sexta-feira, dezembro 19, 2008

MORTE É FELICIDADE XXIX



A IMPORTÂNCIA DA MORTE NA VIDA DOS VIVOS


(Continuação)


c) omnipresença dos Espíritos

Este é o culminar da máxima ignorância. Herdeiros de uma cultura que chama deuses aos Espíritos, é difícil para muitos acreditar que eles não sejam mesmo deuses na verdadeira acepção do termo. É que não o são mesmo.
Eles não são omnipresentes, têm, pelo contrário, um ver e um estar muito limitados. A propósito, a Entidade comunicante responde em O Livro dos Espíritos, deste modo:
“”Os Espíritos têm o Dom da ubiquidade, ou, em outras palavras, o mesmo Espírito pode dividir-se ou estar ao mesmo tempo em vários pontos?
- Não pode haver divisão de um Espírito; mas cada um deles é um centro que irradia para diferentes lados, e é por isso que parecem estar em muitos lugares ao mesmo tempo. (...)
Todos os Espíritos irradiam com o mesmo poder?
- Bem longe disso; o poder de irradiação depende do grau de pureza de cada um.
Cada Espírito é uma unidade indivisível; mas cada um deles pode estender o seu pensamento em diversas direcções, sem por isso se dividir. É somente nesse sentido que s edeve entender o Dom da ubiquidade atribuído aos Espíritos.(...)” (KARDEC, A., o.c., pp. 94-95, questões n.ºs 92, 92-ª Nota sublinhada do autor).
A luminosidade é qualquer coisa que irradia, mas consoante o nível espiritual atingido. A isso se chama aura. Uma Entidade muito ignorante tem uma aura mínima, apenas preparada para captar a ajuda de seus protectores, e jamais para protecção de alguém. Uma Entidade com essas características é mais necessitada que possuidora de força para se impor, tal como um bebé, não anda sozinha.



BREVE APONTAMENTO SOBRE A MORTE NO POPULAR PORTUGUÊSw

Com o objectivo de exemplificar através dos meios populares quer nas suas superstições, quer por meio de crenças e mentalidades, e a fim de melhor esclarecer esta temática, tomemos um breve apontamento sobre o popular português no Baixo-Alentejo.
Nesta província, e provavelmente em todo o país, morte significa fechar os olhos, apagar-se. Trata-se de uma forma radical de dizer que alguém deixou de fazer parte da comunidade, mas simultaneamente que algo vence e atrai para si o indivíduo, tirando-o ao meio a que pertence.
A morte é um dos aconteceres da natureza, parte integrante dos ciclos existenciais da vida ao lado dos respectivos radicais biológicos que vão desde a concepção ao envelhecimento.
Assim, as forças que presidem ao equilíbrio de todas as coisas actuam também no ser humano. No entanto, para este há leituras, fundamentos explicativos, uma cultura que tenta sobrepor-se-lhe. Isto significa que, se para os outros seres a natureza age mecanicamente, segundo os preceitos de uma selecção natural qual mecanismo de grupo, no ser humano ela está dependente da conduta, factores de identificação com o meio a que pertence, capacidade de integração do indivíduo no grupo, mas, e principalmente, do modo como ele está ou pertence à comunidade, como participa nas celebrações sociais, isto é, de que modo ele engrandece a comunidade. Isto vai definir o bom do mau, opondo-os radical e definitivamente. Como facilmente se depreende, na comunidade aldeã, e cada vez mais na modernas concepções de eternidade, de além e de divino, entre outras, a raiz causal da morte tem em conta estes pressupostos: quem é bom morre de um modo, quem é mau morre de outro. Esta dualidade é ponto de charneira para os mecanismos explicativos que ao longo dos séculos a humanidade desenvolveu.
Todavia, em ambos os casos, a morte é sempre um bem. Para o bom, porque vai para um mundo melhor; para o mau, porque vai pagar pelos seus maus pendores. Garante de justiça, aquela que os homens não sabem fazer, ela dá contas de tudo o que estes fizeram, quer bom, quer mau, sem escapar nada, como se ouve dizer, isto é, mesmo o lado obscuro do pensamento humano. Daí o célebre dito de que “quem morre vai desta pra melhor”.
Nenhuma frase levanta tão firmemente o pensamento de que a morte é um bem como esta. Hoje, mercê do progressivo e rápido aligeiramento com que a morte é encarada, principalmente nos meios citadinos ou grandes centros urbanos, esta frase tem um sentido mais amplo. Se dantes remetia para a esperança de que um suposto bem, estável e duradouro, existe no para lá, agora ela é vivida na prática através da simplificação dos rituais fúnebres, da diversidade dos mesmos, assim como pelo progressivo abandono da manifestação do luto através do vestuário preto, do tempo de pranto (onde praticamente já nem existe), remetendo o luto para a saudade, o vazio sentimental e afectivo deixado por quem morre.
Neste ponto, as comunidades rurais estão em desvantagem, consequência directa de uma maior ligação à natureza. Manifesta-se, aí, uma dor mais profunda, partilhada e consequentemente prolongada. É dedicado mais tempo ao culto dos mortos, os rituais são mais longos. Por exemplo, no Baixo-Alentejo o morto é velado durante toda a noite, os familiares continuam o jejum, iniciado imediatamente a pós o falecimento, o qual, bastante agressivo, é prolongado pelo dia do funeral e semanas após este, período que corresponde ao tempo em que são recebidos sentimentos.
Porém, o tempo de “pranto” não corresponde ao tempo de vigília, mas ao período que vai desde a agonia até semanas ou meses após a cerimónia fúnebre. Note-se que, neste ponto, o pranto tem diferenças. As viúvas e as mães fazem um pranto maior que os restantes familiares, o que é comunitariamente compreensível e simbolicamente bastante rico. A mulher que gerou o homem, e a que a ele se entregou, dando-lhe os filhos, serão sempre os grandes elos de ligação do homem ao mundo. No entanto, também encontramos uma manifestação afectiva exuberante em alguns familiares, sentimentalmente muito próximos, os quais chegavam a passar semanas a prantear o falecido. Daí as expressões: “Foi-lhe fazer o pranto à porta”, “Fez um grande pranto no enterro”, “Fez-lhe um pranto em altos lavaritos”. Expressões que significam que o comportamento antes, durante e após o enterro foi aceite pela comunidade.
Esses prantos garantem que o falecido não vai ser esquecido, que vai ele permanecer na memória, isto é, que subiu ao estatuto de imortal; os familiares ganham posição de relevo na comunidade e, principalmente, a morte não foi racionalizada, não houve conformação do tipo “todos morremos um dia”. Isto não se diz por quem honra os seus mortos. E por isso os familiares provam que sabem honrá-los, sabendo enterrá-los.
Este aspecto faz da morte uma felicidade. Os mortos da família são um garante de protecção no outro mundo. Mas não só. A própria morte é um acto de manifestação do divino, pleno de justiça. Se a pessoa estava doente há muito tempo, ou se teve um acidente, tornando-o incapaz de participar nas efemérides da aldeia, de conviver na venda com os outros homens, se deixou de trabalhar, então Deus Nosso Senhor fez a graça de o levar. Deus soube levá-lo a tempo, dando-lhe a graça de morrer mais cedo, tirando-lhe sofrimento.
Mas isto não invalida pranto. Prantear é outra coisa bem mais incisiva. Sobre este aspecto Edgar Morin afirma:“(...) a ostentação da dor, própria de certos funerais, destina-se a provar ao morto a aflição dos vivos, a fim de garantir a benevolência do defunto. Em certos povos é a alegria que é de bom uso nessas ocasiões: visa mostrar tanto aos vivos como ao morto que este é feliz.” (s/d, p.27).
Se não concebemos a morte, se criámos todo um vastíssimo aparato ingénuo, no dizer do referido autor, para servir de justificativo de que a morte não existe, mau grado a realidade biológica, inventámos que ela pode ser, ou que efectivamente é, felicidade. Por outras palavras, se a morte é certa então porque não torná-la numa coisa feliz?
A religião alimenta e desenvolve esta postura da qual tira partido. Ela dá uma resposta, ou tem que dá-la, pois seguir uma religião é perseguir um ideal de eternidade que, para o crente, só ela esclarece. Não cumprir com as normas sociais e religiosas é ser estranho (estrangeiro), duvidoso, e isso é coisa que ninguém aceita na comunidade aldeã alentejana, por exemplo, ouvir música, cantar, comer durante a vigília, é impensável, mais, é um horror.
Chegados a este ponto, abramos um breve parêntesis a fim de tomarmos o exemplo de Albert Camus através da sua obra O estrangeiro. A história passa-se na Argélia, país igualmente quente e onde os funerais são sentidos com um pranto muito persistente e incisivo e o luto muito carregado. O nosso herói, o Estrangeiro, mata um árabe em legitima defesa, na praia. O que pesou para a Acusação? As condições em que matou? Se tinha intenção de matar? Se ele era ou não um homem honesto? Não. O que pesou para a Acusação foi nada mais que isto: O Estrangeiro não crê em Deus; olhar para um crucifixo não lhe diz nada, nem mesmo perante a necessidade (socialmente suposta) de acreditar em algo que o liberte da prisão; estava calmo no dia do funeral da mãe; não chorou no funeral; não sabia a idade da mãe; fumou durante o velório; sentiu-se cansado e foi dormir; sentiu fome e tomou café com leite; começou uma ligação sentimental a seguir à morte da mãe (ele e a namorada foram à praia e ao cinema, ver um filme de Fernandel – o grande cómico francês- passaram a noite juntos).
Conclusão: Este homem merece ser condenado à morte pois é capaz de crimes hediondos, tais como não chorar no funeral da mãe, e quem não chora no funeral da mãe é um monstro moral.
Este estrangeiro de nacionalidade, mas e principalmente face aos hábitos da comunidade, foi condenado à morte porque não socializou a sua dor, não a expressou exteriormente. A sua calma agrediu, simulando insensibilidade.
A condenação mostra o primitivismo, não só da comunidade, mas também da Lei. O Direito não conseguiu sobrepor-se ao senso comum, não abstraiu a diferença do individual entre o colectivo. “O estrangeiro é ou inimigo ou hóspede. Portanto, surge quer na sua individualidade absoluta, e é tratado como um deus, quer no seu estrangeirismo absoluto, e é morto.” (ibid., p. 74, nota n.º 8).
Se esta situação ocorresse no interior alentejano, cuja comunidade é extremamente fechada, podemos ter a certeza de que, para a Acusação, esses pormenores não seriam esquecidos. A estranheza seria idêntica. Não chorar e estar calmo no funeral da mãe, entre as restantes ocorrências, seria igualmente factor determinante para a Acusação. De facto, os funerais, e toda a nossa postura para com os mortos revelam a nossa intolerância, o nosso primitivismo, o quanto o espírito de grupo é nocivo e perigoso porque manifestação de inflexibilidade, mas também a nossa acomodação a um único propósito como se, de facto, os sentimentos tivessem manifestações-padrão, ou simplesmente por inflexão comodista resultante da falta de coragem para propor alterações. E foi isto que condenou o Estrangeiro.

a) o ritual fúnebre
w Comunicação apresentada nas III Jornadas Históricas de Seia, levadas a efeito nos dias 15-17/11/2000.


UM SANTO NATAL PARA TODOS COM MUITA PAZ

Barbara Diller

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