hoje, com honrosas excepções, os púlpitos
são mais lugares de comícios do que propriamente de reflexão evangélica.
Dito
de outro modo, parou o investimento nos assuntos da alma, ou está reduzido à
imediatez das exigências quotidianas. Na ânsia de modernidade e de querer
responder às necessidades quotidianas, desvalora-se a importantíssima pregação
alusiva aos bens espirituais. A luta pela sobrevivência não dá espaço para os
assuntos de fé, e querer estar no topo e ser superior não precisa de Deus. São
desnecessárias as frugalidades que o Evangelho nos ensina: moderação,
temperança, sobriedade, simplicidade são idiotices de simplórios. O mais
importante é fazer-se acreditar por quem manda, cair nas suas graças e ter
sorte, o que é muito importante.
Assim
se cai na imoderação, no apetite das coisas que não fazem falta nenhuma, no
vício de possuir, no esbanjamento, no desperdício - possuir o que não se
precisa também é desperdiçar- e, pior ainda, na insaciedade pois surge o desejo
de possuir sempre mais. Não contentes com isso, há os que adquirem bens
materiais prejudicando outros, mentindo ou levantando falsos testemunhos sobre
o próximo.
Esta
deseducação social conduz inevitavelmente a um empobrecimento espiritual, de
tal forma que a vida torna-se num vazio insuportável cujo fim é o gabinete do
psicólogo ou do psiquiatra. Isto significa que a sociedade de hoje configura-se
como um conjunto de cidadãos drogados (Portugal é o segundo país do mundo no
consumo de medicamentos psiquiátricos), principalmente de drogas para dormir,
porque as pessoas não conseguem desligar-se das preocupações laborais.
Posto
isto, que lugar ocupa na vivência quotidiana consumista pedir o pão nosso de
cada dia? Se perguntássemos a muitas pessoas o que é o pão nosso de cada dia
espantar-nos-íamos com o leque de respostas. Com as necessidades que se
inventaram de coisas que não fazem falta nenhuma, o pão nosso de cada dia para
alguns seria um chorrilho de “desnecessidades”. Ora reflectir seriamente sobre
isso é urgente. É preciso tomar consciência do envolvimento naquilo que não faz
falta, como naquilo que não vale a pena. E já que tanto se fala em ecologia,
pedir o pão nosso de cada dia não será porventura um pensamento ecologista?
Há que perceber que o pão nosso de cada
dia é:
estabilidade, porque todos os dias temos
garantida a satisfação do necessário;
despreocupação com a sobrevivência, porque
Deus a tudo provê;
fé inabalável, porque sabemos que nada nos
faltará;
riqueza, porque temos tudo;
felicidade, porque contentamo-nos com o
que temos;
paz sólida, com o mundo e com Deus;
certeza da presença vigilante de Deus
junto de nós.
Quem
se contenta com o pão nosso de cada dia não recorre a Deus só quando a vida lhe
corre mal, mas vive em permanente ligação ao mundo terreno e ao divino num
agradecimento pelas graças recebidas. Esse muito obrigado ao mundo e a Deus é a
voz da gratidão espiritual que nos eleva a patamares mais subtis na nossa
caminhada evolutiva.
O
pão nosso de cada dia é o alimento do corpo e da alma. Corpo e alma que são
indissociáveis, sendo que o alimento de um não pode acontecer sem o do outro.
Não nos alimentamos apenas de pão cereal, mas da Palavra Divina. Por isso Jesus
disse: “Ficou escrito: não é com base em pão só que viverá o ser
humano, mas com base em toda a palavra saída através da boca de Deus.” (Mt
4:4) **
Pedir
o pão também significa pedir a Palavra, isto é, os bens espirituais em uma
saciedade total no banquete que está prometido junto de Deus, a todos os que se
arrependem. A Palavra é o agente unificador entre o mundo material e o
espiritual.
Margarida
Azevedo
_________________________
*Pro 30: 7-9, Bíblia de Jerusalém, Paulus, São Paulo, 2002.
**Trad. Francisco Lourenço.
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