sexta-feira, novembro 18, 2022

DAS RELIGIÕES OU DO ABISMO INFERNAL


 

(O Silêncio dos Bons)

 

III

 

 

“Os seres humanos nunca praticam o mal de maneira tão completa e feliz como quando o fazem por convicção religiosa.”

Pascal (1)

 

A nossa imaginação criou noções de bem e de mal problemáticas. Parece que há um fundo estruturante que lhes dá vida e consistência. Porém, não sabemos que fundo é esse, e as religiões continuam a perpetuá-lo
.

 

            Um deus mágico é o oposto ao Deus da bondade. Mas é com esse deus que as religiões trabalham, e por isso temem a racionalidade. Onde está o colo, a doçura e a afabilidade? Onde está a solicitude, a compreensão, o saber ouvir sem censuras? Onde está a verdadeira moldagem do espírito humano, a modificação de uma natureza em que insistimos permanecer e prolongar? Ninguém fala nisso. Por outro lado, poderão as religiões moldar a nossa natureza? Estará semelhante função ao seu alcance? Se não, porque existem? Se sim, porque não o fazem?

            As religiões desertificam. Estão demasiado preocupadas com os seus tesouros, o poder, o domínio. Secam-nos, invadem-nos. Publicitam-se como um perfume, atacam-se entre si na luta pela supremacia política, postos de destaque, pelo vil poder.

            Para o comum dos crentes, não é a morte que assusta, nem o pesadelo da vida, mas o não ter forças para lutar por uma vida melhor, manietado por princípios que, na hora da morte, se revelam falsos, fantasiosos, ingénuos, inapropriados. Uma mentira sem fim, uma vida perdida é isso que tememos. É este o verdadeiro deserto, o vazio, a revolta. O temor de pensarmos que a hora da morte se reveste de híper-lucidez, até mesmo para aqueles que foram loucos uma vida inteira, condenados aos hospícios; tememos esse momento de balanço fugaz do último suspiro, a bater bem fundo na consciência, a gritar de olhos vítreos: “Desperdiçaste uma existência. Foste um/a fraco/a porque não lutaste, porque acreditaste ao invés de perdoares, de amares, de seres feliz. Não percebeste nada de nada e deste tanta força ao inútil.” É o momento em que a morte é como quem se lança de um avião sem pára-quedas.

            Tememos o momento da morte como uma incompatibilidade com a vida. Uma vida posta de rastos, curvada, submissa, fraca e tão drasticamente mal vivida.

            Nesse momento, é natural que, lá bem no fundo, a consciência diga que a pureza e a graça já não moram aqui. Mudaram-se para outro lugar porque as religiões sequestraram-nos, desiludiram-nos, falharam. Foram uma vivência fantasmática, uma ficção, uma brincadeira leviana com a espiritualidade. Falharam porque o maior erro foi terem a perfeição como paradigma. A imperfeição é um bem. Nela reside a infinidade de hipóteses e reparos. É o móbil do futuro. A imperfeição será sempre o que caracteriza tudo o que não é Deus. Só a imperfeição conduz à humildade, ao repensar, à memória como uma alavanca para a coragem de querer continuar sempre em frente.

            Identificar imperfeição com diabolização é erro crasso. Rejeitar a comunicação com os Espíritos ainda é pior. Nós vivemos com os mortos. Lembramo-los a par e passo. Até temos um dia no ano para os lembrarmos com mais afinco, não vá alguém ter a ousadia de os esquecer. Familiares que já partiram, amigos que deixaram saudade, colegas e professores que nos marcaram. O grande pecado seria a ingratidão de não os lembrarmos. Eles estão connosco. Numa oração tocamo-los com o pensamento. Sentimos a sua presença numa intuição, num sonho, numa inspiração. E é assim porque Deus o permite. Os mortos são a nossa esperança, o que de mais perto legitima a nossa fé, o que melhor nos lembra que devemos continuar. Um dia, os mortos seremos nós e não desejamos ser esquecidos. O barro volta ao barro, mas isso não significa perda de memória nem injustiça divina. É a vida que continua em outras paragens numa doce lembrança. Os mortos, ainda que em sonhos, são a expressão, indelével, da transposição da cortina que é a misteriosa morte face a algo não menos misterioso que é a vida. Os mortos são a nossa mais fiel expressão de amor, porque o amor nem é de barro nem morre.

            Além disso, quando falamos dos mortos longínquos, perdidos na noite dos tempos, abordamos o fundamento da ancestralidade identitária de um povo, ou de uma nação inteira. Por outro lado, podemos igualmente estar a falar de nós próprios. Somos os nossos ancestrais, os avós de nós mesmos, aqui ou em qualquer lugar, tal como somos contemporâneos uns dos outros no passado distante, reencontrados hoje na vida que estamos a viver. Na verdade, viver é reencontrar-se e reencontrar.

            “Mas esta vida não se tornou insuportável, um verdadeiro abismo? “O abismo não é a nossa natural ignorância, nem a vida é insuportável. O abismo é querer fazer parte de uma falsa realidade, e isso é que é insuportável, sem se dar conta de que é um castelo de cartas; lutar por ser rico por medo de não ter poder, porque onde há dinheiro há dignidade, segundo o novo padrão de valores; estar na fé como um carneiro e sentir-se feliz por pertencer ao rebanho. Isto é que é abissal e insuportável.

            Lamentavelmente, as religiões estão atrasadas. Num mundo de tanta pressa, não há pressa de chegar a Deus. Precisamos de uma revolução religiosa e outra dentro de nós mesmos. Este momento hipnótico em que vivemos ofusca o entendimento e a fé. É urgente uma reconfiguração. Sentimo-nos feridos, deficitários, carenciados. Faz-nos falta aprender o puro desperdício, aquele que remete para valores mais altos, que nos perfuma a alma, que nos prostra aos pés do verdadeiro, do puro e do sublime; que anula o poder económico como uma exibição, uma força perante o outro; que manifesta uma fé com a noção da transcendência; um desperdício metafísico, existencial, num banquete onde ninguém dá importância ao aroma purificador. Aquele desperdício em que pensar no preço é ridicularizar uma situação existencial inefável, toda consciência, toda espectacularidade. É caso para perguntar: “Já comprou o seu frasco de nardo? Sobre quem pensaria derramá-lo?” (2)

            Estamos a colher os efeitos colaterais de um passado tenebroso face a uma modernidade cujo materialismo tem cada vez mais força. A criação de santos e símbolos, de ritos complexos, mártires, enfim, é uma máquina de enriquecimento fácil. Mais preocupadas em negociar com a espiritualidade, exaltando a fé como força subserviente e submissa ao seu poder, as religiões caminham no ateísmo aterrador.

            Uma linha transversal une todas as religiões: silenciam aqueles que poderiam fazer delas mananciais de luz divina ao serviço da humanidade. Silenciam os bons. Quantos há que desejariam ser ouvidos, que têm um saber que lhes vem do fundo da alma, uma consciência profunda e assertiva do bem e do mal, mas que as figuras do topo não permitem que se manifestem?! Grandes pecados, os das religiões. No momento de grande pregação que é o Sermão da Montanha, Jesus diz: “Nem <as pessoas> acendem uma candeia e a colocam debaixo do alqueire, mas sim em cima do candelabro – e brilha para todos os que estão dentro da casa. Que assim brilhe a vossa luz diante das pessoas, para que elas vejam as vossas belas ações e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus.” (3)

            De luzes apagadas caminham as religiões, cegas, rumo ao precipício da humanidade. Assim se formam grupos por dissidência, cinicamente chamados de pluralismo e liberdade de expressão, riqueza religiosa, mas que, no fundo, mais não são que fruto da expulsão de elementos altamente valiosos, na sua maioria, que poderiam fazer crescer os movimentos em que se encontram. Por isso, numa opinião muito pessoal, reforço o que disse há algum tempo: Não abandone o seu grupo religioso. Sinta-se responsável pelo seu crescimento. Se acha que tem uma palavra a dizer, lute por se fazer ouvir. A saída será sempre a última opção.

Porém, esta questão conduz-nos a uma reflexão interessante. Pergunta-se: Porque é que o vidente, o profeta e o sacerdote não coincidem na mesma pessoa? Porque com diferentes actores, parece que estamos a falar de espiritualidade em graus diferentes, diferentes discursos, diferentes intensidades, diferentes experiências. Quanto a nós, ainda que não sejamos nenhum deles, há o dever do cumprimento de dizer o que está bem e o que não está, o que nos remete para outra questão: O que sou e quem sou eu na minha religião ou na minha igreja? Excelentes temáticas para reflectir.

Os caminhos da fé libertadora são imensos, eles emergem de uma vontade salvífica cheia de perguntas difíceis. Por exemplo, como se entrelaçam o dia-a-dia, a fé e a religião? Que lugar ocupa esta na nossa vida? Que ferramentas nos fornece para os nossos labores? Que espaço para a individualidade? Qual o lugar da fé na religião e por que religião luta a fé? Não esqueçamos: há uma dimensão misteriosa do religioso. Por que há religiões? Provavelmente, é por aí que devemos começar.

Ainda que os clérigos peçam perdão pelos actos ignóbeis de tempos remotos, pelas verdades que ocultaram, por todos os que torturaram, enfim, não é isso que está em causa. No momento não temos a noção do que fazemos, e há qualquer coisa que se chama evolução. O problema é mais profundo. É que HOJE continuam a fazer-se idênticos erros, com outros nomes, noutros contextos, noutras realidades. Continuam as perseguições, as descriminações através de meios apenas mais sofisticados. Hoje, condenam-se ao desemprego, já não às galés, silenciam-se e torturam-se com outros requintes. Hoje censuram-se programas de rádio ou de televisão, denegrecem-se personalidades, levam-se ao ridículo pessoas cheias de valor; temem-se os bons mais do que nunca porque eles podem chegar a todo o lado à velocidade do relâmpago. 

Hoje impedem-se grupos de construir as suas instituições de ajuda social, impede-se a ascensão de outros grupos no tecido religioso. Já lá vai o tempo dos Cristãos Novos, judeus convertidos à força. Hoje, vive-se a força da intolerância sobre os que nasceram já convertidos. Até os pacifistas estão armados até aos dentes. Hoje, em todo o mundo, há o silêncio de fés pelos grupos dominantes. É urgente que a necessidade do diálogo inter-religioso passe para todas as consciências. Sem isso feito, nada feito.

Fique com estas palavras numa oração com toda a humanidade. Há tanta gente à sua espera:

 

“Aclamai ao SENHOR, terra inteira!

Servi ao SENHOR com alegria,

   ide à sua presença com júbilo!

Sabei que só o SENHOR é Deus;

   foi Ele que nos fez e a Ele pertencemos;

   somos o seu povo e o rebanho de que Ele é pastor.

Entrai nas suas portas em ação de graças,

   nos seus átrios com hinos de louvor;

   agradecei-lhe e bendizei o seu nome.

Pois o SENHOR é bom;

   é eterna a sua misericórdia,

   e a sua fidelidade continua de geração em geração.” (4)

 

Margarida Azevedo

 

(1)   In: Revista Eletrônica.

(2)   Consultar: Mt 26: 1-8; Mc14: 3-9; Lc 7: 36-50; Jo12 1-8.

(3)   Bíblia, Novo Testamento, Os Quatro Evangelhos, Quetzal Editores, Lisboa, 2016, vol. I, Mt 5: 15-16, p. 74.trad.,LOURENÇO,F.

(4)   Sl 100, Bíblia, Os Quatro Evangelhos e os Salmos, Fundação Secretariado Nacional da Educação Cristã, Lisboa, 2019, p.536.

 

 

 

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