O EXORCISMO IV
            É
fundamental
que reflictamos sobre alguns aspectos das nossas formas de estar na fé. A base
estruturante, seminal a todos os seres humanos, apoia-se na nossa relação com a morte. Isto é, não está
na nossa natureza acreditar que a nossa vida termina a uns palmos abaixo da
terra, que as nossas lutas diárias, os nossos problemas existenciais, as nossas
vitórias e derrotas, enfim, são nada, não têm qualquer importância, nada valem,
porque tudo cairá no nada; choca-nos na directa proporção em que nos assusta.
            Acreditamos em Deus porque queremos, porque necessitamos,
porque temos medo da morte, porque somos seres infantis, crianças que vão
gatinhando e que precisam de um pai super-pressente, super-poderoso,
super-vigilante.  Porém, acreditar em
Deus porque Ele existe, e mais nada, porque só Ele é o Senhor da vida, é oura
coisa.
É
este desejo profundo de imortalidade gera uma noção de elevação suprema e
eterna, isto é, uma continuidade que se manifesta em dois vectores: o visível e
o invisível. No primeiro, levanta-se a questão de que o mundo, após o meu
desencarne, continua o mesmo como se eu nunca tivesse passado por ele; no
segundo, pretende-se responder à grande questão: O que é que vai ser de mim?
Porém,
invertamos a questão. Em que medida a minha presença no mundo o torna melhor?
Que tipo de ser humano é que eu sou de forma a ser uma referência espiritual
para a Humanidade? Que imagem de Deus é que eu dou? Que mensagem trago? De que
é que eu sou portador?
Efectivamente,
receamos a perda da memória de nós, mas, de que feitos somos capazes para
tornar essa memória imortal? Jesus adverte para a importância da simplicidade,
para nos precavermos de cair na tentação de ostentar, de dar nas vistas. Há um
oculto que temos que alimentar, cuidar e até mimar, porque há um ver e uma
memória tão infinitamente acima de nós.
Há
uma voz dentro de nós, um eu qualquer que, de tão singular, é o maior
representante do colectivo: vivemos uma obsessão generalizada de não querermos
que o outro nos esqueça. Nesse sentido, estamos profundamente errados. O nosso
complexo processo salvífico depende de uma natureza toda desprendimento, toda
liberdade, toda graça. É verdade que nos recusamos terminantemente a não termos
importância nenhuma, e que os nossos desejos não sejam devidamente levados a
sério. Todavia, temos de nos recusar a continuar a sermos como somos. É de
mudança que o mundo precisa, e o mundo é cada um de nós de per si.
            E essa mudança passa, inevitavelmente, pelo modo como se
encara a experiência da morte. É que a nossa relação com o outro não é uma
relação exclusiva de vida, mas de morte. Quando nascemos, trazemos connosco um experiencial
representativo de um lugar muito antigo, longínquo, uma casa. A nossa
identidade é uma casa que transita como um caracol. Somos um culminar de
experiências, entre elas inúmeras mortes: dos nossos entes queridos, de amigos
e inimigos, em situação de guerra e paz, e que nos deixaram no limite da dor, nos
envolveram num vazio inexplicável, num adeus que não aceitamos como definitivo.
            Quantas vezes as nossas obsessões são um chamamento a
esse adeus indesejado, que radica na não aceitação de que somos filhos do
pluriverso, criados por Deus, e que, por isso mesmo, somos todos irmãos. As
situações que aparecem nos trabalhos de desobsessão são bem representativas da
nossa relação com o Todo e que Deus, em Sua suprema bondade, nos dá o
privilégio de contribuir para a harmonia.
Não
aceitando, redundantemente, a ausência dos que já partiram, criamos todos os
mecanismos ao nosso alcance para comunicarmos com eles, com o objectivo de que
nos digam como estão, onde estão, se são felizes, e, principalmente, para lhes
pedirmos auxílio. Isto é, crê-se que os mortos são poderosos, que têm uma noção
da vida e da realidade que nós não temos, mais objectiva porque, supõe-se, a
vida no além está mais perto de Deus, ou, pelo menos, Deus manifesta-se de
outro modo, fala por meio de outra linguagem, revela coisas que os mortais não
sabem, mas às quais os seus mortos têm acesso directo e podem revelar.
            Com isso se desenvolveu um vasto aparato de metodologias
de comunicação com o além, mediatizadas por ritos, com fórmulas mais ou menos
complexas, cânticos, gritos; utilizando plantas, rochas, água, vinho, azeite,
etc., na tentativa de desvendar o oculto em que estamos submersos. Estas crenças,
que se foram sedimentando nas culturas, tornando-se identitárias das mesmas,
sacralizaram a natureza mediante a criação do simbólico. Isto é, uma figueira
não é uma figueira, como por exemplo no cristianismo o vinho é o sangue de
Cristo, o pão o Seu corpo. Dito de outro modo, vivemos num mundo onde nada é o
que parece, tudo é representativo de uma outra identidade, que se sobrepõe
àquela que vemos com os nossos deficitários olhos carnais, mas que se revela
mediante uma reza, um ser com supostos poderes, ou seja um deus, um daimon, uma
força super-poderosa. Até se inventaram lutas entre eles, por nossa causa.
            Na Antiguidade, os deuses do Império Romano e os gregos
disputavam entre si o lugar social e político dos seus crentes, bem como com o
Deus de Israel. Entre as forças da natureza e a palavra da Lei, o objectivo era
obter uma cura, riqueza, prosperidade ou uma vida estável. Os contágios
culturais, cujas origens se perdem na espiritualidade recôndita, foram sendo
partilhados ao longo dos séculos.
            As práticas de exorcismo, ou melhor, de desobsessão, são
uma delas. Porém, no século XXI, muito embora os exorcismos continuem a ser uma
prática relativamente comum de alguns grupos religiosos ou espiritualistas, é
fundamental ter em consideração que, para lá da literatura sobre esta temática,
bem como das suas práticas, é de modificação do ser humano que se trata.
            (cont.)
            Margarida Azevedo











 
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