domingo, abril 11, 2010

PÁSCOA (O Rescaldo)


“A Páscoa é uma festa móvel do calendário. A sua data foi fixada pelo concílio de Niceia, em 325, no primeiro domingo depois da lua cheia que se segue ao equinócio da Primavera, o que a faz celebrar num dos domingos compreendidos entre 22 de Março e 25 de Abril.”



Pensar a Páscoa é, antes de mais, reportarmo-nos à realidade histórica da libertação do povo hebraico, relatada no livro do Êxodo. No entanto, esta festa é anterior ao acontecimento do texto, isto é, não teve origem social, cultural ou religiosa nesta altura. Ela começou muitos séculos antes, numa cultura nómada, onde os rebanhos eram essenciais para a sobrevivência da tribo.
Nessa existência tribal, havia uma concepção henoteísta de Deus: o deus verdadeiro é o da tribo, no entanto há outros. O mesmo acontece no período pré-mosaico, no próximo e médio oriente: há um deus, embora seja aceite a existência de outros deuses com a sua importância relativa.
O que aprendemos com o livro do Êxodo, saída do Egipto ligada à libertação com uma conotação social, começa muito antes. A noção de liberdade associada à Primavera, momento de colheita e de reprodução, o repensar e consequente reformulação da existência num ciclo que parece repetir-se mas que é sempre novo, vem da tribo henoteísta e naturalista. O deus manifestava-se na terra, presidia ao ciclo das estações do ano, acompanhava a sementeira e as colheitas. Não há nenhuma religião que não brote da terra.
Na Páscoa judaica temos o tema da liberdade associado à libertação, mas a grande novidade insere-se no facto de a realidade social se transformar, ou impregnar-se, de conotações religiosas. Deus já não é apenas a deidade mais importante da tribo à qual se pretende agradar pelo rito de passagem do Inverno à Primavera e a quem são ofertadas as primícias da terra; Deus é agora, também, um ser que se manifesta na História, toma partido nas decisões dos homens. Este antropomorfismo, cuja apresentação é atribuída a Moisés, pelas estudiosas e estudiosos mais ortodoxos, envolve Deus num processo complexo que é o da libertação de um povo que pretende ser governado por si mesmo, ter uma terra e um rei.
Este processo de libertação, em que o povo hebraico se envolve, é também uma forma de enfrentar a discussão, que permanece em aberto, que é a da reflexão sobre o oprimido e o homem livre. O que seria de esperar é que, ao envolver Deus nesta problemática, o povo hebraico quisesse apresentá-Lo com um rosto e dirigir-se-Lhe mediante um nome, à semelhança do que faria outro povo tribal. Porém, não é isso que acontece. Este Deus não tem rosto nem nome. A sua transcendência não suporta o aprisionamento da nossa linguagem. Dizer Deus é uma necessidade para nós, não uma forma de, efectivamente, pronunciá-Lo.
Como é que surge esta forma de fé? Qual o radical último deste monoteísmo? Aqui reside o grande mistério da fé hebraica. Deus manifesta-se, não através do rosto ou pela atribuição de um nome, mas num contexto histórico que é a libertação de um povo. Isto significa que é num ambiente de escravidão que Deus se dá a conhecer. Seria mais fácil se a revelação tivesse acontecido no contexto de um imperativo moral, e construir um rol de preceitos normativos onde ficassem registados, por exemplo, os castigos a que os injustos se expõem ao desagradarem ao deus. O Deus dos Hebreus, porém, está longe desse registo. As leis só o são verdadeiramente quando produzidas em liberdade. Primeiro, há que libertar um povo, dar-lhe uma terra, dirigi-lo, garantir-lhe a sua autonomia, só depois as leis, caso contrário, legislam sobre quê?
Os alicerces da fé são, desta forma, a liberdade. De facto, podemos perguntar: a nossa fé é a mesma numa prisão e em liberdade? Para os Hebreus a resposta é fácil. Se Deus se revela dentro de um contexto de libertação, então a fé só pode ser o resultado de um processo libertador, uma graça de um Deus que se dá, não de um que se conquista e a quem pedimos a liberdade, mas ao qual a agradecemos, porque no-la deu de graça. Ter fé significa “já estou livre”.
Desta forma, a fé dos Hebreus baseia-se num Deus do princípio da vida e não do fim. Tudo é novo todos os dias. A Pesah, palavra hebraica que significa passagem e também apaziguar, celebra esta libertação das doze tribos, dirigida por Moisés, do cativeiro à vida nova, ainda que numa região inóspita, o deserto.
Hoje, perguntar-nos-emos: qual a Páscoa que celebramos?, que passagem vivenciamos, num mundo em que somos permanentemente confrontados com a impossibilidade de viver uma liberdade que nos ponha à conquista de novos parâmetros de fé; onde os que vacilam, ou os que moral e eticamente se situam noutros modos de existência, são discriminados porque não considerados passíveis de serem enquadrados nos moldes socialmente padronizados.
Qual é a nossa passagem, em cada Páscoa? Já não imolamos o cordeiro, mas continuamos nas terras do faraó. É imprescindível quanto urgente tentar outras reflexões, ainda que no deserto do novo neste mundo de tão pouca fé, tão fechado e tão intransigente.
Jesus, porque crucificado pela Páscoa, tornou-se o cordeiro de Deus/Humanidade, a “imolação” do Homem em prol de uma verdade suprema: Morte é Vida, ou seja, inaugura um novo conceito de fé.
No entanto, um aspecto há que ter em consideração, a saber, com tantos milhares que foram injustamente crucificados, antes, durante e depois de Jesus, o que teve esta crucificação de tão especial? Tantos profetas martirizados, tantos jogos de interesses, sempre os houve, pois não foi Jesus quem inaugurou tais práticas com a sua própria crucificação, porquê Jesus a marcar esta passagem de um antes e de um depois em prol de uma nova fé? Porquê Jesus ser o Cristo? Esta a grande questão, sem resposta, da História das Religiões? O que é o Cristianismo? Outra questão, afim, sem resposta.
Em suma, somos cristãos que celebram uma Páscoa, historicamente tribal, mais tarde hebraica, depois judaica; uma Páscoa de um judeu a quem foram atribuídas práticas mágicas, que fez curas que em nada abonam em favor de um alto representante de Deus na terra, que disse que nunca tinha visto em todo o Israel tanta fé como a de um centurião romano que o procurou, que foi seguido por gentios e judeus de todos os quadrantes, que jamais disse que era Deus, que curava ao sábado, que seguia os profetas do judaísmo, a sua religião, e que, por tudo isto e muito mais, representava vivências de fé em conflito.
Somos, portanto, herdeiros de uma vivência que não dominamos, de uma fé resultante de um vasto processo de libertação, cujo judaísmo interpreta de uma forma eminentemente pluralista. Se conseguirmos transpor esta vivência, e só esta vivência, para o Espiritismo, onde cada vez mais se nota a ausência de espírito crítico, da livre expressão e expansão das ideias; onde Jesus representa a força para suportar um karma que mais não é que a expressão de um Deus intransigente, que jamais perdoa, uma espécie de pena de Talião tipo “quem mas faz, paga-mas”, ou, o que é pior, “não façam caso porque o que ele/ela fez há-de-lhe cair em cima”, pronunciado com falso alcance da doutrina, tenho a dizer com grande pesar que aos espíritas a Páscoa ainda está para chegar.
Os espíritas vivem presos aos falsos conceitos de uma espiritualidade plena, ou seja, de libertação; a um Cristo que inventaram, intransigente e perigoso, perdidos em moralidades impraticáveis, ou desusadas, completamente fora do contexto sociológico em que deveriam movimentar-se, e, logicamente, excluídos da vida social. Muitos congratulam-se com os novos adeptos, vindos das teias do sofrimento e à procura de uma gota d`água, limitando isso a sua fé. Dito de outro modo, para os que assim julgam, há espíritas porque há o divino sofrimento, e não a imensa vontade em libertarem-se, em quererem aumentar a sua fé, porque livres para a escolherem. É certo que o sofrimento é escola, é certo que o sofrimento nos modifica, mas não é menos certo que, em situação de tortura, de dor lancinante, de lágrimas profundas, a fé é uma manifestação de crença dependente, infeliz. Como dizem as nossas irmãs e os nossos irmãos Judeus, a verdadeira fé só acontece no homem livre, completamente livre. O sofrimento dá uma imagem de fé, mas não é, ainda, a Fé. Por isso, Jesus, como bom judeu, não se cansou de ensinar o perdão, o arrependimento, o dar a outra face. E é a procura desse Jesus que não encontro nos meios espíritas, mas tenho esperança.
Que a sua Páscoa tenha sido o início desse vasto e complexo processo de libertação, rumo a uma vida em liberdade, onde o sofrimento vai diminuindo à medida que a sua fé aumenta.






Bibliografia

COMTE, Fernand, Dicionário Temático Larousse, Civilização Cristã, Lisboa, Círculo de Leitores, 1998, p.476.


Não citada:

MEIER, John P., Un certain juif Jésus, Les données de l´histoire, I Les sources, les origines, les dates, Paris, Cerf, 2005.
SANDERS, E.P., A Verdadeira História de Jesus, Cruz Quebrada, Editorial Notícias, 1993.

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Após largo interregno, eis-me de regresso às lides das palavras.


Um Abraço Fraterno

Margarida Azevedo




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