DAS RELIGIÕES OU DO ABISMO INFERNAL
(O Silêncio dos Bons)
III
“Os seres humanos nunca praticam o mal de maneira tão
completa e feliz como quando o fazem por convicção religiosa.”
Pascal (1)
A nossa imaginação criou noções de bem e de mal
problemáticas. Parece que há um fundo estruturante que lhes dá vida e consistência. Porém, não
sabemos que fundo é esse, e as religiões continuam a perpetuá-lo
.
Um deus mágico é o oposto ao Deus da bondade. Mas é com
esse deus que as religiões trabalham, e por isso temem a racionalidade. Onde
está o colo, a doçura e a afabilidade? Onde está a solicitude, a compreensão, o
saber ouvir sem censuras? Onde está a verdadeira moldagem do espírito humano, a
modificação de uma natureza em que insistimos permanecer e prolongar? Ninguém
fala nisso. Por outro lado, poderão as religiões moldar a nossa natureza?
Estará semelhante função ao seu alcance? Se não, porque existem? Se sim, porque
não o fazem?
As religiões desertificam. Estão demasiado preocupadas
com os seus tesouros, o poder, o domínio. Secam-nos, invadem-nos. Publicitam-se
como um perfume, atacam-se entre si na luta pela supremacia política, postos de
destaque, pelo vil poder.
Para o comum dos crentes, não é a morte que assusta, nem
o pesadelo da vida, mas o não ter forças para lutar por uma vida melhor,
manietado por princípios que, na hora da morte, se revelam falsos, fantasiosos,
ingénuos, inapropriados. Uma mentira sem fim, uma vida perdida é isso que tememos.
É este o verdadeiro deserto, o vazio, a revolta. O temor de pensarmos que a
hora da morte se reveste de híper-lucidez, até mesmo para aqueles que foram
loucos uma vida inteira, condenados aos hospícios; tememos esse momento de
balanço fugaz do último suspiro, a bater bem fundo na consciência, a gritar de
olhos vítreos: “Desperdiçaste uma
existência. Foste um/a fraco/a porque não lutaste, porque acreditaste ao invés
de perdoares, de amares, de seres feliz. Não percebeste nada de nada e deste tanta
força ao inútil.” É o momento em que a morte é como quem se lança de um
avião sem pára-quedas.
Tememos o momento
da morte como uma incompatibilidade com a vida. Uma vida posta de rastos, curvada,
submissa, fraca e tão drasticamente mal vivida.
Nesse momento, é
natural que, lá bem no fundo, a consciência diga que a pureza e a graça já não
moram aqui. Mudaram-se para outro lugar porque as religiões sequestraram-nos,
desiludiram-nos, falharam. Foram uma vivência fantasmática, uma ficção, uma
brincadeira leviana com a espiritualidade. Falharam porque o maior erro foi
terem a perfeição como paradigma. A imperfeição é um bem. Nela reside a
infinidade de hipóteses e reparos. É o móbil do futuro. A imperfeição será
sempre o que caracteriza tudo o que não é Deus. Só a imperfeição conduz à
humildade, ao repensar, à memória como uma alavanca para a coragem de querer
continuar sempre em frente.
Identificar imperfeição com diabolização é erro crasso.
Rejeitar a comunicação com os Espíritos ainda é pior. Nós vivemos com os
mortos. Lembramo-los a par e passo. Até temos um dia no ano para os lembrarmos
com mais afinco, não vá alguém ter a ousadia de os esquecer. Familiares que já
partiram, amigos que deixaram saudade, colegas e professores que nos marcaram.
O grande pecado seria a ingratidão de não os lembrarmos. Eles estão connosco.
Numa oração tocamo-los com o pensamento. Sentimos a sua presença numa intuição,
num sonho, numa inspiração. E é assim porque Deus o permite. Os mortos são a
nossa esperança, o que de mais perto legitima a nossa fé, o que melhor nos
lembra que devemos continuar. Um dia, os mortos seremos nós e não desejamos ser
esquecidos. O barro volta ao barro, mas isso não significa perda de memória nem
injustiça divina. É a vida que continua em outras paragens numa doce lembrança.
Os mortos, ainda que em sonhos, são a expressão, indelével, da transposição da
cortina que é a misteriosa morte face a algo não menos misterioso que é a vida.
Os mortos são a nossa mais fiel expressão de amor, porque o amor nem é de barro
nem morre.
Além disso, quando falamos dos mortos longínquos, perdidos
na noite dos tempos, abordamos o fundamento da ancestralidade identitária de um
povo, ou de uma nação inteira. Por outro lado, podemos igualmente estar a falar
de nós próprios. Somos os nossos ancestrais, os avós de nós mesmos, aqui ou em
qualquer lugar, tal como somos contemporâneos uns dos outros no passado
distante, reencontrados hoje na vida que estamos a viver. Na verdade, viver é
reencontrar-se e reencontrar.
“Mas esta vida não
se tornou insuportável, um verdadeiro abismo? “O abismo não é a nossa
natural ignorância, nem a vida é insuportável. O abismo é querer fazer parte de
uma falsa realidade, e isso é que é insuportável, sem se dar conta de que é um
castelo de cartas; lutar por ser rico por medo de não ter poder, porque onde há
dinheiro há dignidade, segundo o novo padrão de valores; estar na fé como um
carneiro e sentir-se feliz por pertencer ao rebanho. Isto é que é abissal e
insuportável.
Lamentavelmente, as religiões estão atrasadas. Num mundo
de tanta pressa, não há pressa de chegar a Deus. Precisamos de uma revolução
religiosa e outra dentro de nós mesmos. Este momento hipnótico em que vivemos
ofusca o entendimento e a fé. É urgente uma reconfiguração. Sentimo-nos
feridos, deficitários, carenciados. Faz-nos falta aprender o puro desperdício,
aquele que remete para valores mais altos, que nos perfuma a alma, que nos
prostra aos pés do verdadeiro, do puro e do sublime; que anula o poder económico
como uma exibição, uma força perante o outro; que manifesta uma fé com a noção
da transcendência; um desperdício metafísico, existencial, num banquete onde
ninguém dá importância ao aroma purificador. Aquele desperdício em que pensar
no preço é ridicularizar uma situação existencial inefável, toda consciência,
toda espectacularidade. É caso para perguntar: “Já comprou o seu frasco de nardo? Sobre quem pensaria derramá-lo?”
(2)
Estamos a colher os efeitos colaterais de um passado
tenebroso face a uma modernidade cujo materialismo tem cada vez mais força. A
criação de santos e símbolos, de ritos complexos, mártires, enfim, é uma
máquina de enriquecimento fácil. Mais preocupadas em negociar com a
espiritualidade, exaltando a fé como força subserviente e submissa ao seu
poder, as religiões caminham no ateísmo aterrador.
Uma linha transversal une todas as religiões: silenciam
aqueles que poderiam fazer delas mananciais de luz divina ao serviço da
humanidade. Silenciam os bons. Quantos há que desejariam ser ouvidos, que têm
um saber que lhes vem do fundo da alma, uma consciência profunda e assertiva do
bem e do mal, mas que as figuras do topo não permitem que se manifestem?!
Grandes pecados, os das religiões. No momento de grande pregação que é o Sermão
da Montanha, Jesus diz: “Nem <as
pessoas> acendem uma candeia e a colocam debaixo do alqueire, mas sim em
cima do candelabro – e brilha para todos os que estão dentro da casa. Que assim
brilhe a vossa luz diante das pessoas, para que elas vejam as vossas belas
ações e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus.” (3)
De luzes apagadas caminham as religiões, cegas, rumo ao
precipício da humanidade. Assim se formam grupos por dissidência, cinicamente
chamados de pluralismo e liberdade de expressão, riqueza religiosa, mas que, no
fundo, mais não são que fruto da expulsão de elementos altamente valiosos, na
sua maioria, que poderiam fazer crescer os movimentos em que se encontram. Por
isso, numa opinião muito pessoal, reforço o que disse há algum tempo: Não abandone o seu grupo religioso. Sinta-se
responsável pelo seu crescimento. Se acha que tem uma palavra a dizer, lute por
se fazer ouvir. A saída será sempre a última opção.
Porém,
esta questão conduz-nos a uma reflexão interessante. Pergunta-se: Porque é que
o vidente, o profeta e o sacerdote não coincidem na mesma pessoa? Porque com
diferentes actores, parece que estamos a falar de espiritualidade em graus
diferentes, diferentes discursos, diferentes intensidades, diferentes
experiências. Quanto a nós, ainda que não sejamos nenhum deles, há o dever do
cumprimento de dizer o que está bem e o que não está, o que nos remete para
outra questão: O que sou e quem sou eu na minha religião ou na minha igreja?
Excelentes temáticas para reflectir.
Os
caminhos da fé libertadora são imensos, eles emergem de uma vontade salvífica
cheia de perguntas difíceis. Por exemplo, como se entrelaçam o dia-a-dia, a fé
e a religião? Que lugar ocupa esta na nossa vida? Que ferramentas nos fornece
para os nossos labores? Que espaço para a individualidade? Qual o lugar da fé
na religião e por que religião luta a fé? Não esqueçamos: há uma dimensão
misteriosa do religioso. Por que há religiões? Provavelmente, é por aí que
devemos começar.
Ainda que os clérigos peçam perdão pelos actos ignóbeis de tempos remotos, pelas verdades que ocultaram, por todos os que torturaram, enfim, não é isso que está em causa. No momento não temos a noção do que fazemos, e há qualquer coisa que se chama evolução. O problema é mais profundo. É que HOJE continuam a fazer-se idênticos erros, com outros nomes, noutros contextos, noutras realidades. Continuam as perseguições, as descriminações através de meios apenas mais sofisticados. Hoje, condenam-se ao desemprego, já não às galés, silenciam-se e torturam-se com outros requintes. Hoje censuram-se programas de rádio ou de televisão, denegrecem-se personalidades, levam-se ao ridículo pessoas cheias de valor; temem-se os bons mais do que nunca porque eles podem chegar a todo o lado à velocidade do relâmpago.
Hoje impedem-se grupos de construir as suas
instituições de ajuda social, impede-se a ascensão de outros grupos no tecido
religioso. Já lá vai o tempo dos Cristãos Novos, judeus convertidos à força.
Hoje, vive-se a força da intolerância sobre os que nasceram já convertidos. Até
os pacifistas estão armados até aos dentes. Hoje, em todo o mundo, há o
silêncio de fés pelos grupos dominantes. É urgente que a necessidade do diálogo
inter-religioso passe para todas as consciências. Sem isso feito, nada feito.
Fique com estas
palavras numa oração com toda a humanidade. Há tanta gente à sua espera:
“Aclamai
ao SENHOR, terra inteira!
Servi
ao SENHOR com alegria,
ide à sua presença com júbilo!
Sabei
que só o SENHOR é Deus;
foi Ele que nos fez e a Ele pertencemos;
somos o seu povo e o rebanho de que Ele é
pastor.
Entrai
nas suas portas em ação de graças,
nos seus átrios com hinos de louvor;
agradecei-lhe e bendizei o seu nome.
Pois
o SENHOR é bom;
é eterna a sua misericórdia,
e a sua fidelidade continua de geração em
geração.” (4)
Margarida
Azevedo
(1)
In: Revista Eletrônica.
(2)
Consultar: Mt 26: 1-8; Mc14: 3-9; Lc 7:
36-50; Jo12 1-8.
(3)
Bíblia,
Novo Testamento, Os Quatro Evangelhos,
Quetzal Editores, Lisboa, 2016, vol. I, Mt 5: 15-16, p. 74.trad.,LOURENÇO,F.
(4)
Sl 100, Bíblia, Os Quatro Evangelhos
e os Salmos, Fundação Secretariado Nacional da Educação Cristã, Lisboa,
2019, p.536.
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