RACISMO E ESPIRITISMO
Ideias
feitas são ideias assassinas.
Pr. Dimas de Almeida
De repente, o mundo parece desabar tornando periclitantes
os alicerces mais profundos. Já nada parece estável. O imediato veio para
ficar, assim parece, com a sua militância na fragilidade. Ser forte tornou-se
sinónimo de ser capaz de sobreviver todos os dias sob o véu translúcido de que
tudo pode desabar a qualquer momento.
Os
mais radicais pretendem a todo o custo passar uma borracha sobre o passado
histórico na procura ansiosa de uma espécie de pureza social, toda presente,
toda actual, num agora imaculado que aparece do nada, ou seja, por geração
espontânea. O que somos hoje nada tem a ver com progressão histórica. Isto
significa que defendem um criacionismo social em que fomos postos na existência
por mero acaso; é como se as sociedades, na sua crescente complexificação, não
tivessem passado por um percurso evolutivo, quer ao nível das mentalidades,
quer ao das relações intersubjectivas.
Em
consequência, pretende-se uma igualdade de alguma forma patológica quando,
diga-se em abono da verdade, ninguém quer ser igual a ninguém. Aliás, nem
poderia. Somos irrepetíveis num mundo que é de todos.
Efectivamente, de continente para continente,
de país para país há diferenças que os definem, uma identidade que os caracteriza.
Se assim não fosse, e numa linguagem espírita, reencarnar no ponto X ou Y seria
completamente indiferente. Ora, não é assim. A reencarnação acontece onde o
espírito reencarnante precisa, em termos do seu percurso evolutivo, quer na
terra, quer até em outros mundos. “ As
nossas diversas existências corporais acontecem todas na terra? Não, mas nos diferentes mundos. As deste
planeta não são as primeiras nem as últimas, são, no entanto, das mais densas e
das mais distantes da perfeição.”* Ir ao arrepio desta realidade, a saber,
que não é arbitrário nascer aqui ou ali, é ir contra a máxima de que nada
acontece por acaso. Tudo tem uma razão de ser face às necessidades evolutivas de
cada Espírito: nacionalidade, cultura, cor da pele, profissão, classe social… e
ainda que numa mesma vida transitemos de um país para outro, que mudemos de
profissão, que subamos ou desçamos na classe social, as características do
indivíduo estarão sempre lá. Se de pobre passou a milionário não mudou, com
isso, de grupo sanguíneo, nem de cor da pele, nem esqueceu a língua materna; o
mesmo se de analfabeto passou a doutor, se mudou para outro grupo religioso,
para outro partido político, se se divorciou e voltou a casar com outra pessoa.
Não
é porque transitamos, de reencarnação em reencarnação, de um país para outro,
de um continente para outro, de um mundo para outro que perdemos a nossa
individualidade. Nós apenas vamos burilando o nosso espírito rumo a mundos mais
elevados. Além disso, há quem se esqueça de que somos nós que, chegados a
determinado grau evolutivo, escolhemos onde queremos nascer. Diz Kardec: “ O Espírito desligado da matéria, e na
erraticidade, escolhe as futuras existências corporais segundo o grau de
perfeição que tenha atingido.”**
O grande e grave problema humano é não aceitar as
características com que nasceu, ou, pelo contrário, enaltecê-las tendo-se como
superior aos seus semelhantes. São esses complexos que vão estar na base dos
conflitos. Os desajustes interiores são de tal forma que a pessoa sente-se
perdida na diferença, diluída, ou até mesmo agredida. Se esta situação passar
para o colectivo, geram-se os problemas étnicos/raciais e sociais, e até
temporais. Hoje, o passado de há centenas de anos é o responsável pelo modo
como se está na sociedade presente. Porém, culpar o passado é, antes de mais,
culpar-se a si mesmo. Numa linguagem espírita, nós somos os nossos
antepassados, os nossos tetra avós. Quem hoje vive no sul já viveu no norte,
quem hoje fala uma língua já falou outra, quem hoje fala contra a colonização
pode ter sido colonizador. Aprende-se na Doutrina que fomos piores no passado
do que somos hoje, apesar de ninguém ser bom, bom, só o Pai…… Há que perceber
que somos todos alunos e professores uns dos outros, no aprendizado da vida, o
que só acontece com o outro. De facto, somos colonizadores e colonizados, nesta
sequencialidade em que, inevitavelmente, experienciamos a riqueza do contágio
cultural. Defender um discurso de ódio contra o passado, numa suposta limpeza
de mentalidades, usos e costumes, não acaba com a degradação humana. Pelo
contrário, demonstra que ainda se está muito longe de perceber os fundamentos
da progressão espiritual. Tudo o que se passou em tempos mais ou menos remotos
é o espelho do nosso grau evolutivo.
Não é semeando um clima de tensão em que se pretende
salvar a actualidade de uma imagem de desgraça que foi o passado que tornamos o
presente mais feliz. Aqueles que gritam bem alto a falta de valores, a
fragmentação dos laços de família, as clivagens sociais, a perda da
estabilidade política são o exemplo disso. Os que defendem uma imagem
totalmente negativa do passado têm a ilusão de que o futuro está sob controlo,
o desconhecido está tecnicamente dominado e as fobias que o acompanhavam estão
perfeitamente anuladas.
De uma rajada, ergueram-se as vozes dos que se julgam
senhores do passado, que querem matar, e do futuro, que supõem que vai acontecer
exactamente como o imaginam segundo os critérios que povoam as nossas fracas
cabeças. Implementou-se o fascínio do poder e da ilusão de que nada nos vai fazer
parar. Resultado, vamos matar os que são de outra religião e de outro partido
político, vamos esmagar o europeu colonizador, vamos acabar com a História.
Valores?! Mas que valores? Acabaram-se os homens e as mulheres, há géneros, já
não há pais nem mães, há progenitores, já não há raças, há só etnias. Vamos derrubar
o passado, reescrever os textos de outrora ou queimá-los, aniquilá-los de vez
para que ninguém caia no perigo de os ler. Vamos publicar edições adulteradas,
mas chamadas anti-racistas. Vamos reescrever segundo as nossas ideias,
mentalidades, políticas, religião, fé. “Eu
não quero estes textos assim. Quem quiser ter acesso a eles, tem que os ler
como eu quero.” Só que este eu
está a tornar-se uma entidade colectiva demasiado grande.
Inaugura-se,
assim, um novo modelo, e mais perigoso, de inquisição. É caso para perguntar:
Não serão os inquisidores da Idade Média que ainda estão a viver resquícios
dessa época? Não se estará a reviver uma realidade que ainda não se conseguiu
apagar? A colonização teve erros e qualidades. Pese-se no prato da balança uns
e outras, faça-se uma avaliação isenta e séria; deixem falar os mais idosos,
aqueles que sobreviveram a tantas convulsões, deixem-nos dar o seu testemunho.
E ainda que sejamos, possivelmente, os nossos
antepassados, se não evoluímos não é por culpa da ancestralidade riquíssima que
nos acompanha, mas pela nossa renitência, pela preguiça que nos caracteriza,
pelo egoísmo e pelo orgulho de que não fomos capazes, ainda, de nos
despojarmos. A fascinação que tão bem nos define, a manipulação mental
característica dos nossos tempos, a falta de força para implementar o bem e a
desconfiança que se instalou entre as pessoas está a levar a um desentendimento
tal que o mundo não se entende. Nada está bem.
É insuportável viver num mundo em que tudo é mau. É
insuportável viver na negação existencial, olvidando a nossa natural
vulnerabilidade. Em todas as épocas, em todos os males, em todos os erros, em todos
os defeitos há a permeabilização das grandes forças do bem. Lá diz o povo, em
sua magna sabedoria: “Há males que vêm
por bem.” Aquele problema, aquele obstáculo, aquela dor são o grande móbil
para quantos momentos de sublime elevação. Não é fazer a apolologia do
sofrimento, longe disso, mas justificar que o humano é um ser de
problematicidade.
O Espiritismo não tem uma doutrina do mal, chama-lhe
ignorância. É isso mesmo, não passamos de ridículos pseudo-sábios, fascinados
com o nosso falso saber. A ignorância é o que mais eficazmente nos caracteriza.
O ser humano tem dificuldade em perceber que é tão pequenino.
Hoje, tudo é xenofobia e racismo. Instalou-se o medo. O
que se ouve com mais frequência ultimamente é: “Agora não se pode dizer nada. Temos que ter cuidado porque podemos ser
mal interpretados. “ Pois eu digo, calem os complexos de inferioridade, que
não fazem sentido nenhum.
As
pessoas calaram-se. Ir ao arrepio desta onda de apagão está a ter o preço
demasiado alto da revolta calada. Assim se implementam os extremismos, assim se
tenta calar uma doutrina de paz e de bem-fazer. Porém, quando o sofrimento bate
à porta, quando o filho cai doente numa cama, quando a vida parece desabar, quando
falta o ordenado em casa, qual racismo qual quê. “Livrem-me disto, que eu não estou para politiquices.”
As
negatividades são subtis, astutas, sábias. Os arabescos de espiritualidade
libertadora são salpicos de justiça. É bom lembrar a máxima kardecista de que
mais vale rejeitar nove verdades do que aceitar uma mentira. Não silenciemos a
nossa luta pela paz, pela vida, pelo bem. Sintamo-nos ávidos de luz, de
palavras partilhadas. O silêncio do medo é a maior força da negatividade.
(cont.)
Margarida
Azevedo
*KARDEC, A., Le Livre des Esprits, Les Editions
Philman, Saint-Amanid-Montrond, 2002, LIVRE 2, MONDE SPIRITE OU DES ESPRITS, chap.
4, PLURALITE DES EXISTENCES, Incarnation
dans les différents mondes, 172, p.68,
trad. M. Azevedo.
**________idem, LIVRE 3,
LOIS MORALES, chap. 10, IX – LOI DE LIBERTE, Résumé théorique du
mobile des actions de l`homme, 872, p.321,
trad. M. Azevedo.
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