sábado, maio 11, 2024

O PÃO DE CADA DIA

 


“O pão nosso de cada dia nos dai hoje”

“Duas coisas eu te pedi;

não mas negues antes de eu morrer:

afasta de mim a falsidade e a mentira;

não me dês nem riqueza nem pobreza,

concede-me o meu pedaço de pão;

não seja eu saciado, e te renegue,

dizendo: “Quem é Iahweh?”*

 

            No mundo global cada vez mais se fala em competências técnicas e científicas, em resiliência e boa capacidade de trabalho, espírito de ambição e vontade de vencer, isto se quer medrar na complexa quão des-humana competitividade.

            Aqueles que de alguma forma asseguram uma relativa estabilidade laboral são os superiores, porque vencem na luta por chegar em primeiro lugar à meta, porque alcançaram a fasquia, como se diz, ou porque simplesmente nasceram em famílias privilegiadas e alcançam tudo sem lutar por nada, ou muito pouco.

            Neste contexto, aqueles que se dizem cristãos são-no como um apêndice, não como uma forma de estar com o objectivo de atingir voos espirituais mais elevados. É bonito casar nas igrejas e batizar, mas fica-se por aí. O discurso religioso não passa, tudo parece desfasado, ficando-se pela beleza estética do ritual, pelos seus poderes mágicos de limpeza da alma sem esforço pessoal. O próprio pregador, sacerdote, pastor, ancião, conferencista também já perdeu, na maioria dos casos, o sentido da oportunidade espiritual que Deus lhe oferece de ser uma voz redentora e apaziguadora junto dos fiéis. Vão longe os tempos em que a pregação cristã era uma exortação ao exame de consciência, à reflexão e à oração. Hoje, com honrosas excepções, os púlpitos são mais lugares de comícios do que propriamente de reflexão evangélica.

Dito de outro modo, parou o investimento nos assuntos da alma, ou está reduzido à imediatez das exigências quotidianas. Na ânsia de modernidade e de querer responder às necessidades quotidianas, desvalora-se a importantíssima pregação alusiva aos bens espirituais. A luta pela sobrevivência não dá espaço para os assuntos de fé, e querer estar no topo e ser superior não precisa de Deus. São desnecessárias as frugalidades que o Evangelho nos ensina: moderação, temperança, sobriedade, simplicidade são idiotices de simplórios. O mais importante é fazer-se acreditar por quem manda, cair nas suas graças e ter sorte, o que é muito importante.

Assim se cai na imoderação, no apetite das coisas que não fazem falta nenhuma, no vício de possuir, no esbanjamento, no desperdício - possuir o que não se precisa também é desperdiçar- e, pior ainda, na insaciedade pois surge o desejo de possuir sempre mais. Não contentes com isso, há os que adquirem bens materiais prejudicando outros, mentindo ou levantando falsos testemunhos sobre o próximo.

Esta deseducação social conduz inevitavelmente a um empobrecimento espiritual, de tal forma que a vida torna-se num vazio insuportável cujo fim é o gabinete do psicólogo ou do psiquiatra. Isto significa que a sociedade de hoje configura-se como um conjunto de cidadãos drogados (Portugal é o segundo país do mundo no consumo de medicamentos psiquiátricos), principalmente de drogas para dormir, porque as pessoas não conseguem desligar-se das preocupações laborais.

Posto isto, que lugar ocupa na vivência quotidiana consumista pedir o pão nosso de cada dia? Se perguntássemos a muitas pessoas o que é o pão nosso de cada dia espantar-nos-íamos com o leque de respostas. Com as necessidades que se inventaram de coisas que não fazem falta nenhuma, o pão nosso de cada dia para alguns seria um chorrilho de “desnecessidades”. Ora reflectir seriamente sobre isso é urgente. É preciso tomar consciência do envolvimento naquilo que não faz falta, como naquilo que não vale a pena. E já que tanto se fala em ecologia, pedir o pão nosso de cada dia não será porventura um pensamento ecologista?

Há que perceber que o pão nosso de cada dia é:

estabilidade, porque todos os dias temos garantida a satisfação do necessário;

despreocupação com a sobrevivência, porque Deus a tudo provê;

fé inabalável, porque sabemos que nada nos faltará;

riqueza, porque temos tudo;

felicidade, porque contentamo-nos com o que temos;

paz sólida, com o mundo e com Deus;

certeza da presença vigilante de Deus junto de nós.

 

Quem se contenta com o pão nosso de cada dia não recorre a Deus só quando a vida lhe corre mal, mas vive em permanente ligação ao mundo terreno e ao divino num agradecimento pelas graças recebidas. Esse muito obrigado ao mundo e a Deus é a voz da gratidão espiritual que nos eleva a patamares mais subtis na nossa caminhada evolutiva.

O pão nosso de cada dia é o alimento do corpo e da alma. Corpo e alma que são indissociáveis, sendo que o alimento de um não pode acontecer sem o do outro. Não nos alimentamos apenas de pão cereal, mas da Palavra Divina. Por isso Jesus disse: Ficou escrito: não é com base em pão só que viverá o ser humano, mas com base em toda a palavra saída através da boca de Deus.” (Mt 4:4) **

Pedir o pão também significa pedir a Palavra, isto é, os bens espirituais em uma saciedade total no banquete que está prometido junto de Deus, a todos os que se arrependem. A Palavra é o agente unificador entre o mundo material e o espiritual.

 

Margarida Azevedo

_________________________

*Pro 30: 7-9, Bíblia de Jerusalém, Paulus, São Paulo, 2002.

**Trad. Francisco Lourenço.

 

 

 

           

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