quinta-feira, maio 01, 2025

O EXORCISMO IV

 



            É fundamental que reflictamos sobre alguns aspectos das nossas formas de estar na fé. A base estruturante, seminal a todos os seres humanos, apoia-se na nossa relação com a morte. Isto é, não está na nossa natureza acreditar que a nossa vida termina a uns palmos abaixo da terra, que as nossas lutas diárias, os nossos problemas existenciais, as nossas vitórias e derrotas, enfim, são nada, não têm qualquer importância, nada valem, porque tudo cairá no nada; choca-nos na directa proporção em que nos assusta.

            Acreditamos em Deus porque queremos, porque necessitamos, porque temos medo da morte, porque somos seres infantis, crianças que vão gatinhando e que precisam de um pai super-pressente, super-poderoso, super-vigilante.  Porém, acreditar em Deus porque Ele existe, e mais nada, porque só Ele é o Senhor da vida, é oura coisa.

É este desejo profundo de imortalidade gera uma noção de elevação suprema e eterna, isto é, uma continuidade que se manifesta em dois vectores: o visível e o invisível. No primeiro, levanta-se a questão de que o mundo, após o meu desencarne, continua o mesmo como se eu nunca tivesse passado por ele; no segundo, pretende-se responder à grande questão: O que é que vai ser de mim?

Porém, invertamos a questão. Em que medida a minha presença no mundo o torna melhor? Que tipo de ser humano é que eu sou de forma a ser uma referência espiritual para a Humanidade? Que imagem de Deus é que eu dou? Que mensagem trago? De que é que eu sou portador?

Efectivamente, receamos a perda da memória de nós, mas, de que feitos somos capazes para tornar essa memória imortal? Jesus adverte para a importância da simplicidade, para nos precavermos de cair na tentação de ostentar, de dar nas vistas. Há um oculto que temos que alimentar, cuidar e até mimar, porque há um ver e uma memória tão infinitamente acima de nós.

Há uma voz dentro de nós, um eu qualquer que, de tão singular, é o maior representante do colectivo: vivemos uma obsessão generalizada de não querermos que o outro nos esqueça. Nesse sentido, estamos profundamente errados. O nosso complexo processo salvífico depende de uma natureza toda desprendimento, toda liberdade, toda graça. É verdade que nos recusamos terminantemente a não termos importância nenhuma, e que os nossos desejos não sejam devidamente levados a sério. Todavia, temos de nos recusar a continuar a sermos como somos. É de mudança que o mundo precisa, e o mundo é cada um de nós de per si.

            E essa mudança passa, inevitavelmente, pelo modo como se encara a experiência da morte. É que a nossa relação com o outro não é uma relação exclusiva de vida, mas de morte. Quando nascemos, trazemos connosco um experiencial representativo de um lugar muito antigo, longínquo, uma casa. A nossa identidade é uma casa que transita como um caracol. Somos um culminar de experiências, entre elas inúmeras mortes: dos nossos entes queridos, de amigos e inimigos, em situação de guerra e paz, e que nos deixaram no limite da dor, nos envolveram num vazio inexplicável, num adeus que não aceitamos como definitivo.

            Quantas vezes as nossas obsessões são um chamamento a esse adeus indesejado, que radica na não aceitação de que somos filhos do pluriverso, criados por Deus, e que, por isso mesmo, somos todos irmãos. As situações que aparecem nos trabalhos de desobsessão são bem representativas da nossa relação com o Todo e que Deus, em Sua suprema bondade, nos dá o privilégio de contribuir para a harmonia.

Não aceitando, redundantemente, a ausência dos que já partiram, criamos todos os mecanismos ao nosso alcance para comunicarmos com eles, com o objectivo de que nos digam como estão, onde estão, se são felizes, e, principalmente, para lhes pedirmos auxílio. Isto é, crê-se que os mortos são poderosos, que têm uma noção da vida e da realidade que nós não temos, mais objectiva porque, supõe-se, a vida no além está mais perto de Deus, ou, pelo menos, Deus manifesta-se de outro modo, fala por meio de outra linguagem, revela coisas que os mortais não sabem, mas às quais os seus mortos têm acesso directo e podem revelar.

            Com isso se desenvolveu um vasto aparato de metodologias de comunicação com o além, mediatizadas por ritos, com fórmulas mais ou menos complexas, cânticos, gritos; utilizando plantas, rochas, água, vinho, azeite, etc., na tentativa de desvendar o oculto em que estamos submersos. Estas crenças, que se foram sedimentando nas culturas, tornando-se identitárias das mesmas, sacralizaram a natureza mediante a criação do simbólico. Isto é, uma figueira não é uma figueira, como por exemplo no cristianismo o vinho é o sangue de Cristo, o pão o Seu corpo. Dito de outro modo, vivemos num mundo onde nada é o que parece, tudo é representativo de uma outra identidade, que se sobrepõe àquela que vemos com os nossos deficitários olhos carnais, mas que se revela mediante uma reza, um ser com supostos poderes, ou seja um deus, um daimon, uma força super-poderosa. Até se inventaram lutas entre eles, por nossa causa.

            Na Antiguidade, os deuses do Império Romano e os gregos disputavam entre si o lugar social e político dos seus crentes, bem como com o Deus de Israel. Entre as forças da natureza e a palavra da Lei, o objectivo era obter uma cura, riqueza, prosperidade ou uma vida estável. Os contágios culturais, cujas origens se perdem na espiritualidade recôndita, foram sendo partilhados ao longo dos séculos.

            As práticas de exorcismo, ou melhor, de desobsessão, são uma delas. Porém, no século XXI, muito embora os exorcismos continuem a ser uma prática relativamente comum de alguns grupos religiosos ou espiritualistas, é fundamental ter em consideração que, para lá da literatura sobre esta temática, bem como das suas práticas, é de modificação do ser humano que se trata.

            (cont.)

            Margarida Azevedo

 

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