domingo, junho 01, 2008

MORTE É FELICIDADE XIII


A COMEMORAÇÃO DOS MORTOS

1. Funerais: componente sociológica
Os nossos funerais, ou melhor, as nossos comportamentos fúnebres, em relação a um falecido em dia de funeral, tocam a romaria, a comédia, uma expressão teatral com paralelo no teatro vicentino.
De facto, as personagens-tipo estão perfeitamente enquadradas nas melodias discursivas dos grupos sociais a que pertencem. A simplificação do rito transfere para o grupo fúnebre o lamento agora tornado semi-privado, mas sempre com alguma expressividade desonesta. A dor é transformada em personagem de relevo e o falecido, deitado dentro do caixão, alguém que se pensa poder vir a levantar-se a qualquer momento.
Assim, para que não restem dúvidas, temos situações deste género: a esposa, de preto profundo e lenço branco na mão, que durante toda a vida de casada foi maltratada, representa o papel de quem tem muita saudade do falecido marido, exibindo ostensivamente uma expressão de pesar por estar viúva; o marido, de fato castanho e gravata preta, saturado das birras da esposa mimada e exigente, finge ter perdido a mulher dos seus sonhos; o genro, de blusão de marca e gravatinha preta fininha, diz um adeus leve e saudavelmente feliz à sogra que assim vê, com os seus próprios olhos, partir de vez para a terra de São Nunca Mais; os herdeiros de fortuna considerável, vestidos a rigor no seu traje de executivo, silenciam em sinal de respeito contabilístico, calados, submissos e de porte cheio de personalidade, fazendo contas e meditando no montante que vão receber; os credores, desencolarinhados e de cabelos ao Deus dará, em pânico, apressam-se a conferenciar com os herdeiros, coitadinhos, cheios de mágoa porque o momentos não é para contas; o velho advogado da família, conhecedor de todos os devaneios dos seus membros, no seu fato diário e sem qualquer bonomia, pensa no testamento que irá ler brevemente e no quinhão que irá caber-lhe. Os pobres gritam, falam alto, rezam e jejuam.
A sala fúnebre é uma oficina de expressões dramáticas ao mais alto nível, mistura de géneros oscilando entre o medievo, o renascentista e o moderno, numa algazarra sentimental muito complexa e totalmente estranha à realidade do morto.
Não faltam rezas, misticismos franciscanos, apelos à Virgem, à Morte e Paixão de Jesus. Há cheliques, há abraços, comprimidos para a dor de cabeça, chá, biscoitos, casacos de malha se a noite está fria, ventoinhas se está quente... Os mais fortes pernoitam, os mais fracos vão até casa descansar, quem sabe fazer amor pois o nosso psiquismo é mesmo assim, muito embora o juiz de Camus· não concorde e condene a sua personagem à morte por ter feito amor no dia do funeral da mãe, entre outras coisas, claro.
Desconhecendo o fraco domínio do certo e do errado, a barreira do dever, o campo do valorativo, o surto expontâneo de animalidade, o juiz de Camus condenou a virilidade como se o luto construísse eunucos. O desejo de amor, seja ou não acompanhado de uma situação fúnebre, a saudade e o silêncio a que o velório faz apelo, provocam estados de espírito que não se compadecem com as normas impostas pela ignorância de quem pretende impor a via do recalque ao que de mais livre o homem possui.
A virilidade não pára só porque se está num funeral. Pelo contrário. Nos funerais todos se abraçam e beijam, até mesmo aqueles que estão de candeias às avessas. Há sempre um ombro para reclinar a cabeça e chorar, alguém que ao ouvido e muito docemente diz “Se precisares de alguma coisa, estou aqui.” Nos funerais todos se oferecem a todos, todos estão disponíveis para todos, principalmente para com os que mais de perto privavam com o falecido. O amor não vacila, os sentimentos exuberam-se.
Mas há a outra face. Se dantes os funerais eram celebrados com rezas prolongadas e enfadonhas, hoje são encontros de alegria de quem há muito se não vê, e aproveita o momento para matar saudades e estar em alegre cavaqueira. Não há ninguém que não tenha alegres histórias para contar, que não encontre o salutar e bom ambiente de convivas, assim como vivas e revivas ao morto. Tem que se perceber que o “Dai-lhe, Senhor, o eterno descanso” também é uma forma simplificada de dizer que ele viva e viva bem, porque para mal já bastou o que por cá passou.
Desta forma, há quem aproveite para contar anedotas, outros para marcar encontros triviais, tomar uma boa refeição no restaurante mais próximo do local do velório, outros dá-lhes para a meditação transcendental qual bebedeira chorona em bêbedo que dormiu ao relento, de castigo, porque a mulher não está para aturar carraspanas. “Para quê tanta ambição? Para quê tantas preocupações? Para quê a vingança? A vida não vale nada. De um momento para o outro fechamos os olhos e lá se vai tudo”, dizem os calculistas a puxar para o sentimento.
E assim se fala de tudo: de doenças e da negligência médica, de crianças que cresceram enquanto o diabo esfrega um olho, as mulheres falam de homens, os homens de mulheres, de maridos, de esposas, de divórcios; de namoricos e de namoros, de tantos amores que o assunto sobra para as criancinhas que estão a quase a nascer, mas sem pai. E depois, é claro, “Tudo se cria!”, exclama uma solteirona que ninguém esperava que ainda fosse viva e que, por espanto de todos, apareceu no funeral. “Se todos morremos um dia, por que não sentir que é um privilégio ser mãe, ainda que sozinha?”, insiste alguém de voz fina e aguda e de olhar pudico e estúpido. “A criancinha é um inocente de Deus e não tem culpa dos erros dos pais!”, e desta forma soberba de tanta luz, acabou de inventar uma verdade da mais elevada transcendência.
Terminado o funeral, acabou-se a reflexão metafísica e tudo continua exactamente como antes. Ninguém voltará a ver-se tão cedo, a não ser que entretanto morra mais algum, ou encontrar-se-ão apenas no lado de lá, na Terra da Verdade.
Ora, esta morte, este estar no funeral não é cristão. Perdido nas suas origens pagãs, a morte é um adeus a este mundo, perda de uma parcela da existência, a nossa vida física. Dizer que não vale a pena tanta ambição e tantas lutas significa que a morte é perda total do território, de um domínio sobre o mesmo, deixar de ter algo de seu. A morte retira-nos o que nos pertence dizendo-nos que não é nosso, nunca o foi e será daqueles que o destino quiser, impondo-se muito para além da nossa vontade testamentária.
Depois vêm as ofertas. Coroas e palmas de flores, a derradeira expressão artística para com aquele que parte, além de velas, rezas: o rito.
“ Na tradição pagã, faziam-se oferendas aos mortos para os acalmar e impedir de voltarem para o seio dos vivos. As intervenções dos vivos não se destinavam a melhorar a sua estada no mundo atenuado dos Infernos.” (ARIÈS, P., 2000, P.174).
E de facto é isto que nos parece que continua a prevalecer, a ser um dos objectivos principais do funeral. Resta sempre um medo de que a cerimónia fúnebre não seja do agrado do falecido. As oferendas posteriores, a que alude o autor, hoje bastante simplificadas, não deixam de encerrar os mesmos objectivos, e ser um complemento do funeral: o morto não pode voltar, ele não pode perturbar a vida dos que estão em carne e osso.
Muitas pessoas, quando se vêem perturbadas e julgam que o facto se deve à presença de um ser invisível, dizem com frequência para o ar, pensando que estão a falar com a alma do outro mundo que supostamente os está a perturbar: “Diz o que queres e deixa-me em paz.” Há sempre uma identificação entre o sofrimento sem sentido ou sem razão aparente, e a presença de algo misterioso ou desconhecido, logo qualquer coisa oriunda do além.
Por outro lado, Deus também pode não estar satisfeito. Agradar às almas é garantir o agrado e as benesses de Deus. Quiçá alterar o Seu juízo a nosso respeito. Orar pelo morto, ofertar-lhe flores e acender-lhe velas por alma (hoje), é conquistar um espaço mental aproximativo de Deus, como era nos tempos medievais. É o medo de arder no fogo do inferno, das penas infinitas, de um Juízo Final intransigente e definitivo. Por isso, os mortos são seres sagrados assim como o espaço onde estão enterrados. “Um autor do século XVI reconhece que ‘os cemitérios não são simples sepulturas e reservatórios de corpos, mas antes são lugares santos ou sagrados, destinados às orações pelas almas dos falecidos que aí repousam’: lugares santos e sagrados, públicos e frequentados, e não impuros e solitários.” (ibid., p.55).
Esta concepção de morto e respectivo espaço onde jaz, o cemitério, não é partilhada pela Doutrina Espírita. Para o Espiritismo, sagrado é tudo quanto existe, vivente na vida terrena ou não, em idêntico grau de importância. E a razão é simples: o inferior caminha para o superior, expondo a perfeição de que é portador. Ele não acrescenta nada a si mesmo, apenas se despoja do que lhe causa sofrimento e dor.
Aliás, o conceito sagrado está praticamente excluído do léxico espírita, designando apenas o Universo no seu todo. O mundo é a comunidade dos filhos de Deus, e estes são tudo quanto existe.
Face ao exposto, urge reflectir mais seriamente sobre o que é um funeral?
Para o Espiritismo, é o momento da última prece ainda neste lado da vida, a primeira para a Entidade recém desencarnada. Momento de meditação, recolhimento e silêncio. A hora da grande reflexão, das lágrimas de saudade e também de esperança, palavras arrumadas nos recantos escondidos dos sentimentos mais puros. São os funerais marcos de reflexão profunda e exame interior ao que verdadeiramente nós somos nesta ilusão, apesar disso tão cheia de amor e que constitui a complexidade de toda a Criação.
Podemos dizer que o funeral, dentro dos moldes do respeito (prece e amor) é determinante para os momentos que se seguem ao desencarne. Ele vai contribuir para o alívio espiritual do desencarnado, a maior ou menor consciência da experiência que está a viver.
“ O Espírito assiste ao seu enterro?
_ Muito frequentemente o assiste. Mas algumas vezes não percebe o que se passa, se ainda estiver perturbado.
Fica lisonjeado com a concorrência ao seu enterro?
_ Mais ou menos, segundo o sentimento que provoca essa concorrência.” (KARDEC, A., o.c., p. 177, questões n.ºs 327-327-a).
Isto significa que, segundo o Espiritismo, o funeral é parte de uma despedida momentânea, nunca um adeus definitivo. Aquilo que desperta a tenção do desencarnado não é o ritual que lhe preside, mas os sentimentos que os participantes por ele manifestam.
Além disso, não se trata de uma entrega da alma ao mundo do Além, mas de uma despedida acompanhada de votos de progresso e luz. Tudo o resto está a cargo do desencarnado, o qual nunca dispensará o pensamento brando da prece.
Para ele, o número de pessoas no funeral não significa nada. Apenas o tipo de pensamento que estas nutram por ele. Não falta quem julgue que os grandes funerais são encontros mais conseguidos. Só o seriam se, na multidão, houvesse um silêncio profundo e, numa prece em uníssono, orassem com fervor pela alma do falecido. Aí, sim, quanto maior o número, maior a força.
Em suma, o funeral deve obedecer a regras espirituais muito precisas. Sintetizemo-las deste modo:
· estar em silêncio absoluto na sala mortuária;
· não falar do falecido, mesmo fora da mesma, pois isso perturba-o;
· orar pela alma do falecido bem como pelos amigos e inimigos do mesmo, principalmente no que se refere aos desencarnados;
· pedir a Deus para que os seus Guias espirituais estejam muito atentos, sempre presentes e nunca se afastem dele;
· não ter pensamentos rancorosos face a algum problema que tenha acontecido entre si e ele;
· ter um total espírito de perdão;
· torne a orar antes do corpo ser cremado, lançado à terra ou depositado no jazigo.
Embora dito de modos relativamente diferentes, é isto que o Espiritismo defende face à problemática em questão. Quanto mais simples o funeral, isto é, quanto mais desritualizado, por vezes fastidiosamente moroso, mais conseguido em seus objectivos espirituais. Tudo o que nos cansa a nós, simples encarnados, cansa igualmente, e muito mais, aos Espíritos.
Além disso, os Guias espirituais dos falecidos acompanham-nos no desencarne. Como se sabe, são Entidades muito ocupadas, que exercem um sem número de actividades, dão assistência a muita gente, quer do nosso plano terreno, quer espiritual, e, portanto, não têm o dia inteiro para estar ao nosso dispor. Por outro lado, o tempo de duração da cerimónia fúnebre não é representativo do amor que os familiares e amigos tenham por com ele. A nossa capacidade de amar não se mede à hora.

· L’ Étranger.

(Continua)

Barbara Diller

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