25 de ABRIL - 50 ANOS
Tinha eu 13 anos. Lembro-me como se fosse hoje, afinal
estes 50 anos passaram tão depressa. A manhã estava bonita, o sol brilhava no
céu muito azul e a temperatura do ar era suavemente fresca. Foi no
Baixo-Alentejo, vivi por lá 10 anos.
Pouco tempo depois, houve profundas convulsões sociais.
Terras e casas de grandes proprietários foram apanhadas. Instalou-se um período
de medo de falar contra essas atitudes, desconfiança e perseguição. Tudo o que
se dissesse ou fizesse tinha que ser meticulosamente pensado porque caía no
risco de ser considerado fascismo, e ninguém queria passar por fascista, ainda
apor cima sem razão. Percebi que todos estavam felizes com a Revolução, porém
segundo caminhos diferentes.
Lembro-me de no dia 25 de Abril as pessoas falarem em
cochicho. “Diz-se que lá para Lisboa há
uma revolução de sangue e mandam as pessoas estar em casa.” Isto de manhã.
Mas lá para a tarde, o pessoal veio para a rua. Os mais afoitos gritavam slogans
como “Morte à P.I.D.E.”, mas nenhum
slogan superou este “O povo unido jamais
será vencido”.
Lembro-me de a minha avó ter um AVC ligeiro que lhe
apanhou a fala, motivado pelo medo constante de que nos apanhassem a casa onde
vivíamos, ela, a minha madrinha e eu, porque era uma casa muito grande. Também
foi nesta altura que percebi porque é que a minha família materna estava quase
toda no estrangeiro: um, por motivos políticos, outros, na procura de melhores
condições de vida.
Depois vieram os retornados. Eu não sabia que na aldeia
havia tanta gente com família em África. A única coisa que eu sabia era o
sobressalto em que as famílias viviam quando se aproximava a idade de os filhos
irem à tropa. Toda a gente temia a guerra do Ultramar, principalmente a Guiné.
Dizia-se que era o pior. Lembro-me do luto carregado de famílias que perdiam os
filhos na guerra lá fora. Os gritos
naqueles funerais ainda hoje os tenho na memória; famílias destroçadas no
vazio, namoradas de coração partido e filhos que não nasceram, madrinhas de
guerra inconsoláveis. Os retornados, esses, eram mal vistos por muitos,
geralmente do Partido Comunista, porque “andaram
a explorar pretos”, era assim que diziam, muito embora eles dissessem que
não, que em África trabalhavam no comércio, na indústria, nos serviços e na
educação. Porém, havia quem não os acreditasse, chamando-lhes fascistas.
Como havia saneamentos por todo o lado, a Igreja não
escapou. A minha madrinha era presidente da legião de Maria lá da aldeia.
Quiseram saneá-la, mas como eles não percebiam nada da Legião, ela naturalmente
resistiu. As missas passaram a ser mais politizadas, e a palavra liberdade
surgia com a regularidade que o padre achava conveniente. Percebi isso mais
tarde.
Enfim, entre clivagens sociais, conflitos, discórdias e
lutas renhidas por uma vida melhor, tudo se foi equilibrando com o tempo.
Surgiram os casamentos entre ricos e pobres, sem que ninguém precisasse de
fugir pelo receio de desagradar à família, muito embora o desagrado ainda
prevalecesse em alguns casos, e começou a haver divórcios com frequência.
Em suma, o 25 de Abril é uma daquelas datas que se sobrepõem
à própria História. É um kairós que atravessa a normal e mais comum cronologia.
É um momento que só pode acontecer aqui e agora, que não se pode deixar passar,
que implica um sentido de oportunidade apuradíssimo, uma mestria. Eu diria que
é a páscoa política e social de Portugal, a grande passagem da opressão para a
democracia.
Celebrar o 25 de Abril é celebrar a sabedoria de mestres,
a coragem, a vontade férrea de vencer sem medalhas, mas com flores, uma flor,
um simples cravo vermelho. Quantas vezes neste mundo a mudança se poderia
celebrar assim?! É o mesmo que dizer: “ A
revolução começou no jardim”, que é onde as crianças brincam, os idosos
descansam e os namorados se abraçam.
Nos tempos que
correm, a democracia está cada vez mais fragilizada, o que leva a que muitos
culpabilizem, erroneamente, o 25 de Abril. A Revolução nada tem a ver com a
falta de carácter, com aqueles que vendem até a alma por qualquer preço,
fazendo perigar os ideais mais nobres da vida. A democracia não se compraz com
o politicamente correcto, uma forma de fascização como outra qualquer, um
impeditivo do progresso, uma autêntica aberração política. Não. O politicamente
correcto é o silenciar dos cidadãos, o calar perante a injustiça e o erro
crasso, a perda do direito de discordar.
A hora não é de cruzar os braços, mas de dar continuidade
aos ideais de que um simples cravo vermelho se tornou símbolo identitário, a
voz poética de um povo cuja senha revolucionária foi uma canção que o
representou num festival europeu.
25 de Abril, sempre. E… tragam os poetas.
Margarida Azevedo
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