segunda-feira, junho 10, 2024

QUEM GANHOU?


 

            Generalizou-se a prática maratonista de chegar ao pódio. Vencer significa ser superior, um génio, um privilegiado e, mais do que tudo, garantir um lugar ao sol e a admiração de quase toda a gente. Não são os superiores camonianos que se evidenciaram por grandes feitos, aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando, mas os efémeros.

No dia-a-dia, os novos vencedores são os que iniciam um novo ciclo, que vão lutar contra uma lei natural, a saber, o topo é frágil, fugaz, um fogo-de-artifício muito colorido e espampanante mas que acaba depressa; não são, portanto, os inesquecíveis pelos grandes feitos, são os esquecidos porque odiados e apagados pelos feitos rápidos e pequenos, mas que pensam que são grandes. Isto é, são grandes porque assim os chamaram no perigoso palco dos interesses, não porque efectivamente o sejam. E eles são muitos, na política e na religião, nas chefias, nos sindicatos, nas mais comuns das funções. Por isso, uma vez lá chegados, tornam-se desconhecidos porque evidenciam características que pareciam não ter. As promessas e a simpatia eram apenas verniz.

            Contrariamente, no desporto o vencer é justo. Não há acontecimento internacional mais sublime que os Jogos Olímpicos. O encontro de gente de todo o lado, que desfila seguindo a sua bandeira e a placa com o nome do seu país, não pela política ou pela religião, não porque numa cimeira de qualquer temática, mas em nome das capacidades físicas em que irão mostrar as suas técnicas, revelando o quanto treinaram para lá chegar. É de facto emocionante ver subir lentamente as três bandeiras do podium, com os três vencedores medalhados, de flores nas mãos, laureados; ouvir aquele hino do vencedor é inesquecível. Os diferentes erguem-se perante a vitória, vindos dos confins do mundo, alguns de países cujos nomes desconhecemos. Ali, o mundo revela-se. O momento é de uma espiritualidade brilhante. As lágrimas da vitória ao olhar aquela gente toda, rendida às vibrações do hino, que geralmente se desconhece, estendendo-se a um estádio inteiro de pé e em silêncio, a felicitar a vitória de um desconhecido, de facto é inefável. Efectivamente, grande a Falange Espiritual que nos trouxe este presente, os Jogos Olímpicos.

            Mas, e os outros? Aqueles que não chegaram ao topo, que é feito deles? Os fracos, aqueles que por natureza que não têm espírito de luta, que apenas querem fazer o seu trabalho o melhor possível? Esses, no século XXI, são uma massa informe de gente, disponível para todo o serviço, desrespeitada, porque em tudo só vence quem tem espírito de ambição. São os efeitos corrosivos da competição fora de controlo em que esforço, mérito, vitória e triunfo é só para quem tem sangue na guelra, os mais fortes e os mais resistentes.

            Neste cenário, são cada vez mais os invisíveis política, social, laboral e religiosamente. Quando é necessária a sua presença, tornam-nos visíveis, é-lhes conferida a ilusão de que são importantes, gente com expressão. Porém, essa situação é difusa, passageira e opaca. Há uma discrepância abissal entre gente, ou melhor, gentes: uns, muito grandes, outros, os invisíveis. As promessas de uma vida melhor, no campo da política, são demagogia para angariar votos; na religião, para ter fiéis. No conjunto, todos querem poder.

            Porém, do lado dos talentosos vitoriosos, será que temos garantida a chegada a bom porto? Nem por isso. A realidade mostra que os talentos nem sempre são compatíveis com o valor que muitas vezes lhes é atribuído. Temos uma tendência inata, parece, para sobrevalorizar o talento lisonjeando-o. Será que devemos fazê-lo? É bom reflectir sobre isso. É que posso ter talento mas não merecer a recompensa do mesmo (Sandel, M.J., p. 154), é a conclusão a que se chega. A euforia consequente da vitória, por exemplo, resultante de fragilidades psicológicas, ou a enfatização endeusante do vitorioso, cultiva a fascinação e com ela o princípio de um fim que se perspectiva bastante doloroso. Onde falta a ética, a honra e o espírito de bem servir, a recompensa pela vitória é um presente envenenado.

            Não falta quem defenda que os conflitos na organização empresarial são uma mais-valia. Que dos conflitos nascem novas metodologias, que são melhor defendidos os interesses da empresa, que os mesmos são responsáveis pelo aumento da produtividade. Bem, o que parece é que em uma situação de conflito exaltam-se os ânimos, são ditas, no calor da exaltação, coisas que se não devem, palavras menos próprias, prolifera um clima de tensão entre funcionários, o que pode conduzir a situações desagradavelmente imprevisíveis. Mas, como é evidente, isto não interessa para nada, só interessa quando a desgraça acontece.

            Efectivamente, o perdedor no conflito é silenciado. Implementa-se, assim, o fosso entre funcionários, o recalcamento, o atrito e mesmo o ódio. Contudo, nem sempre os argumentos estão do lado da razão ou da verdade. A retórica é uma gramática feroz que manuseia as palavras para atingir fins pouco claros. A razão, a palavra avisada e os objectivos claros dispensam vozes altas, palavras e mais palavras, e a retórica é dispensável; a razão não ofende, não minimiza, não esmaga. Contrariamente, nos discursos elaborados, mas enganadores, a manipulação do sentido das palavras sempre foi uma constante, prova de que da discussão não nasce a luz (c.f. Ubaldi P., 1983), mas do diálogo sim.

O que deve interessar, em primeiro lugar, é a boa saúde da empresa, baseada no bom entendimento entre patrões, gerência e funcionários. Mas é claro, a união entre todos é qualquer coisa que não interessa ao Sistema. A união entre funcionários, e estes com as chefias, cria uma força que assusta quem pretende um clima de fragilidade.

            No Sistema, fora dos primeiros, nada mais interessa. Ora quantos competentes são calados, remetidos para os eternos derradeiros lugares apenas porque não têm apetência para a discussão? Afinal, o que é que está em causa? A boa produção, ou a classificação e respectiva divisão das pessoas em fortes e fracas, psicologicamente falando? O servilismo está implantado, e com ele um novo modelo de escravatura.

            Dito de outro modo, enquanto os funcionários estão ocupados com os conflitos entre si, as suas vidas privadas ficam para segundo plano, as chefias descartam-se de parte das suas responsabilidades administrativas, descansam sobre os problemas, cabendo aos funcionários esfolarem-se pelos melhores lugares, não olhando a meios para atingir os fins.

            Os conflitos, filhos da intolerância e do instinto de superioridade, levam vencedores e vencidos aos gabinetes dos psiquiatras e psicólogos, uns porque já não conseguem suportar o atrito entre colegas e a ausência do apoio familiar, porque a família está ausente, outros porque se sentem vencidos, remetidos para a classificação de inferiores, desnecessários, suplentes, dispensáveis.

            Enquanto não se perceber que somos todos importantes, desperdiçam-se energias nos conflitos ao invés de as mesmas serem aplicadas no bem-estar e na competência, geradores de riqueza. Tem que se perceber que enquanto o varredor de ruas limpa a via pública está a proteger-nos de epidemias; que se o hospital não for devidamente limpo não pode cumprir a sua função; que quem não está no topo forma uma infra-estrutura sem a qual nada sobrevive; que os que não ficaram no pódio desportivo também são bons atletas; que aqueles que não quiseram seguir estudos superiores também são inteligentes; que todos os que perdem, seja de que maneira for, também são gente e com muito valor; que a reputação de um indivíduo se mede pelo seu carácter; que a palavra de honra é o elo mais forte que liga cada indivíduo ao seu semelhante e à Espiritualidade Maior; que o nosso maior valor é a tolerância, o amor, o respeito mútuo, a diversidade cultural.

            É tempo de pensarmos em conjunto, caminharmos lado a lado unidos em um ideal de felicidade, em prol da vida; parar de explicar o presente pelo passado, seja espiritualmente, seja de um ponto de vista histórico, social e político. Estamos todos num mesmo caminho evolutivo. Fomos/somos, ainda, muito deficitários, em todos os aspectos. O passado sequestra ao presente a sua identidade, impede-o de representar a possibilidade de sermos uma alteridade para nós mesmos. Renascer já é criar uma diferenciação, ainda que cheia de subtilezas, face a um pretérito desconhecido ou perdido nas memórias recônditas do mistério da vida.

            Jesus, o homem, também se fez invisível como os mais fracos, nós, todos. Foi preciso expirar para que se abrissem os olhos ao centurião. O véu do Templo se rasgasse. Um crucificado, a maior das infâmias, mudou radicalmente o rumo da História. Jesus não é um herói, nem veio para converter ninguém. Não terá sido um bom exemplo do que é um perdedor? O que vem depois dele é que vai ser determinante, a saber, há derrotas que valem a pena, que são pontos de charneira para viragens na vida, que inauguram novos valores, que transportam uma espiritualidade maior.

É caso para perguntar: o que é que vai ser de mim depois de tantas lutas, depois de não ver os filhos crescer, das correrias quotidianas, do desejo de ter, de afogar a existência no supérfluo? Que sentido dei à vida, o que fiz dela? Valeu a pena? Se voltasse atrás, faria tudo igual? Não estou arrependido/a de decisões que tomei, de palavras que disse, de gestos, das milhentas desculpas esfarrapadas, dos disfarces, dos fingimentos, das mentiras, daquele olhar ávido, da voz estridente aos gritos com tudo e com todos? Aproveitemos cada momento, cada dia que passa, fugaz, na ilusão do tempo.

            Enquanto não se perder a noção de encaixe, para vencer na vida, deixando para trás os outros, esmagando-os nas teias da inveja, seja nos empregos, na política e na religião; enquanto não se cultivar a humildade e o gosto pelo bem-fazer; enquanto se procurar o protagonismo, o espectacular e o evidenciar-se a todo o custo, enfim, enquanto se fizer da vida uma luta constante contra o outro, o mundo continuará na senda da destruição em massa, na criação de pobreza e miséria, na fome e na guerra. É que a vaidade ridiculariza a vitória, enquanto a humildade encoraja a derrota.

Posto isto, e neste contexto, pergunta-se: Afinal, quem, efectivamente, ganhou? Ninguém.

 

            Margarida Azevedo

 

Bibliografia:

SANDEL, M. J., A Tirania do Mérito, Editorial Presença, Lisboa, 2022, O liberalismo do estado-providência, pp.153-157.

UBALDI, P., Princípios de uma Nova Ética, Fundápu, Rio de Janeiro, 1983.

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