sexta-feira, dezembro 31, 2010

NATAL




Neste primeiro decénio do séc. XXI, que balanço fazemos desta quadra em que festejamos a Família, a Natividade e a Paz?
De Jesus já pouco se fala, muito embora alguns insistam em representá-lo figurativamente em presépios, alguns deles bastante coloridos e autênticas obras de arte, estilizados, ricos e imponentes. Um ou outro ainda consegue fazer despertar o interesse das crianças, outros nem isso. Os presépios de hoje são mais uma forma de afirmar qualquer coisa que nada parece ter a ver com o sentido natalício. Cada vez mais têm sido o rosto da riqueza e do poder económico de quem os manda fazer, a marca de uma igreja, e não a passagem de uma mensagem universal, libertadora e prenhe de esperança.
Lembro-me como se fosse hoje de todos os presépios que fiz. Delirava com as figurinhas de barro que colocava sobre o musgo por entre pedrinhas e cactos para imitar a natureza agreste, os sulcos e os regos dos caminhos que desenhava com areia; era sempre uma dor de cabeça descobrir qual o melhor lugar para ficar o poço, a lavadeira e o riacho, o espelho redondo a fazer de lago com os pequenos cisnes; mas o mais difícil era a descoberta da melhor distância, a mais longínqua e ideal para os três reis magos que só poderiam aproximar-se da manjedoura no Dia de Reis. Era uma dor de cabeça, que suplício. Nunca estava bem.
Fácil era a colocação da manjedoura, sempre ao cimo, sobre uma pequena elevação feita com as pedras maiores, numa estrutura de pauzinhos entrelaçados, com o burro e a vaca atrás, S. José e Maria à frente, o Menino Jesus ao meio dos dois. Aqui não havia dúvidas.
Por fim, e porque o presépio era sempre colocado em canto, nas duas paredes que formavam o ângulo recto era colocado um papel muito azul, clarinho, para imitar o céu, com estrelinhas feitas com papel de rebuçados e bombons, conferindo ao conjunto um colorido de encantar. Mais tarde, com as gambiarras, as estrelinhas foram substituídas por luzinhas intermitentes que, dependendo da forma dos pequeninos abat-jours, eram cobertas com papel celofane. Era lindo.
O sapatinho ficava sempre na chaminé, bem junto ao fogão. Ninguém dormia de 24 para 25 de Dezembro. A curiosidade do que o Menino Jesus pudesse lá deixar era mais que muita. De manhã lá estavam os brinquedos. Não havia jogos, bonecas, livros de histórias mais bonitos que os do Menino Jesus. Ele tinha sempre tanto gosto. Como é que Ele sabia quais as nossas preferências? Que mistério!
No Dia de Reis desmanchava-se tudo. Que dia tão triste. Havia sempre uma lagriminha ao canto do olho, “Agora só para o fim do ano”, ouvia sem consolo. Mas até ao fim do ano era uma eternidade. E lá eram embrulhadas de novo em papel de jornal e empalhadas as figurinhas de barro, em grande tristeza. Que sádica maldade. O papel azul rasgado, as estrelinhas para o lixo juntamente com as pedrinhas, os cactos e o musgo. Era sempre assim. Que dó d´alma.
Como vão longe estes tempos, este feliz momento de tristeza. Quem me dera que voltassem aquelas lagriminhas, aquela dorzinha na alma a olhar para a caixa de cartão onde tudo o que de mais bonito ia ser guardado, o arrumar na prateleira mais alta da despensa. Já não há o síndrome do presépio. No entanto, se o que se passou naqueles tempos fosse hoje teríamos qualquer coisa como a ida ao psicólogo ou ao psiquiatra por motivo de síndrome de depressão presepial, resultado de um golpe abrupto na relação com a arte sacra, em apresentação infantil, genuína manifestação da vivência intra uterina recalcada nas instâncias do aparelho psíquico, mais propriamente no inconsciente. Para os espíritas mais radicais teríamos uma situação não muito diferente cujo discurso seria mais ou menos isto: por motivo de um grande apego às coisas materiais, facto que se verifica por ainda precisar de representar Jesus figurativamente, resquícios de vivências religiosas de vidas passadas, totalmente incompatíveis com a Doutrina, o materialista foi mediunicamente mal intuído a fazer um presépio, acção das Entidades trevosas, mostrando dessa forma que está possesso dessas forças. Há, portanto, que não acreditar nele, anular tudo o que possa dizer ou fazer no Centro, submetê-lo a passes magnéticos até tirar tal coisa da cabeça, não vá perder-se ou expandir tais intentos pelo Centro. Isso vai levar muito tempo pois que o seu karma é ainda longo e muito doloroso, mas no fim será uma alegre vitória que Jesus abençoará. Todo o seu sofrimento é uma glória, e jamais alguém afirmou que queimar karma é fácil. Ainda bem que ele sofre com o desfazer do presépio. É Deus a ajudá-lo.
Mas seguramente não é por nada disto que o presépio foi, na esmagadora maioria dos casos, substituído pela árvore de natal. É que ela transformou o Natal na necessidade de receber prendas, as quais a compõem numa decoração exuberante, trazidas, não já por Jesus, mas pelo Pai Natal. Já não é o divino quem oferece, mas um homem gordo, amigo das crianças. Dito de outra forma, são os homens que oferecem prendas uns aos outros, dispensando totalmente o papel religioso ou espiritual. É o sujeito A ou B quem oferece e não mais um ser superior que, em amor e bondade, vem trazer uma lembrança. Olhar para a prenda de natal é recordar o tio ou o primo que a deu, o avô ou a mãe; a prenda já não lembra o Menino na Manjedoura. Mais importante é o facto de a prenda não celebrar a alegria do nascimento, o gosto de oferecer a quem chegou à vida.
O papel da oferenda é fundamental na vivência espiritual dos povos que, no seu desejo de agradar aos deuses, além das fórmulas de louvor e adoração, pedido e agradecimento, ofertavam as primícias das colheitas, festejavam a Primavera como a renovação da Natureza, e, claro está, o nascimento, entre uma infinidade de outros ritos e fórmulas. Por exemplo, na Índia temos o Puja, oferenda de Energia. Trata-se de uma oferenda através do pensamento em que aquele que a recebe é mentalmente envolvido numa cor, segundo o simbolismo que lhe é atribuído (cor-de-laranja para a saúde; azul celeste para o bem-estar geral…) Os ritos hindus são amplamente marcados pela oferenda, tal como acontece nas igrejas ocidentais.
Não podemos cair no radicalismo inconsequente e ridículo de que o Natal seria melhor vivido sem a troca de presentes. Podemos, isso sim, conferir ao acto de dar e à oferta, mais concretamente, um outro estatuto. Não me refiro ao luxo ou ao exagero, porque isso depende de quem fala, do estatuto e da classe social, e não pretendo aqui moralizar ou fazer juízos de valor, sempre muito perigosos. Deixo isso aos que se interessam por classificar as aparências, o que vêem, como se os nossos sentidos fossem absolutos. Estou a levantar questões éticas relativas ao modo como vivemos o Natal com o outro, mas essencialmente connosco próprios. Por outras palavras, há muitas formas de dar e de receber, e tão luxuoso pode ser dar um boneco de plástico como uma consola para jogar no computador. Somos nós e não as coisas os portadores de luxo e de exageros.
A substituição de Jesus pelo Pai Natal vai mais longe, ainda. Com Jesus somos remetidos para a nossa condição de seres efémeros e pecadores. Ele vem directamente de Deus para nós, para remissão dos nossos pecados. Receber dele é ser merecedor, o que implica trabalho, persistência e coragem. Com o Pai Natal não. Dos céus da Lapónia, carregado de prendas, ele é também o porta-voz do desejo de férias, a tão necessária pausa no trabalho, cada vez mais desumano, mais desprovido de direitos, horário, facto que se sobrepõe à emergente necessidade de outras vivências mentais e à consequente atitude reflexiva que a época requer. E é isto que, nos tempos que correm, se pretende. Luxo é ter tempo, conferir disponibilidade para pensar, reflectir, meditar, porque isso não implica apenas uma postura espiritual ou religiosa, isso tem a ver com a vida na sua totalidade pois que o ser humano já descobriu que pensar em Deus e em si mesmo é pensar a totalidade. Em cada existência não temos duas vidas paralelas, a do espírito e a da matéria. Tudo é um só, porque tudo está em tudo, e para a nossa evolução tanto precisamos de uma quanto da outra. Se separadas impossível o progresso.
Para os senhores que comandam a vida, não há tempo a perder. Quanto menos tempo para a fé melhor. A fé está no hipermercado, resume-se a algumas prateleiras. Há que comprar, senão corre-se o risco de cair em depressão profunda. Está lá tudo, tudo o que se pode pedir ao Pai Natal. Não se pode pedir tudo, mas tudo está lá. O Pai Natal é, assim, mais generoso com uns, menos com outros. A diferença está na carteira.
Entre a caridade das organizações de solidariedade social e a proliferação das galas, que crescem nesta altura que nem cogumelos, onde um punhado faz furor com o dinheiro dos pobres que querem à viva força fugir ao suplício da fome, da miséria, da tristeza do cinzento de quem é feliz com um doce, mais doce no Natal, temos de tudo. São pobres a dar a ricos, manipulados na sua fé em nome de outros pobres que possam estar a precisar mais do que eles, ainda, são as famílias sem ter que dar aos filhos, refiro-me a comida, que recebem brinquedos e mais alguma coisinha, são os que vivem na rua, ou porque querem ou porque a isso são obrigados e que vão comer a centros de apoio, há dádivas um pouco por toda a parte para fazer crer que estão muito preocupados com a pobreza e mostrar algum trabalho já feito.
As religiões, comerciais e politizadas, alimentando-se do sofrimento das populações e pelo qual não têm qualquer respeito, caíram por terra enquanto meios de condução e apoio da fé. Sumptuosamente falam de humildade, da pobreza do Menino Jesus, da Manjedoura. Mas já não convencem. No entanto, pensam alguns/muitos, não vá Deus ficar zangado, em nome da superstição o melhor é frequentá-las.
Hoje já não interessa crer, mas em que meios a crença se movimenta, que influências tem no mundo da política, o que compra e o que vende. As religiões estão a criar a descrença, estão a conduzir ao enfraquecimento da fé. É fundamental acabar com este ritual.

Há que voltar a dar por prazer por amor por gosto
Pelo sorriso pela fé pela caridade
Dar porque se quer dar dando-se
Sem ideologia sem valor sem graça
Sem religião sem cor de todas as cores
Sem fé com todas as fés
Dar porque se é filho de Deus
Porque todos absolutamente todos somos filhos de Deus
De Deus e só de Deus

Santas Festas

Margarida Azevedo

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