UMA VIDA DE AUSÊNCIAS
“O que interessa
para a nossa civilização é mais a conquista da honestidade do que a do espaço.”
Pietro Ubaldi*
Porque rendidos ao infortúnio da pressa
e das exigências profissionais, caímos no impensável, no susto de si perante si
mesmo com as coisas que se vão dizendo e que nunca se esperou dizer. Tornamo-nos
cada vez mais estranhos para nós mesmos, invadidos por sensações que nos
moldam, o que nos conduz a tomada de decisões que vão contra os nossos mesmos
interesses.
Nada há de pior que estar ausente de si
mesmo, evadir-se de si, perder-se ou diluir-se na complexidade. O grande
desafio da sociedade global consiste na luta em manter a identidade. De
repente, a individualidade tornou-se uma ameaça perante uma sombra invisível,
mas facilmente inflamável, que não nos quer como somos. A noção de nossa terra vai
apagando-se gradualmente. A globalização torna-nos apátridas. Tudo é
aparentemente nosso sem que nada nos pertença. Pretendem, quem, não se sabe,
ausentarem-nos das nossas raízes.
Ter vontade própria é cada vez mais
difícil, defendê-la e aplicá-la significa correr riscos com consequências
imprevisíveis. Pensar por si chama-se descontextualizar, ameaçar qualquer coisa
ou alguém, fazer perigar o que se pretende bem acomodado e muito arrumadinho.
Quando há falhas, porque é impossível
que as não haja, a culpa é sempre do próprio: porque não está bem consigo mesmo,
ou porque tem problemas de adaptação/socialização, bipolaridade, esquizofrenia,
uma infância problemática e solitária porque o pai fugiu com a vizinha do lado,
a mãe esfolou-se a trabalhar para dar conta da vida e não lhe dava atenção, na
escola era motivo de chacota por não usar roupa de marca, era muito pobrezinho,
ou então um riquinho inadaptado. A conjuntura, tipificadora e criadora de
arquétipos, essa, nunca tem culpa.
Os espíritas mais sábios dizem que nada
disso tem importância porque é kármico. Assim que lhe for revelado o passado
espiritual, ou for devidamente esclarecido quanto ao seu percurso existencial, a
coisa passa. A vida começa a rodar, a pessoa começa a sorrir, e a vida não mais
o apanha pois foi invadido por uma hiperconsciência de si mesmo, tornando a
pessoa imune a tudo e mais alguma coisa. Tudo se resume ao esclarecimento, uma
espécie de chave-mestra que lhe vai abrir todas as portas. É claro que esse
esclarecimento é facultado por quem está à altura dos factos, como é evidente:
um médium iluminado.
Pensar na dimensão existencial do ser
humano, com a sua natural fragilidade, o esvaziamento de uma certa consciência
de si mesmo, resultante da natureza da própria encarnação, como factor de
protecção, daria muito trabalho. Porque muitas vezes mexendo em coisas que não
se deve com afirmações estapafúrdias quanto perigosas, alguns trabalhadores de Centros
Espíritas, aqueles que vão ao arrepio desta triste realidade, vêem-se a braços com
a intransigência, os chavões e os clichés que se sedimentaram nos Centros e que
travam o natural progresso espiritual das casas espíritas. São os que lutam
estoicamente contra muita coisa que ouvem e vêem.
Há que ter em conta que a nossa história
espiritual e a nossa interioridade são um enigma. O mistério e o não mistério habitam-nos.
Somos simultaneamente revelados e reveladores, assim como ocultos e opacos. Quando
se diz, em Espiritismo, que não há mistérios, tem que se perceber toda uma
contextualização de uma afirmação dessa natureza. O mistério revela-se com a
evolução do Espírito e esvai-se com a mesma. A nossa vida quotidiana é o maior
revelador. Não precisamos que alguém nos diga quem fomos ou como fomos. Ninguém
percebe de nós como nós mesmos. Porém, a descoberta/revelação de si mesmo
faz-se com o outro no convívio diário, na partilha, e não por meio de uma
suposta revelação sobrenatural ou mística, como se se tratasse de um
acontecimento metafísico. Temos que viver com os pés bem assentes na terra para
que possamos fazer o caminho em conjunto, porque todos estamos implicados em
todos. Ninguém caminha para Deus sozinho. Caso contrário, vive no vazio existencial.
Andamos à procura de significados: da
vida, do sofrimento, do erro, da queda. Andamos à procura de sentido. Vivemos quer
o espanto do quotidiano como a incoerência da procura de uma certa volatilidade
da vida na busca da luz, da perfeição, de uma vida sem erros. Pura perda de
tempo. Nós ainda fazemos parte de um processo evolutivo que prima pela
necessidade de imperfeição. O erro é o móbil do nosso crescimento. O nosso
caminho é ainda pedregoso. Jesus fez-se homem para nos mostrar que no mundo da
imperfeição é possível atingir momentos de elevação do espírito, é possível
pensar Deus, é possível uma certa, embora momentânea, lucidez ontológica. E
isso é de uma espiritualidade extraordinária.
Temos em Jesus o apelo incondicional à
prática do bem, através de um novo modo de vida que supera as tradições
erroneamente sedimentadas, quer através do exemplo dos cobradores de impostos,
quer do dos pagãos, modo esse que se impõe pela novidade, isto é, temos
potencial para amar quem não nos ama. É nessa base que temos a possibilidade da
realização pessoal (Mt 5:48), a
exortação ao amor a Deus, acima de todas as coisas, e ao próximo como a nós
mesmos (Mt 22:37-39), e por fim um novo mandamento, a saber, que nos amemos
como Jesus nos amou (Jo 13:34-35). Nada disto é uma abstracção que fica no
éter. Trata-se antes da inauguração de uma nova prática social, uma nova
religiosidade, uma nova espiritualidade. Isto significa que não é a dimensão
cultual da fé o aspecto mais importante, mas a sua dimensão social numa
vivência em parceria, isto é, já não é o outro e eu, separadamente, passa a ser
o nós, porque o caminho faz-se
conjuntamente.
Porém, vivemos numa sociedade que se
tornou em um nunca mais acabar de arquipélagos: sociais, políticos, religiosos,
em uma palavra, existenciais. Já não falamos, ou muito pouco, temos máquinas
que o fazem por nós.
Neste planeta onde vivemos, cada um quer
por impor a sua fé, na tentativa de a colocar no pedestal de verdade universal.
Ora precisa-se com urgência de fé desprovida de interesses, de práticas
religiosas espiritualizadas, assentes nos corações, frágeis, orgânicos,
limitados.
O que resta de nós? Os conflitos
geracionais de há umas décadas não são os mesmos de hoje. O presente
confronta-nos com a noção mecanicista do tempo, da comunicação à distância, de
novas noções de espaço e de tempo com o respectivo encurtamento e brevidade dos
mesmos. Tornámo-nos sem tempo num espaço que se tornou invadido por uma miríade
de sombras. Os nossos fantasmas vieram à superfície. Serão os mais velhos a
última geração que se lembra de um passado étnico, referencial da sua
identidade, que viveu uma experiência revolucionária avassaladora, política,
social, sexual? Como é que as novas gerações nos veem, ou irão ver? Avós cheios
de memórias que não servem para nada, ou muito pouco? A quem interessa a nossa
memória, a nossa vivência, a nossa experiência? O presente faz-nos viver a temeridade do esquecimento, o mesmo é
dizer, a criação de um novo conceito de realidade que nos ignora. É como se
nunca tivéssemos existido, já não somos referência para ninguém. E sem memória,
não há o mais ténue vislumbre do que seremos, ou melhor, no que nos tornaremos.
De repente, parece que tudo se instalou
numa lonjura. Sente-se que uma força nos quer tirar alguma coisa que é muito
importante. Um dia, se alguém quiser saber de nós já vai ao álbum de
fotografias, em papel ou no computador. Terá que recorrer a uma base de dados inserida
num robot. Ir-se-á viver sem memória, porque transposta para um robot. Iremos
cair na degradação existencial, no desmoronar das bases civilizacionais,
seminais e identitárias de nós mesmos
Estamos a começar uma luta, não já a dos
Elementos connosco, nem de nós com os deuses, mas com as máquinas que se
construíram e que nos irão aniquilar, deixando nós de sermos o que somos hoje. Vão
longe os tempos em que os deuses eram atraídos pela nossa natureza. O que
atrairá os robots? E se eles nos substituírem, que falta fazemos nós? Surge um
novo espanto: a ausência da necessidade de mim. Estar-se-á abaixo do
descartável (porque o descartável significa algo que foi utilizado e já não faz
falta). Agora, nem utilizado é.
O que carateriza o mundo de hoje é a
ausência: estamos ausentes da nossa casa, ausentes dos afectos. A noção de
progresso tornou-se sinónimo de coisificação, automatismo.
Por isso, o humano quer transportar-se
para um mundo onde se sinta pessoa. Onde fica (?), não se sabe, mas quer fazer
falta, sentir que alguém precisa de si. Essa procura significa, provavelmente,
uma mudança de paradigma na nossa experiência trágica da insaciedade. E assim,
nessa ilusão, procura-se nos outros planetas a resposta que só o coração pode
dar.
Margarida Azevedo
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*UBALDI,
P., Princípios de uma nova Ética, Fundápu,
Rio de Janeiro, 1983, II Evolução da
Ética, p.58.
Bíblia
consultada: Bíblia, o Novo Testamento, Os
Quatro Evangelhos, vol. I, Quetzal Editores, Lisboa, 2016, trad. Francisco
Lourenço.
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