terça-feira, maio 06, 2008

MORTE É FELICIDADE X


A PREPARAÇÃO PARA A MORTE

Em nós, míseros e rudimentares seres, os humanos desta criação que tantas lições grandiosas recebem dos animais, tudo isto no dizer de religiosos mais ou menos fanáticos, ou de naturalistas mais naturais que a própria Natureza, a morte não é um acontecimento totalmente inesperado, como o é para todos os restantes seres vivos. Erro crasso, pois o vasto reino animal mostra-nos sem ambiguidades que a morte não é uma ocorrência inesperada, surpresa ou acaso e desprovida de sensações desagradáveis. Para qualquer animal desta fauna surpreendente que tanto nos fascina, para qualquer espécie coroando a vida de uma multiplicidade de inteligências em desenvolvimento permanente, a morte é sentida de formas que nós não sabemos explicar, porque não temos uma sensibilidade suficientemente desenvolvida para compreender o reino que se chama Vida.
Quem desconhece a magnitude dos cemitérios de elefantes, o latir triste do cão a quando do falecimento do seu dono, as aves domésticas que deixam de cantar quando há morte no lar, etc. ? Alguém sabe explicá-lo? Alguém sabe por que se suicidam as baleias, em massa? Podemos adiantar razões, umas mais razoáveis que outras, aparentemente, mas todas filhas da nossa vontade em explicar o que nos rodeia, mas insuficientes.
Todos os animais têm a sua noção de morte. Todos morrem com dignidade, porque todos matam com dignidade. Através deles recebemos magníficas lições do Grande Espírito que construiu, e continua a construir, este Universo infinito. Eles ensinam aos humanos como se dá a vida pelos que se amam, nomeadamente os filhos. Representam com fidelidade o milagre da Vida, a maternidade da Natureza, a procriação. Com os animais aprendemos como aceitar as intempéries, a suportá-las sem queixume e a viver cada dia que passa.
Somos nós, porque os herdeiros de uma animalidade ainda muito próxima, que vivenciamos a morte de forma pouco humana, desconforme com a nossa espécie. Os nossos postulados, a saga da nossa existência, as nossas crises, a nevrose da sobrevivência ainda são um meio de manifestar o animal que somos, mau grado a persistência das Forças do Alto em luta constante por nos tornarem realmente seres de razão e de fé, isto é, a fraternidade de todos os homens.
E no entanto, ou talvez por isso, para lá do animal, somos o ser que deseja a morte. Não sabemos se o mesmo se passa com os nossos irmãos “inferiores”, sabemos apenas que nós a procuramos, que levamos uma existência a prepará-la, que a reflectimos nas insónias. Porém, sabemos tão pouco dela. Perdidos em deambulações mirabolantes ou no cepticismo de filosofias quais espelhos do patético, entregamo-nos ao comezinho, perdemos tempo com o que temos de mais certo na vida.
Nos meios agrários do interior de Portugal, nomeadamente no Baixo-Alentejo, não há ninguém que não tenha a mortalha devidamente preparada, pois é vergonha deixar a morte chegar e não ter com que a vestir. A morte não pode estar nua. Como ela chega a qualquer hora, a pessoa não pode estar desprevenida, pois a nudez da morte é desrespeitante.
Desta forma, a morte é corpo, um corpo muito especial, transcendente, à procura da sua mesma incorporação. Podemos dizer que morrer é incorporar uma realidade muito forte, hiperconsciente, que tudo vê, tudo sabe, tudo conhece. A morte é uma superpessoa de personalidade marcada, vontade férrea. A morte comanda, a morte ordena, moraliza.
Mas a morte também tem o seu espaço. Não é apenas a mortalha que prepara para a morte. É fundamental saber onde quer ou onde pode ser sepultado o corpo. A sepultura é o remetente de uma carta, confere raiz, nome, estado, poder. A sepultura diz quem gerou, trouxe ao mundo aquele que ali jaz. A sepultura é princípio.
Na tradição católica, ir rezar à sepultura é encontrar-se com o corpo e alma do falecido. Quanto melhor estiver identificada, maior a certeza da sua presença aquando da evocação através da reza. Já na tradição protestante, a sepultura é visitada, não a partir da importância do corpo, mas da memória. Visitar o falecido no cemitério é falar com ele, trazê-lo ao pensamento, recordá-lo, mostrar que ele vive no coração de quem sente realmente a sua falta, e por isso sentiu necessidade de estar com ele num lugar muito especial.
Morte é também viagem. A sepultura bem cuidada dá ao falecido segurança, condu-lo para uma viagem feliz, ou visitas agradáveis a quando da ida dos familiares ao cemitério. Mas para que essa viagem o leve à pátria do Eterno Descanso ele precisa de rezas. Daí o complicado conjunto de dizeres, fórmulas e repetições hipnotizantes proferidas nos velórios.
As rezas são meios de transporte para as almas, o correio dos familiares, uma referência incondicional e determinante para o lugar que as espera. Retirar ao falecido o anel ou aliança do dedo, ou herdar as jóias (ouro) é entregá-lo definitivamente à morte, acompanhá-lo até ao começo da viagem. Está selada a perpetuação do nome, e a morte foi prevenida e preparada.
A célebre expressão “Não tem onde cair de morto” significa ser tão pobre que nem mortalha tem, nem ouro, nem sepultura, nem nome a perpetuar. Não tem sítio onde morrer porque nem tão pouco tem meio ou forma de identificação.
A mortalha e o ouro (traje) identificavam a natureza social do falecido, o seu poder económico, os seus respeitos para com os antepassados que o antecederam na viagem, e com os quais se espera que vá encontrar-se.
Mas esse traje tem história e depende do estado civil da pessoa. Assim, era comum entre as classes mais abastadas a mortalha dos homens consistir no fato de casamento. Caso este já não servisse, levariam o fato domingueiro, isto é, o fato de festa, tal como os rapazes novos solteiros. As mulheres levavam, não o vestido de noiva, pois este estava reservado às raparigas solteiras, virgens, as quais iriam celebrar núpcias no outro mundo, mas o melhor fato que tivessem em casa. Não passava pela cabeça de ninguém, nem hoje, escolher para a mortalha um fato velho e muito usado, ou o mais fraco.
As classes mais pobres seguiam o mesmo preceito, muitas vezes mandando fazer na costureira o fato-mortalha. A propósito, foi em 1998 que uma costureira de Pias nos disse que, entre as roupas que estava a fazer para a Festa Rija, tinha uma encomenda de mortalha. Tratava-se de um fato de saia e casaco em tons de azul entre o marinho e o turquesa, a pedido de uma idosa do lar da Fundação Viscondes de Messangil. O tecido, de excelente qualidade, era vistoso e alegre, talvez exageradamente festivo para uma viúva de oitenta e tais anos, no pensar da referida costureira.
Além da preparação do traje, assunto de mulheres, pois os homens preocupam-se com o nível de vida da casa ficando reservados para as mulheres os assuntos das almas, todos os lares possuíam (possuem) os utensílios fúnebres. São eles o lençol para a cama ou para a mesa da casa-de-fora, onde era colocado o caixão, dantes em linho ou meio linho, nas classes mais abastadas, hoje em algodão puro para quase toda a gente, assim como a toalha da arca onde eram colocados o candeeiro de arame, os castiçais para as velas, os solitários para as flores (mais raro). Os tecidos eram sempre brancos, debruados a rendas e/ou bordados, as velas lisas e claras como nas igrejas, o candeeiro de arame brilhante em tom de ouro.
O banho que é dado ao falecido terminava com alguns borrifos de perfume, sobretudo nas classes mais abastadas, ou nas casas onde houvesse gente solteira. Perfumar fazia parte das regras fúnebres de alguns lares, e a sua função transcendia em muito o facto de o morto expelir algum odor próprio da decomposição cadavérica.
Completados estes preceitos, o falecido estava pronto para ser velado, isto é, iniciava-se o vastíssimo quanto complexo e fastidioso conjunto de rezas a fim de o entregar nas mãos dos antepassados e, por meio destes, ser apresentado a Supremo Senhor. Aí, esperava-o o festim dos mortos arrependidos de seus pecados e misérias.
(Continua)

Barbara Diller

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