SEM O MEDO NÃO HÁ RELIGIÃO
O
medo tem sido o que melhor caracteriza o ser humano. Será a religião uma forma
de o combater, ou, pelo contrário, um poderoso meio de o manter?
A
Espiritualidade ensina que o medo é a coisa mais nociva, perigosa e destruidora
que há. Orar porque se ama a Deus não é o mesmo que orar porque se O teme.
Apelar à divina misericórdia de Deus, na sequência de uma falta cometida, nada
tem a ver com o pedido de perdão no sentido de não sofrer um castigo terrível.
No
nosso quotidiano, o medo trava, deixa que o incompetente se imponha pela força.
Como agora se diz, dirige aquele que tem espírito de resiliência e de ambição, aquele
que é mais combativo; manda aquele que não olha a meios para atingir os fins, que
sabe gerir e ultrapassar os conflitos de que ele próprio, quantas vezes, é o
autor. Podemos sintetizar definindo o poderoso como aquele que sabe gerar e
desenvolver o medo, segundo um discurso bem montado, aliciador, incutindo nos
ouvintes a necessidade de um protector sábio e astuto. Esses ouvintes são os
fracos, os que têm medo de pensar e agir por si mesmos, os felizes que se
renderam à evidência de que precisam, efectivamente, de um protector porque sem
ele não são nada. Foi isto que aprenderam e assimilaram até ao tutano do osso.
Os
políticos são mestres da dependência, das promessas falsas, da construção de
sentidos novos para as palavras, baseando-se em doutrinas salvadoras, quais
mestres na liderança da fraqueza alheia, que tão bem alimentam e manipulam.
Entre abutres, patos-bravos, rafeiros e papagaios de janela, temos uma panóplia
de espertos, gente de baixo nível, sem carácter, que incute no outro o medo de
pensar. Por outro lado, o político que faz da Política a arte de governar, com
o objectivo de criar e desenvolver boas condições de vida para os cidadãos,
servindo-os, está, geralmente, silenciado.
No
campo da religião a situação complica-se ainda mais. Entre os líderes dos
múltiplos grupos, há uma relativa tolerância, baseada numa espécie de política de
não agressão. Como diz o povo: “Lá em cima, dão-se todos bem”, é mais ou
menos isso. Porém, quando começamos a descer, chegando ao devoto, ao
crente comum, enfim, vive-se uma paz artificial, a desconfiança sedimenta-se, o
medo comanda, porque lhes foi transmitido que a sua é a única que representa
com rigor a vontade de Deus.
Mestras do medo, as religiões, cinicamente, apoiam-se nos
princípios, máximas e preceitos da ancestralidade, como se fossem vozes de
Deus, apresentando os seus seguidores de outras épocas como iluminados. O dito
e o praticado há milénios é, para elas, uma escritura e acção sagradas, logo
irrepreensíveis, acríticos, absolutos. Na prática, não só da ritualística em
grupo, mas também em casa, isto é, todo um conjunto de preceitos que são
exigidos, numa espécie de ritos domésticos que antecedem os cultos colectivos
nos templos, a situação é deveras alarmante.
Esta suposta identidade, que é imposta como sapiente e salvífica,
filha de um conceito de verdade cuja autenticidade é devida apenas ao factor
tempo, toma o cariz de pertença ao Ser Supremo, exclusiva e privilegiada. Assim,
não há a noção de desconformidade entre o que está escrito e o que é praticado,
tendo em conta a conjuntura social, económica e política. Levando o texto ao pé
da letra, oral ou escrito, conferindo-lhe a natural aridez mercê da ausência de
espírito crítico, estabelecem uma relação passado-presente, não numa linha de
contiguidade e crescimento da fé, bem como num trabalho de memória, mas, pelo
contrário, numa dependência tal objectivando o regresso total ao passado. Tudo
parece fazer parte de um mesmo todo, assumindo um equilíbrio tão falso quão
perigoso, donde a acção, por mais aberrante que seja, é sempre um acto virtuoso,
porque em conformidade com os parâmetros da suposta vivência ancestral. Exemplo
dessas práticas não é só a estranheza do outro, porque não faz parte do grupo,
vendo-o como um ser inferior, temos o apelo à violência, ao homicídio e à
violação, à desvaloração do papel da mulher em todos os sectores da vida. Ficamos
por aqui? Não, não é apenas isso. Temos a profanação dos cemitérios, com
práticas como: colocação de preparados, ou seja, iguarias feitas com
determinados fins, que depositam sobre as campas, com fotografias de pessoas,
outras são depositadas à porta dos cemitérios; temos, ainda nos cemitérios,
evocação dos mortos, fazendo-lhes pedidos de toda a ordem, além dos pactos de
sangue com Entidades, ficando à mercê do que as menos escrupulosas lhes
disserem para fazer. Quanto ao sangue, este vem de animais de grande porte,
mais raro, de bovinos (geralmente vitelos), mais comum, de médio porte, como bodes
e carneiros, e de aves, tais como
galináceos, que são abatidos de forma ritual, com o qual tomaram um banho em
casa, fazendo com o restante os rituais nos templos e/ou utilizam nas rezas nos
cemitérios. Tudo em nome da
ancestralidade, porque se dantes se fazia assim, porque não se há-de
fazer agora? Quem não o fizer, arrisca-se a ser perseguido pelas lideranças
e olhado de revés pela assembleia, ou até pelas forças supremas da
ancestralidade, que andam por aí à solta, abrindo a possibilidade de desencadear
uma autêntica guerra entre os próprios Espíritos, imagine-se.
Questões como progresso religioso e espiritual,
emancipação e liberdade de fé, crítica textual, enfim, não se colocam. É o
passado longínquo que fala mais alto, numa crença psicológica de que a
ancestralidade tem poderes que o presente não tem. O antigo, o imemorial
impõe-se pelo medo de perturbar a ordem pré-estabelecida, ou desencadear a ira
dos deuses, a paz dos Espíritos, ou, pior ainda, expor-se a ser excluído das
graças de Deus.
Pergunta-se: Que tipo de pessoas se dão a estas
práticas? Todas. Não só os seguidores deste tipo de religiões pagãs, mas
também das religiões do Livro, os tão pomposamente chamados monoteístas. E aqui
é bom lembrar os cristãos que, alguns, nos seus ímpetos de uma fé liberal,
vítimas da confusão entre tolerância e liberdade religiosas, laicidade e perda
de identidade, enveredam por estes caminhos sendo, e perdoem-me a expressão,
grandes clientes destas práticas. É que, para aqueles que defendem o sofrimento
como a única força salvífica e santificadora, um dos grandes erros do
Cristianismo, é bom lembrar, os dirigentes destas práticas aliciam com a
salvação, não só dos problemas que afligem no momento, como prometem a
libertação de possíveis desencontros com a ancestralidade identitária. E, é
claro, não é difícil. Quando a dor
aperta, porque a criança está cancerosa, aquele filho lindo e com uma vida pela
frente, mas a desmoronar-se, ninguém olha a meios para atingir os fins. Por
isso, nestas práticas, não temos só a populaça, a arraia miúda, os tais
ignorantes (quão bom seria que muitos dos sábios tivessem um pedacinho da fé
que têm os simples). Tirem-se as ilusões. Ele é ricos e pobres, ele é pastores
evangélicos, pregadores das diversas cores religiosas. Vão lá todos, quando a
hora é de grande dificuldade, quando a dor aperta e a esperança dá ares de
esmorecer. Todos querem reconciliar-se com o passado, os deuses, os Espíritos,
chamem-lhes lá o que quiserem. É sempre o medo que move, e o instinto de
sobrevivência numa força desmedida, porque o sofrimento fez transbordar o
cálice, a mostrar que, efectivamente, o sofrimento é o estado mais perigoso do
ser humano, pois leva-o a cometer os actos mais ignóbeis, colossais,
desastrosos, faz do desmedido lei: é a grande força do medo do desconhecido no
seu melhor, da perda de quem se ama, da miséria espreitante. Hoje, dizer que
pertence unicamente a uma religião é como defender o celibato, mas manter uma
relação amorosa na clandestinidade.
Com que objectivos é que isto acontece? Em primeiríssimo
lugar objectiva-se a saúde, principalmente problemas oncológicos, depois vem a dependência
de drogas e álcool e jogo (mais raro); seguem-se os problemas de dinheiro e os sentimentais;
temos os ímpetos de vingança de ofensas, com o objectivo de destruir o
adversário, principalmente nos meios laborais; seguem-se as questões em torno de
heranças. Enfim, a lista nunca mais acabaria, e a ordem dos elementos, a partir
da saúde, torna-se arbitrária.
Por
consequência, duplamente criadora de vítimas, quer nos que a seguem cegamente,
quer nos que são por ela atacados, geradora de iluminados, de favorecidos, de
prestadores de grandes serviços à humanidade, a religião alimenta o medo do
outro, impondo-se pela agressividade e violência numa ideologia fechada e de
fachada. Estamos no domínio dos superes: super-poder, super-identidade,
super-verdade, super-homens, super-doutrina, super-passado; é o desmedido, é o
superior, tão superior que pode destruir tudo à sua passagem, porque está a agir
em nome de Deus.
Não
fazendo a apologia da modificação interior do ser humano, porque isso
implicaria, de certa forma, uma fusão com o diferente, na medida em que não é
tão diferente assim, vão-se alimentando superstições, o conceito de que a
natureza é cheia de subterfúgios e poderes ocultos, de tal forma que só alguns
os conseguem decifrar, isto é, o mundo não está ao alcance de todos.
E
aqui, inevitavelmente, emerge uma questão desconfortável: Deus para quê?
Ou então: Porque é que crer em Deus não nos torna melhores? Em que medida a
fé em Deus não nos basta para enfrentar os problemas do dia-a-dia? Por que se
procura outras forças sabendo, à partida, que é Deus quem age, quem manda, quem
autoriza ou não? O que é que em nós limita Deus? Ou então, porque é que a fé parece
uma linha recta para a uma perigosa ilusão de superioridade?
Estes
comportamentos vão-se impondo por meio de atitudes, máximas, seja qual for a
sua cor religiosa, tendo em comum os códigos morais severos, desenvolvendo a
intransigência movida por instintos justiceiros. A História mostra-nos que os
crentes fervorosos matam sem piedade no calor impetuoso de que estão na posse
de uma transcendência. Psicologicamente, e no fundo, matam para lavar os seus
próprios pecados no medo das penas eternas, dando ao homicídio o aspecto de que
não é homicídio, mas um processo de limpeza, um favor que se faz a Deus. Exorcizando
a culpa e ficando na impunidade, a consciência não pesa, porque foi cumprido um
dever supremo. É a religião no seu lado escandaloso e absurdo, a maior tragédia
humana, na sua faceta terrível de caminho, não para Deus, mas para os infernos,
não se confundam as coisas.
Efectivamente,
a nossa humanidade não vive apenas um trágico existencial, vive a tragédia dos
supostos caminhos que traça para Deus, que não são para Deus, mas para os
fantasmas de uma fé que em tudo é esquizofrenia, na medida em que faz do Ser
Supremo um ser inferior a nós. O humano ainda não percebeu que Deus não é
representável de forma alguma, que é todo misericórdia; ainda não acredita que
está a viver uma fé não livre na medida em que, de mãos dadas com o medo,
acrescenta dor à dor que realmente existe. A maior tragédia de uma religião consiste
em valorar o trágico ao ponto de o considerar uma força salvífica, laureá-lo
com o primeiro lugar na história. O papel do religioso, na sua componente de
espaço de fé em Deus é, acima de todas as coisas, falar de Deus como Pai
amantíssimo.
Quando a religião faz o discurso de uma
presença invisível como uma sombra avassaladora, pronta para a acusação, com o
veredicto do castigo, eterno ou não, mas um castigo sempre implacável, essa
força que sopra de todos os lados com ouvidos e olhos gigantes a que ninguém
escapa, justificando assim o discurso do medo como alavanca da fé, o resultado
é a implementação de um linguajar exclusivista do qual surge a noção de escolhido
tipo: Sou um privilegiado por pertencer a esta religião.” Esta é a pior
deturpação da fé, do religioso, enquanto força libertadora que deveria ser, uma
aberração para a mediunidade; um perigo para a sociedade, a xenofobia exposta
nos altares. Nós não somos privilegiados por sermos verdes ou amarelos. Nós
somo-lo na medida em que nos esforçarmos por viver uma vida de paz, de entrega
ao próximo como um irmão em Deus, porque o caminho para Deus também está na
Terra.
(cont.)
Margarida
Azevedo
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