sábado, junho 14, 2008

MORTE É FELICIDADE XV


COMEMORAÇÃO DOS MORTOS (CONTINUAÇÃO)
a) matar o morto

As crenças populares deliciam-nos com suas narrativas transbordantes de episódios onde crença, imaginação e fantasia se misturam polarizando o pensamento com fim a aguçar-lhe o sentido da imortalidade.
Falar dos mortos assusta mas delicia, repele e atrai. Crer é mecanismo poderoso que afasta todas as hipóteses de explicação segundo as normas do mais comum equilíbrio, inventando fugas onde é necessário aguçar o instinto de sobrevivência. A crença é força enfeitiçante, provocadora das nossas capacidades, da nossa resistência, apelativa à nossa tranquilidade.
Assim, os mortos são os reis da fantasia, protagonistas sempre disponíveis a interferir nos nossos desejos, o alvo preferido dos longos serões na mística do lar, dormentes na sonolência do braseiro de lareiras vivas e brilhantes. Personagens do nosso inconsciente, moralistas e mestres educadores, pedagogos do insólito, do estranho ou do macabro, eles sentem os nossos desejos, de modo que se torna impossível escondermo-nos da sua presença.
Mas por mais saudade que os falecidos deixem em seus familiares, o certo é que o seu contacto nem sempre é benéfico. Seguir os desejos de alguém que se manifesta, deixando-o interferir na vontade, por e dispor nas mais comezinhas decisões é candidatar-se a ser enganado, levar uma vida de inferno.
Nas crenças populares, a comunicação dos mortos com os vivos tinha um dia específico para acontecer, ou seja, tinha encontro marcado. Ninguém esquece, certamente, o Dia de Finados ou Dia dos Fiéis Defuntos. Oriundo do paganismo, como tudo no cristianismo, era o dia em que, supostamente, os deuses se manifestavam, os heróis, os protectores espirituais, enfim, todos aqueles que se não viam desde a grande partida.
Embora pareça desfasado, o facto de ser celebrado apenas um dia específico do ano para a manifestação dos Espíritos, o certo é que, embora exagerado porque demasiado redutível, ele representa a noção de disciplina que é necessária face às comunicações com o Além.
Hoje precisamos, mercê da relativa vulgaridade que a comunicação espiritual está a sofrer, redisciplinar as comunicações. Precisamos de compreender que, se não há um dia específico para os Espíritos se manifestarem, por outro lado eles não o fazem a qualquer momento, nem em qualquer lugar. O recolhimento, a hora específica da meditação ou da prece, conferem-lhe respeito e amor.
Por isso, desde tempos perdidos no esquecimento, só os eleitos podiam comunicar com eles fora dos dias estipulados (Grécia e Egipto, por exemplo), os quais desempenhavam papel de sacerdócio. Esses eleitos consultavam os oráculos, sabiam ler o firmamento, descodificar os sinais mais ocultos. Todavia, nem sempre profetizavam ocorrências agradáveis, como era desejo do vulgo. Guerras e calamidades naturais faziam parte das suas profecias e adivinhações.
Ora, agradar aos defuntos resumia-se a afastar, por seu intermédio, todas as ocorrências desagradáveis e restabelecer a harmonia primordial. Mas não só. Agradar-lhes através dos rituais visava ainda remeter os falecidos para a sua verdadeira pátria, seleccionando-os, isto é, reservando para as comunicações apenas aqueles que se preocupassem com o bem estar dos vivos. Por isso, os ritos eram envolvidos em mistérios, uma vez que a grande sabedoria visava descobrir a origem e a ordem que preside a todas as coisas, distinguindo-a do caos. E isso só os mortos o sabiam.
Daí, por exemplo, os Mistérios de Eleusis, na Grécia, o Yoga e os Mistérios dos seguidores de Arjuna, na Índia, as aparições em Lourdes e Fátima, em França e Portugal (não está no âmbito deste trabalho fazer uma abordagem sobre se é ou não verdade que Sta. Maria apareceu realmente nesses lugares). Continua a prevalecer a ideia de que há alguém que detém a sabedoria daqueles cuja função é presidir ao equilíbrio espiritual, e sempre segundo os moldes do paganismo.
Posto isto, e retomando a linha condutora da nossa reflexão, os mortos não estão mortos, mas são seres muito vivos, mais vivos que os vivos, perigosos e demasiado envolvidos na vida alheia. Isto significa que o facto de o morto não estar morto, mas participar na viva dos vivos quando muito bem entende, acudindo aqui e ali aos problemas que vão surgindo, desde desastres naturais, a questões sentimentais, organização social, a tudo, enfim, cria problemas.
Os encarnados não querem uma participação qualquer, momentânea, inesperada, não solicitada. Ninguém quer sentir-se comandado. Interferência espiritual, sim, mas só e quando devidamente requerida. Por outro lado, os Espíritos têm demonstrado possuir razões que não são de todo claras. Comunicar com eles tem os seus perigos. Ninguém sabe o que pode acontecer, que razões os movem, que objectivos. Muitos tomam-se de identidades que não são a sua. Nos meios espíritas, não falta quem, nas Sessões, esclareça sobre os perigos da credulidade e do excesso de confiança.
Outros problemas surgem, ainda, mas mais recônditos. São eles o facto de fazer parte da natureza dos encarnados o sentirem-se, de alguma forma, comandados. O nosso apelo a Deus, em alturas críticas, é disso exemplo. Envolvidos pelo fenoménico díspare da Natureza, ou por sentirmos que nada nos acontece por mero acaso, reclamamos capacidades ao Alto, vontade própria, poder para decidir sobre os nossos desígnios. O descanso eterno que é desejado aos falecidos, no fim de contas, é também nosso.
É comum ouvir-se que as almas não devem andar por aí, errantes e perdidas. As crenças, com seus rituais e fórmulas, visam precisamente remetê-las para o seu verdadeiro lugar. O falecido deve ir viver no lugar que lhe é próprio, afastar-se do mundo terreno ao qual já não pertence.
Esta estrutura também faz parte do Espiritismo, é mesmo um dos seus pontos-chave. Os Espíritos, contrariamente ao que pensam os detractores desta doutrina, não devem manifestar-se, ou pelo menos não devem fazê-lo de um modo qualquer, em qualquer lugar, a qualquer hora, tal como defendiam os antigos. Os Espíritos devem obedecer a regras muito próprias de disciplina, tal como os encarnados, reduzindo as suas comunicações o mais possível, e tornando as suas mensagens de preferência não personalizadas mas sempre de cariz universal.
A diferença substancial entre as crenças e o Espiritismo reside no facto de este proceder a doutrinação, o que não acontece em outras formas de pensamento. Após ser doutrinada, a Entidade ingressa no seu verdadeiro mundo, o ambiente que lhe é próprio, e daí seguirá o seu aperfeiçoamento. Desta forma, o falecido deixa de manifestar-se, ou pelo menos de manifestar-se do modo abrupto em que o fazia, e, talvez um dia, reapareça mas já em moldes de paz e amor que não tinha até então.
A questão dos escolhidos, tão combatida pelo Espiritismo, não deixa de persistir. Se questionarmos quem deve doutrinar, ou quem deve fazer a prece de abertura de uma sessão constatamos que não é qualquer um. Contra isto, acrescente-se, os defensores de sistemas rotativos de preces de abertura e encerramento de trabalhos deparam-se, quer queiramos aceitar quer não, com a incongruência de semelhante metodologia uma vez que nem todos estão à altura de a fazerem. Casos há, porém, muito excepcionais, em que no grupo todos ou quase todos estão preparados para as mesmas tarefas. Quando isso acontece já aceitável o sistema rotativo.
Convenhamos que a inveja e a falta de amor de considerável número de Centros é a verdadeira responsável por métodos desfasados e incoerentes. Havendo respeito por quem ao Centro se desloca, e por quem assiste aos trabalhos do lado de lá, de certeza que esta questão não se colocará e cada um saberá quais as tarefas mais adequadas às suas capacidades.
Um fio comum trespassa todas as religiões e todos os movimentos, ou pelo menos assim parece: os mortos devem afastar-se dos vivos, isto é, do vulgo, deixando o contacto entre si para os eleitos. O Espiritismo afirma que todos podem ser bons aparelhos mediadores entre os desencarnados e a Terra, bastando para tal que lutem pelo seu melhoramento, se modifiquem interiormente e pratiquem a caridade.
Estamos certos, porém, de que com o decorrer dos tempos, mercê das alterações do nosso comportamento espiritual, a tendência das religiões será no sentido contrário. Quereremos todos que os mortos se manifestem mais e melhor, pois as capacidades mediúnicas dos encarnados estão a desenvolver-se de dia para dia, surgindo a todo o momento novas formas de manifestação e cooperação entre mortos e vivos. Os mortos estarão mortos, mas mais conscientes. Os vivos estarão certos de suas capacidades, reciprocamente mais abertos à realidade paralela que os visita.

Barbara Diller

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