sábado, janeiro 22, 2011

POBREZINHOS DE ESTIMAÇÃO II


(Continuação)

Desta forma, passemos o olhar um pouco mais atentamente sobre o capítulo supra mencionado, o qual se baseia em dois evangelistas com posições muito diferentes relativamente à prática da ajuda ao próximo.
Vejamos: a perícopa de Mt 25, 31-46 começa com uma visão apocalíptica e também escatológica.
Em primeiro lugar porque mediante o cumprimento da Lei, da qual faz parte, inequivocamente, a ajuda ao próximo, haverá uma mudança radical na vida do homem. O que é que isto significa? A Lei é a universalidade de uma presença formadora e geradora de harmonia, independentemente do grupo social, nacionalidade ou cultura. Mateus conduz-nos assim a uma reflexão bastante terra-a-terra. Não é no abstracto que se faz cumprir a Lei nem é mediante grandes discussões, por vezes tão áridas quanto estéreis. A Lei pede-nos, antes de tudo o mais, que cumpramos com os deveres para com o nosso próximo e que vejamos nele um ser filho de Deus, independentemente da sua fé. Podemos dizer que o próximo é aquele que ajuda, e que ao fazê-lo transporta consigo esse Deus universal. Mais, a universalidade de Deus carece da universalidade do homem, que O transporta quando em cada um vê a Sua presença num ver que é essencialmente um sentir.
Na perícopa, é Jesus quem nos ensina essa universalidade através de uma vivência que emerge neste sentido novo, através das perguntas de espanto e perplexidade: “ Quando foi que te vimos com fome…? Quando foi que te demos de comer…? E, abrindo-lhes os olhos, surge a resposta inesperada, plena de novidade: “Em verdade vos digo, todas as vezes que o haveis feito a um destes mais pequeninos de meus irmãos, foi a mim que o haveis feito.” (KARDEC, A., L ´Evangile selon le Spiritisme, Les Editions Philman, cap. XV, pp. 237-238. trad. minha).
Esta resposta de Jesus, infinitamente distante da oferenda às viúvas e das orações a céu aberto, para que todos as vissem e assim pudessem confirmar que as práticas exigidas pela Lei/ religião estavam a ser cumpridas, confere um sentido novo de tal forma que a fé conduz à beleza do novo mundo na revelação através das palavras “…foi a mim que o fizestes.”. O futuro constrói-se a cada momento da fé, o reino de Deus começa já hoje, em cada dádiva, desinteressada, e tão mais desinteressada quanto o outro nem sequer é visto como um representante de Deus, mas como alguém que, na sua humanidade e naquele preciso momento carece de ser ajudado. Por outras palavras, é ter Deus sem pensar em Deus porque a Sua presença é simultaneamente uma vivência e porque a ajuda ao outro só é divina na medida em que nada se lhe pergunta, por exemplo, “Quem és tu? O que fazes?” O reino de Deus, em Mateus, é o terminus de uma viagem em que o outro não é caminho para mim, mas um caminho para si próprio. Só assim faz sentido afirmar “Foi a mim que o haveis feito.” Esta a mudança apocalíptica de Mateus. É que, depois de ter a certeza de que foi a Jesus que o bem, em verdade, foi feito, já não é possível voltar para traz. Quem não o fez, ficou para traz, perdeu o seu momento apocalíptico, a entrada no mundo novo.
Este pensamento, de uma cristologia da recompensa, insere-se numa outra temática, a saber, a temática da Promessa, em que o Filho do Homem virá um dia, cheio de glória, apartar os bons dos maus segundo o mérito das suas obras, tornando herdeiros de Seu Pai todos os que tiverem cumprido com as práticas de ajuda ao outro.
A mudança apocalíptica não é a anulação da consciência de si, entrada no nihilismo absoluto, mas uma oferenda indizível. É o Reino que é ofertado, o qual “está preparado desde a criação do mundo”, no cumprimento da Professa que Deus fez ao Seu povo. Aqueles que persistirem e compreenderem que a História também é manifestação divina, esses terão um lugar privilegiado. Este registo de fé é o móbil que confere a cada gesto de ajuda um sentido catartico. Ele não excluí as restantes acções da fé, a que Mateus continuava fiel, como por exemplo, dentro da tradição do judaísmo, a prática do jejum, a circuncisão (marca da Aliança), a celebração das Festas, tais como os Tabernáculos e a Páscoa (…), de que o Cristianismo é herdeiro.
Segundo uma visão escatológica, há um reino que nos espera. Um futuro que começa já hoje, conferindo a cada ser humano a capacidade de ser missionário, sem o saber. Espera-nos uma surpresa: “Como irá ser o meu fim? Como será esse reino?”
A perícopa constrói uma síntese onde são postos em relevo todos os actos cometidos para com o próximo que, a serem de total gratuitidade, são o garante da conquista do Reino. Aquele que estiver ido ao outro, está simultaneamente com Jesus e com Deus O gesto para com o outro é o mesmo que para com o Filho do Homem. porque o bem que é feito não é um “como se” o fosse ao Filho do Homem, mas que o é na realidade. Note-se que não surge a palavra Jesus nem Cristo, mas Rei e Filho do Homem, isto é, na vinda em glória concretiza-se a Promessa, o fim de quem persistiu na fé.

Margarida Azevedo
(Continua)
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Bibliografia

KARDEC, A. L´Evangile selon le Spiritisme, Les Editions Philman, Marly-le-Roi, 2001, cap. xv, pp.237-238.

VÁRIOS, Para Ler o Evangelho Segundo S. Mateus, Difusora Bíblica, Cadernos Bíblicos n.º2, Lisboa, 2004.

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