terça-feira, janeiro 25, 2011

POBREZINHOS DE ESTIMAÇÃO III


(CONCLUSÃO)

Em Lucas estamos perante uma abordagem totalmente diferente. Não é a Promessa, o Reino ou a Glória que estão em causa; nem pobres, nem o comportamento para com estes. O diálogo situa-se num outro nível, a saber, entre Jesus e os doutores da Lei em torno da problemática da vida eterna, bem como da definição de quem é o próximo.
Primeiro, há que saber “O que devo fazer para possuir a vida eterna?” A resposta de Jesus remete para o cumprimento da Lei, uma lei que fala de amor. Aqui podemos nós por a questão: Mas por que é que Jesus não diz que primeiro devemos amar o próximo e depois a Deus, no fim de contas é com o outro que estamos, que temos presente, a Deus nós não vemos?
A Lei associa Deus e o próximo, isto é, não podemos amar um sem amar o outro. Como amar o próximo e desprezar a Deus, ou amar a Deus desprezando o próximo? Ao remeter para os profetas, e não apenas para a Lei, Jesus, segundo Lucas, torna-se discípulo/herdeiro de toda uma tradição à qual Ele nunca se opôs.
Assim, na clarificação do que ficou transmitido através dos séculos, Jesus, objectivo e implacável, define o próximo como aquele que se compadece do sofrimento alheio. Numa linguagem própria da nossa modernidade acrescentaríamos: aquele que tem tempo para o outro.
Quem era o sacerdote e o levita? Vamos dar a palavra a Sanders: “Os sacerdotes que serviam no Templo de Jerusalém não constituíam, em si, um partido. Eram sobretudo uma classe grande e importante. Os sacerdotes eram as únicas pessoas que podiam apresentar sacrifícios. Eram assistidos por uma camada de clero inferior, os Levitas, que serviam o Templo de várias formas: alguns cantavam os salmos durante o culto público; outros vigiavam as entradas, limpavam a área do Templo e traziam os animais e a lenha para o altar.” ( 2004, p.65).
Não eram os executores de tarefas, aqueles que reduziam a sua religiosidade ao cumprimento das práticas de manutenção do Templo, às quais Jesus não se opõe, como é lógico pois também são necessárias, que são o próximo. A perícopa ensina que há outra dimensão, muito mais importante, que é olhar para o outro não o vendo como alguém com quem acidentalmente me cruzo, mas naquilo que ele precisa.
Podemos executar com esmero todas as tarefas do nosso espaço colectivo de culto, mas não conseguirmos ser o próximo de quem de nós se aproxima. Jesus lembra que não é por trabalhar no Templo que se tem garantida a vida eterna. Esta implica outras práticas.
Estas discussões com os Farizeus, ricas de conteúdo teológico, conduzem a uma reflexão sobre o papel que cada um de nós desempenha na congregação ou igreja de que faz parte. O próximo é um desconhecido que pode não partilhar das mesmas ideias, não fazer parte do nosso grupo espiritual ou religioso. Os Samaritanos eram isso mesmo: “Habitantes da província da Samaria. O reino do Norte, ou reino de Israel, tinha a capital em Samaria. Após a queda da cidade em 721 a .C., uma parte da população foi deportada. Para os substituir, vieram assírios que se misturaram com os que ali haviam permanecido. A partir deste dia, os Samaritanos passaram a ser considerados semi-judeus por Israel e dados como interditos no Templo.” ( Dicionário Temático Larousse, 1999, p.543).
E os espíritas, como se comportam face ao outro? São samaritanos ou comportam-se como os sacerdotes e os levitas da parábola?
Daquilo que me é dado ver, os nossos Centros são parcos de verdadeira caridade, a começar pelos espíritas entre si. E o cenário é este:
- Os bons trabalhadores são expulsos. Muitos temem quem trabalha desinteressadamente pelo outro e pela Doutrina.
- Os idosos são abandonados. Gente que trabalhou arduamente nos Centros, que deu tudo de si, que contribuiu para que muitos deles se mantivessem de pé, em todos os aspectos são pura e simplesmente esquecidos. Ninguém os visita para dar uma palavrinha amiga ou fazer uma prece.
- Aos jovens é transmitida uma doutrina sem espírito crítico. Os que colocarem questões mais complexas ficam sem resposta, ou são tidos como portadores de más companhias espirituais.
- Nas sessões, quem perguntar alguma coisa que ponha em causa algo do que foi exposto, ou que peça para esclarecer uma ideia, leva a resposta a condizer – “Terminou o tempo. Lamentamos mas já não podemos responder porque temos de libertar os nossos amigos espirituais.”
Perante isto, e muito mais, como é que os espíritas se atrevem a dizer que fazem caridade? Podem fazer autênticos prodígios com os pobres, dar tudo o que têm, mas enquanto não compreenderem que o outro é todo aquele que se cruza connosco no caminho, venha de onde vier, esteja onde estiver, nada feito.
Cuidado com os prodígios, grandes feitos, grandes obras, grandes discursos, faltando o amor…
A caridade começa em casa. O verdadeiro discípulo de Jesus é aquele que muito ama.

Margarida Azevedo

Bibliografia

COMTE, F., Dicionário Temático Larousse, Civilização Cristã, Círculo de Leitores, Rio de Mouro, 2000, p. 543.

GEORGE, A., Para Ler o Evangelho Segundo S. Lucas, Difusora Bíblica, Cadernos Bíblicos n.º1, Lisboa, 1979.

KARDEC, A., L´Evangile selon le Spiritisme, Les Editions Philman, Tours, 2001, pp. 237-239.

SANDERS, E.P., A Verdadeira História de Jesus, *Editorial Notícias, Cruz Quebrada, 2004, cap.4, O Judaísmo como Religião, pp.55-74.

* Nota: Em minha opinião, o título desta obra está mal traduzido.
O título original é: The Historical Figure of Jesus.
O título dado pelo tradutor ou pela Editora leva a que o potencial leitor faça um juízo errado sobre o seu conteúdo, que é magnífico.
Trata-se de uma obra científica cuja leitura aconselho vivamente, pois é indispensável na biblioteca de quem se dedica a estas matérias.

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