domingo, junho 30, 2024

UMA VIDA DE AUSÊNCIAS

 


“O que interessa para a nossa civilização é mais a conquista da honestidade do que a do espaço.”

Pietro Ubaldi*


Porque rendidos ao infortúnio da pressa e das exigências profissionais, caímos no impensável, no susto de si perante si mesmo com as coisas que se vão dizendo e que nunca se esperou dizer. Tornamo-nos cada vez mais estranhos para nós mesmos, invadidos por sensações que nos moldam, o que nos conduz a tomada de decisões que vão contra os nossos mesmos interesses.

Nada há de pior que estar ausente de si mesmo, evadir-se de si, perder-se ou diluir-se na complexidade. O grande desafio da sociedade global consiste na luta em manter a identidade. De repente, a individualidade tornou-se uma ameaça perante uma sombra invisível, mas facilmente inflamável, que não nos quer como somos. A noção de nossa terra vai apagando-se gradualmente. A globalização torna-nos apátridas. Tudo é aparentemente nosso sem que nada nos pertença. Pretendem, quem, não se sabe, ausentarem-nos das nossas raízes.

Ter vontade própria é cada vez mais difícil, defendê-la e aplicá-la significa correr riscos com consequências imprevisíveis. Pensar por si chama-se descontextualizar, ameaçar qualquer coisa ou alguém, fazer perigar o que se pretende bem acomodado e muito arrumadinho.

Quando há falhas, porque é impossível que as não haja, a culpa é sempre do próprio: porque não está bem consigo mesmo, ou porque tem problemas de adaptação/socialização, bipolaridade, esquizofrenia, uma infância problemática e solitária porque o pai fugiu com a vizinha do lado, a mãe esfolou-se a trabalhar para dar conta da vida e não lhe dava atenção, na escola era motivo de chacota por não usar roupa de marca, era muito pobrezinho, ou então um riquinho inadaptado. A conjuntura, tipificadora e criadora de arquétipos, essa, nunca tem culpa.

Os espíritas mais sábios dizem que nada disso tem importância porque é kármico. Assim que lhe for revelado o passado espiritual, ou for devidamente esclarecido quanto ao seu percurso existencial, a coisa passa. A vida começa a rodar, a pessoa começa a sorrir, e a vida não mais o apanha pois foi invadido por uma hiperconsciência de si mesmo, tornando a pessoa imune a tudo e mais alguma coisa. Tudo se resume ao esclarecimento, uma espécie de chave-mestra que lhe vai abrir todas as portas. É claro que esse esclarecimento é facultado por quem está à altura dos factos, como é evidente: um médium iluminado.

Pensar na dimensão existencial do ser humano, com a sua natural fragilidade, o esvaziamento de uma certa consciência de si mesmo, resultante da natureza da própria encarnação, como factor de protecção, daria muito trabalho. Porque muitas vezes mexendo em coisas que não se deve com afirmações estapafúrdias quanto perigosas, alguns trabalhadores de Centros Espíritas, aqueles que vão ao arrepio desta triste realidade, vêem-se a braços com a intransigência, os chavões e os clichés que se sedimentaram nos Centros e que travam o natural progresso espiritual das casas espíritas. São os que lutam estoicamente contra muita coisa que ouvem e vêem.

Há que ter em conta que a nossa história espiritual e a nossa interioridade são um enigma. O mistério e o não mistério habitam-nos. Somos simultaneamente revelados e reveladores, assim como ocultos e opacos. Quando se diz, em Espiritismo, que não há mistérios, tem que se perceber toda uma contextualização de uma afirmação dessa natureza. O mistério revela-se com a evolução do Espírito e esvai-se com a mesma. A nossa vida quotidiana é o maior revelador. Não precisamos que alguém nos diga quem fomos ou como fomos. Ninguém percebe de nós como nós mesmos. Porém, a descoberta/revelação de si mesmo faz-se com o outro no convívio diário, na partilha, e não por meio de uma suposta revelação sobrenatural ou mística, como se se tratasse de um acontecimento metafísico. Temos que viver com os pés bem assentes na terra para que possamos fazer o caminho em conjunto, porque todos estamos implicados em todos. Ninguém caminha para Deus sozinho. Caso contrário, vive no vazio existencial.

Andamos à procura de significados: da vida, do sofrimento, do erro, da queda. Andamos à procura de sentido. Vivemos quer o espanto do quotidiano como a incoerência da procura de uma certa volatilidade da vida na busca da luz, da perfeição, de uma vida sem erros. Pura perda de tempo. Nós ainda fazemos parte de um processo evolutivo que prima pela necessidade de imperfeição. O erro é o móbil do nosso crescimento. O nosso caminho é ainda pedregoso. Jesus fez-se homem para nos mostrar que no mundo da imperfeição é possível atingir momentos de elevação do espírito, é possível pensar Deus, é possível uma certa, embora momentânea, lucidez ontológica. E isso é de uma espiritualidade extraordinária.

Temos em Jesus o apelo incondicional à prática do bem, através de um novo modo de vida que supera as tradições erroneamente sedimentadas, quer através do exemplo dos cobradores de impostos, quer do dos pagãos, modo esse que se impõe pela novidade, isto é, temos potencial para amar quem não nos ama. É nessa base que temos a possibilidade da realização pessoal (Mt 5:48), a exortação ao amor a Deus, acima de todas as coisas, e ao próximo como a nós mesmos (Mt 22:37-39), e por fim um novo mandamento, a saber, que nos amemos como Jesus nos amou (Jo 13:34-35). Nada disto é uma abstracção que fica no éter. Trata-se antes da inauguração de uma nova prática social, uma nova religiosidade, uma nova espiritualidade. Isto significa que não é a dimensão cultual da fé o aspecto mais importante, mas a sua dimensão social numa vivência em parceria, isto é, já não é o outro e eu, separadamente, passa a ser o nós, porque o caminho faz-se conjuntamente.

Porém, vivemos numa sociedade que se tornou em um nunca mais acabar de arquipélagos: sociais, políticos, religiosos, em uma palavra, existenciais. Já não falamos, ou muito pouco, temos máquinas que o fazem por nós.

Neste planeta onde vivemos, cada um quer por impor a sua fé, na tentativa de a colocar no pedestal de verdade universal. Ora precisa-se com urgência de fé desprovida de interesses, de práticas religiosas espiritualizadas, assentes nos corações, frágeis, orgânicos, limitados.

O que resta de nós? Os conflitos geracionais de há umas décadas não são os mesmos de hoje. O presente confronta-nos com a noção mecanicista do tempo, da comunicação à distância, de novas noções de espaço e de tempo com o respectivo encurtamento e brevidade dos mesmos. Tornámo-nos sem tempo num espaço que se tornou invadido por uma miríade de sombras. Os nossos fantasmas vieram à superfície. Serão os mais velhos a última geração que se lembra de um passado étnico, referencial da sua identidade, que viveu uma experiência revolucionária avassaladora, política, social, sexual? Como é que as novas gerações nos veem, ou irão ver? Avós cheios de memórias que não servem para nada, ou muito pouco? A quem interessa a nossa memória, a nossa vivência, a nossa experiência? O presente faz-nos viver a temeridade do esquecimento, o mesmo é dizer, a criação de um novo conceito de realidade que nos ignora. É como se nunca tivéssemos existido, já não somos referência para ninguém. E sem memória, não há o mais ténue vislumbre do que seremos, ou melhor, no que nos tornaremos.

De repente, parece que tudo se instalou numa lonjura. Sente-se que uma força nos quer tirar alguma coisa que é muito importante. Um dia, se alguém quiser saber de nós já vai ao álbum de fotografias, em papel ou no computador. Terá que recorrer a uma base de dados inserida num robot. Ir-se-á viver sem memória, porque transposta para um robot. Iremos cair na degradação existencial, no desmoronar das bases civilizacionais, seminais e identitárias de nós mesmos

Estamos a começar uma luta, não já a dos Elementos connosco, nem de nós com os deuses, mas com as máquinas que se construíram e que nos irão aniquilar, deixando nós de sermos o que somos hoje. Vão longe os tempos em que os deuses eram atraídos pela nossa natureza. O que atrairá os robots? E se eles nos substituírem, que falta fazemos nós? Surge um novo espanto: a ausência da necessidade de mim. Estar-se-á abaixo do descartável (porque o descartável significa algo que foi utilizado e já não faz falta). Agora, nem utilizado é.

O que carateriza o mundo de hoje é a ausência: estamos ausentes da nossa casa, ausentes dos afectos. A noção de progresso tornou-se sinónimo de coisificação, automatismo.

Por isso, o humano quer transportar-se para um mundo onde se sinta pessoa. Onde fica (?), não se sabe, mas quer fazer falta, sentir que alguém precisa de si. Essa procura significa, provavelmente, uma mudança de paradigma na nossa experiência trágica da insaciedade. E assim, nessa ilusão, procura-se nos outros planetas a resposta que só o coração pode dar.

 

Margarida Azevedo

 

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*UBALDI, P., Princípios de uma nova Ética, Fundápu, Rio de Janeiro, 1983, II Evolução da Ética, p.58.

Bíblia consultada: Bíblia, o Novo Testamento, Os Quatro Evangelhos, vol. I, Quetzal Editores, Lisboa, 2016, trad. Francisco Lourenço.

 

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