domingo, novembro 06, 2022

DAS RELIGIÕES OU DO ABISMO INFERNAL

 



(entre a alucinação e a fábula)

II

 

“O maior obstáculo para aceitar Deus sem restrições é a própria liberdade. A dependência atrai porque desresponsabiliza. A liberdade, pelo contrário, é culpabilizadora e crítica; faz-nos portadores do nosso próprio chicote.”

Um Espírito protector

 

Mas, afinal, as religiões não são feitas pelos homens? Se os homens não são perfeitos, elas também não. Sim, mas não esqueçamos de que não somos os mesmos individualmente ou em grupo. Os grupos, e quanto maiores pior, são facilmente impressionáveis, moldam-se segundo os objectivos e intentos dos seus líderes. Em grupo tomam-se decisões irreflectidas, contra os interesses individuais. A pessoa pode ser livre de ir a uma manifestação, de estar em uma assembleia religiosa, porém, uma vez lá dentro, deixa de ser livre. A multidão é sempre manipulada.

Diz Gustave Le Bom que “A multidão, (…) é quase exclusivamente conduzida pelo inconsciente. Os seus actos sofrem uma influência muito maior da espinal medula do que do cérebro. Os actos realizados podem ser perfeitos quanto à execução, mas uma vez que não são dirigidos pelo cérebro, o indivíduo age segundo os acasos da excitação.” (1)

Até mesmo no silêncio. Um grupo silenciosamente reunido, por exemplo, em meditação, não escapa à regra. No silêncio, a voz de um orador em surdina, em ambiente solto e descontraído, pode dizer o que quiser porque a assembleia está receptiva a tudo o que disser; é também o ambiente ideal para que, em grupos religiosos em que é suposto manifestarem-se Entidades, estas se surjam mais facilmente. O ambiente que se gera no silêncio é tão perigoso e manipulador quanto o das manifestações barulhentas. O modus operandi é diferente mas a susceptibilidade é semelhante. Por isso, no movimento espírita, os trabalhos mediúnicos são realizados no recato de pequenos grupos, solidamente constituídos, em que os trabalhadores se conhecem bem. A oração e o estudo sério e aberto da espiritualidade constituem a grande defesa; a seriedade de caracter e o respeito no grupo e pelas Entidades é fundamentalíssimo.

No entanto, nas grandes multidões espíritas, voltamos ao mesmo. Ouvem-se belos discursos, apelativos a grandes momentos de recolhimento, críticos dos nossos comportamentos, mas baseados em histórias bem elaboradas, na sua maioria, ou em conhecimentos científicos, ou supostamente, sem consistência, como se a espiritualidade dependesse dos nossos conhecimentos. Há quem fale de astronomia ou medicina, num chorrilho de disparates, e toda a gente aplaude como se fosse uma descoberta universal. O modo como o discurso acontece, a explanação cheia de vivacidade, o audio-visual para mostrar que o que diz é verdade, enfim, conduz ao delírio das multidões, verdadeiros estados de êxtase completamente descabidos.

            Roger-Pol Droit afirma, peremptório: “se os humanos têm um ponto em comum, independentemente dos séculos, das línguas, do desenvolvimento técnico, é esse poder de construir fábulas, de inventar mundos fictícios e de conseguir viver neles, com maior ou menor aceitação, em vez de no mundo real.” (2) As religiões têm sido peritas na construção desses mundos fictícios, levando os seus seguidores a viverem neles e a desprezarem este como se de um inferno se tratasse. Nos grupos religiosos que, tal como no Espiritismo, assentam na comunicação com as Entidades, isso é mais saliente. É facílimo criar a ilusão fabulosa de mundos de Luz que, na verdade, ninguém conhece. Um Mentor espiritual de um grupo mediúnico a que eu pertencia dizia certa vez: “Vocês nem do que se passa no vosso mundo fazem uma pequena ideia, quanto mais nos outros mundos. Se verdadeiramente soubessem o que se passa no vosso planeta assustavam-se!” A espiritualidade não é uma fábula, contar uma fábula é que pode ajudar-nos a compreender a espiritualidade.

            Na realidade, o que é que nós somos? Um bando de alucinados querendo dominar o mundo porque o divino está connosco. E a alucinação é tanto maior quanto nós falamos em nome do outro, colocando-nos no lugar dele e sem olhar às dimensões: tanto falamos em nome de Deus, e dizemos do que é que Ele gosta e não gosta, do que quer e não quer, das Suas preferência, do que Ele nos pede, como fazemos a mesma coisa em relação ao mais simples dos mortais. É tudo metido no mesmo saco. A alucinação torna-nos todo-poderosos, criando a falsa ideia de superioridade, obsessiva e cega. O alucinado é um possesso, de si próprio e de tudo o que atrai, habitualmente bajuladores. É caso para perguntar: E no nosso devido lugar, colocamos-nos? Sabemos falar dele?

            Na verdade, será que podemos colocar-nos no lugar do outro? Os clérigos estão no lugar de Deus ou representam-No ou estão directamente ao Seu serviço. Como? Não se sabe. O que se sabe é que se assim não for não dominam a assistência. Quando um orador espírita discursa, habitualmente têm-no como uma voz ao serviço dos bons Espíritos. Será? Esquecem-se de que bom só o Pai (Marcos 10:18). Mas ninguém quer saber disso.

 As religiões, com os seus interditos, fabricaram viciosos, separatismos sociológicos, desencontros irreversíveis. Conhecemos as explosões do sol, não fazemos nada contra as nossas mesmas explosões; vamos a Marte, à Lua, enviamos naves para o espaço sideral, mas não dispomos do mais simples mecanismo que nos convença de que não podemos continuar a confundir a ignorância, a inveja aterradora e os demais pensamentos e actos deploráveis com força divina. O trágico não é o que nos acontece por ocasião de um desencontro com algo que nos rodeia e se nos quer impor; também não é a nossa luta por fazermos valer os nossos propósitos, com todas as forças, porque nos sentimos incompreendidos, indesejados, excluídos, repudiados, em lutas que podem custar-nos a vida. A grande tragédia é chamar verde ao amarelo, azul ao encarnado, preto ao violeta e fazer disso uma verdade universal. O trágico é não perceber que há sentidos como os nossos, sensibilidades como as nossas, explicações outras que não apenas as nossas, mas querermos à viva força que as nossas prevaleçam. Vivemos a tragédia do totalitarismo, dos líderes, do patriarcalismo, da disfunção, da desarticulação, da perseguição constrangedora, dissuasora, avassaladora. Vivemos a tragédia da ferocidade,  de nos indesejarmos, a violência constante contra nós mesmos; vivemos a tragédia do não desejo de nós mesmos nem do outro; a tragédia da relativização da vida, do desamor pela natureza. Até vivemos a tragédia de nos temermos.

            De que somos, efectivamente, capazes? A resposta é assustadora. Estejamos em Marte ou na Lua, desloquemo-nos pelo espaço sideral infinito, transportaremos sempre a nossa tragédia: os nossos demónios, os nossos delírios, os meus valores. Não é o planeta que nos define e nos molda, mas a casa espiritual na qual vivemos. E esse mundo está onde estivermos, porque o verdadeiro mundo é a casa mental em que habitamos, móbil e referencial dos nossos actos.           

É mais fácil pensar que a vida é desconcertante, e que o desconcerto é o mecanismo de um crescimento que nos levará a grandes fusões. Na impossibilidade de o evitar porque a nossa natureza não o permite, aceitamos a tirania da nossa condição. Como sair dela? Não existem auto-saídas. É com o outro e com Deus que fazemos o trajecto pelos mundos.

A superioridade da força muscular ou a superioridade bélica não é trabalho divino, mas o modo como o humano utiliza os meios que o Divino lhe oferece. Não raro a vitória é uma derrota e a derrota uma vitória. A crise das religiões é a sua força. Conduzi-las-á a repensarem-se e a refazerem o caminho. Muitas irão desaparecer, não interessa a idade, até as aparentemente mais sólidas porque mais velhas ou mais antigas, para dar lugar a novos discursos, transformados, remodelados, refeitos; outras, talvez arrepiem caminho e se modifiquem. É a consciência a transformar-se a si mesma.

            Continuar a fazer do sofrimento ou da dor um bem, não é mais que fazer da porcaria virtude. É difícil perceber que o bem esteja tão dependente do mal, ou que o bem é o mal transformado no seu oposto. Nos contos de fadas, o bem e o mal são co-existentes e de naturezas opostas. Caminham lado a lado. Porém, na luta entre o bem e o mal este perde forma terrível. O mal não vale a pena, nos contos de fadas, porque ele é realmente muito mau. No religioso somos habitados por ele, representamo-lo; nos contos de fadas, ele está fora de nós; no religioso, está dentro de nós. Afinal de contas, onde está o mal? Dentro ou fora de nós? Ataca-nos ou somos nós que nos atacamos, ou acontecem ambas as situações em simultâneo? A nossa vida é esta luta entre o fora e o dentro, um jogo de posições entre o que muda e o que não muda, o que se transforma e o que se esvai.

            Nesta confusão, há quem pense que destruindo o outro, queimando casas e terras, porque tem outra fé, destrói toda uma construção de crenças para sempre. Puro engano. Há efectivamente, do lado dos vencedores, alguém que, no silêncio, não concorda com a vitória porque tem a noção do quanto é efémera. Há sempre um contágio que fica, por mais insignificante que pareça. Depois há a história que não perdoa e que mais cedo ou mais tarde vem cobrar o preço de uma vitória fictícia, prisioneira das ilusões do momento. Vencer destruindo é a maior das derrotas. Aquele que cai levanta-se sempre, de alguma forma. Cair não significa morrer.

Quanto ao bem, há quem ainda não tenha percebido que a questão não fica resolvida pela matemática, história ou biologia. A luz salvífica é de outra natureza. Quando Jesus nos adverte que bom não é quem diz “Senhor, Senhor, mas o que faz a vontade do meu Pai que está nos céus” (Mateus 7:21), está patente o arregaçar das mangas e ir à luta. Nos evangelhos não há bons, há lutadores. Há esperança. Há certeza. O Evangelho é uma alfaia, uma rede de pesca, um computador, para todos/as aqueles/as que procuram o encontro com Deus nas entranhas da terra, no fundo do mar ou nos confins do planeta.

Lamentavelmente, as nossas fantasias e os nossos devaneios conduziram-nos, inevitavelmente, ao vazio. Já não acreditamos como antigamente, é um facto, talvez tenhamos crescido um pouco, ou não. Todavia, o problema está em nem tampouco se saber em quem acreditar, como acreditar, se vale a pena acreditar e se tudo isso não é mais que pura perda de tempo. Deus está demasiado socializado. Somos diariamente interpelados por uma infinidade de coisas que se cruzam dentro de nós e nos preenchem espaços que deviam ser só nossos.

Os cristãos, particularmente, deviam perceber que, após a Cruz tudo se renova numa Primavera que é toda espiritual. A responsabilidade apenas começa agora, atravessada por um novo conceito de Vida. A Cruz introduz-nos na liberdade e noutro sentido existencial. A Cruz é fim: de uma forma de vida, de um viver de falsos conceitos e falsas expectativas. A Cruz é o fim da própria morte. Outros, noutras partes do mundo, dirão coisas semelhantes por outros meios. Tudo se funde quando o Amor é a principal razão de viver.

O túmulo está vazio. A pedra foi removida. A figura do diabo e as de todos os demais representantes da nossa inferioridade já não servem, perderam todo o sentido. Que interessa os nomes que se lhes dá? Luz versus trevas, atracção versus repulsão, karma, energias!? Termos que não passam de meros substitutos dos antigos conceitos, importações, contágios, simpatias. As modas não alteram os nossos fundamentos. Na realidade, tudo permanece igual e a funcionalidade é idêntica.

Mas há um Mandamento novo, primaveril, sempre novo: “Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros, tal como eu vos amei, para que também vós vos ameis uns aos outros. Nisto se reconhecerão todos que sois meus discípulos, se amor tiverdes entre vós.” (3)

Apetece dizer: “E é tudo.”

(continua)

 

Margarida Azevedo

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Referências:

(1)   BON, G.L., Psicologia das multidões, Publicações Europa-América, Mem-Martins, s/d, p.27.

(2)   DROIT, R-P, Si je n´avais plus qu´une heure à vivre, Odile Jacob essais, Paris,

2015, p.82. Trad. Margarida Azevedo.

(3)   Bíblia, vol.I, Novo Testamento, Os Quatro Evangelhos, Trad. Frederico Lourenço, Quetzal Editores, Lisboa, 2016, Jo 13: 34-35, p.384.

 

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