segunda-feira, janeiro 10, 2011

POBREZINHOS DE ESTIMAÇÃO I




Sempre me chocou a forma como alguns espíritas exercem a caridade. Ou porque o fazem de uma forma que eu chamaria displicente, ou porque supõem que os problemas da vida desaparecem como que por milagre, ou por tantas outras razões quase sempre relacionadas com uma amálgama de causas onde tudo se confunde, tal como noções erradas de karma, pobreza, sofrimento, etc.
Seja como for, a noção de respeito pelo próximo nem sempre está presente, é o que me parece, uma vez que o pobre é encarado mais como uma coisa do que propriamente como um ser portador de uma vivência interior, uma acção valorativa, uma forma de fé, ou ausência dela, enfim, portadores de uma vastidão de conhecimentos que nos escapam e que não raro são superiores aos nossos.
Assim, não é a dádiva que, no acto decisivo de dar, em última análise, nos interessa. Aliás a dádiva é sempre infinitamente mais incipiente do que o modo como ela é feita. E é precisamente sobre o modus operandi que vai incidir a nossa reflexão.
Na minha observação, problema surge a partir da forma como é interpretado o capítulo XV de “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, cujo título é “Fora da Caridade não há Salvação.” Talvez porque foi instalado um clima de terror quanto à vida futura, tanto na terra como nos planos que nos circundam, convencionou-se que na falta de determinadas práticas o que nos espera é um mundo de dores lacerantes, choros e ranger de dentes, dito de outra forma, aquilo a que se pode chamar o inferno mas à maneira dos espíritas.
Baseando-se nesta perspectiva, cuja legitimidade ninguém se atreve a pôr em causa, o que só por si seria considerado uma forma de negatividade superlativamente perigosa, os espíritas preferem optar por dar com o objectivo de serem pagos pelo plano espiritual, pensam, garantindo, assim, um lugar no mundo da luz. Em nada inferior ao inferno dos católicos, o do fogo eterno, aqui também estamos em presença de um castigo de tal forma acutilante que se traduz em milhões de anos em depuração espiritual, até se entrar num rumo certo.
Esse rumo certo, em tudo semelhante ao céu dos católicos, que é ganho com dádivas à Igreja ou por meio da criação de instituições à custa das quais recebem benefícios políticos, baseia-se num dar indiscriminado, alimentado pelos exageros da ignorância. Dito de outra forma, o Estado, ao fugir às suas responsabilidades, tem garantida a assistência aos mais necessitados por meio de instituições para as quais aquilo em nome de quem verdadeiramente deviam existir é mera letra morta, ao mesmo tempo que lhes paga por meio dos referidos benefícios, descurando o problema da pobreza. E se alguém pensa que parte significativa das associações espíritas, no seu silêncio sepulcral face às outras organizações de caridade, nomeadamente as católicas, nada tem a ver com benefícios, engana-se. Os espíritas de hoje estão cada vez mais preocupados em afirmarem os seus propósitos, que mais não seja dentro dos próprios Centros, onde as disputas entre e pelos grupos de caridade são um verdadeiro campo de batalha. E aí já não há medo do umbral, das más companhias espirituais nem dos milhares de anos em limpeza purificadora.
Desta forma, para alguém fazer parte de certos grupos é preciso ter paciência de santo, ser quase cego, surdo e mudo, isto é, não fazer caso dos requisitos que são exigidos, geralmente relacionados com um determinado perfil do tipo: com quem é que a pessoa se dá dentro do Centro, quais as suas opiniões, os autores que lê, as observações que faz, e, no fim de contas, se for um dos que se mantêm calados pode ter a certeza de que o lugar está garantido. Uma autêntica tristeza. Mais! E se se der o caso de não haver ninguém assim dotado, eles preferem sobrecarregar um grupo a dividir o trabalho, ou até a reduzir as dádivas sob o pretexto de a Doutrina estar a braços com falta de trabalhadores.
Pensando que o astral só conta com eles, e ansiosos por encontrar um mundo luminoso prostrado a seus pés, querem à viva força saltar uns quantos degraus na escala evolutiva, custe o que custar, dando-se ares de muito caridosos. É aqui que entra o capítulo XV, que vem mesmo a calhar: “Aqui está a fórmula por que tanto esperava. É fácil, basta-me dar umas coisinhas e já está.”
Mas este problema levanta muitos outros, como por exemplo: Em que fica a dignidade do outro? E quem é esse outro? Como afirma a Ética, cada ser humano é um fim em si mesmo. Isto significa que cada um de nós deve agir tendo consciência de que é um representante da humanidade. Carregamos o geral aos nossos ombros, como Atlas carregava o mundo. Somos responsáveis pelo que acontece e, por isso, é ao mundo (Humanidade) que devemos, antes de mais, dar contas. Só assim o geral se manifesta na grandeza do singular e é por isso que o nosso agir deve ser de forma a que a humanidade que se representa em cada um de nós saia engrandecida.
Querer evoluir é das coisas mais louváveis num ser humano, mas querer fazê-lo à custa da dignidade do outro, servindo-se dele para escalar na longa e escarpada montanha da purificação, ou seja no que for, nada tem que o dignifique, menos ainda que o legitime. Mais, no meu ponto de vista, ajudar alguém para obter benefícios, até mesmo o céu, o mundo da luz, ou o que quer que seja, é sempre uma forma de troca. Aí o acto ainda não foi interiorizado na sua maior dignidade, ainda não é um acto totalmente virtuoso, a saber, ainda não estamos perante a grandeza da liberdade da acção. Procurar uma recompensa é rebaixar, no caso da caridade, uma das mais belas acções do ser humano a um mero acto comercial. A verdadeira caridade esvai-se quando entra o Amor. Quem dá deve dar porque o acto de dar, os meios utilizados e a recompensa são tão infinitamente pequenos que deixam de fazer parte do próprio acto. Este vale por si mesmo, e aquele que dá fá-lo simplesmente em nome da humanidade que representa.
Um outro aspecto se levanta. A maioria dos espíritas desconhece que dar e caridade nada têm em comum. Dar qualquer um dá: damos presentes pelo natal, pelos aniversários, pelas mais diversas razões. A caridade, pelo contrário, implica que aquele que dá simultaneamente se dê. Só assim se explica que caridade seja amor. De qualquer forma, a riqueza do acto, seja por amor, seja um mero dar, está no prazer de ver aquele que recebe feliz, numa total ausência de benefício para si. É que essa felicidade não pertence a quem dá, mas a quem recebe. Pode-se e deve-se sentir alegria com isso, mas nunca ver na felicidade do outro um benefício para si mesmo. A felicidade do outro não é uma retribuição, mas uma partilha. É nessa partilha que o dar se anula. Quando há partilha já ninguém dá nada a ninguém. A dádiva perdeu-se, desapareceu, esgotou-se. Também já não há caridade. Anulou-se. Tudo se envolve em tudo. Resta uma felicidade inefável a que chamamos, avisadamente, Amor.
(CONTINUA)

Margarida Azevedo


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Bibliografia (indirectamente citada)

KANT, Emmanuel, Crítica da Razão Prática, Edições 70, Lisboa, 1986.
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Edições 70, Lisboa,1986.

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