domingo, setembro 20, 2009

MORTE É FELICIDADE XLVI


COMUNICAÇÃO ENTRE VIVOS E MORTOS

(Continuação)

5

São tantos os que não têm força para se erguer. São tantos os desprezados que sofreram a indiferença dos familiares que ficaram. E outros tantos mais, aqueles que tiveram as celebrações mais elaboradas, as flores melhor arranjadas que lhes ornaram os túmulos vazios de amor.
É tão doloroso sentir a pedra fria, o cumprimento da Natureza nas flores que murcham. Mil vezes mais dolorosas ainda são as dores do coração de quem não sente uma nesga, um fiozinho de luz que seja, por parte dos que ficaram.
Eles pensam que não sentimos o desdém, a indiferença, o alívio de nos verem partir. Quanta ignorância, Deus meu, quanta ignorância. Cá deste lado é tudo bem mais doloroso porque mais sentido. É como se a alma andasse nua. Um Espírito é um nu moral. Mas eles não o sabem. Eles nada sabem.
Votam-nos ao desprezo, não oram, não nos recordam com amor. Chegam mesmo a maldizer-nos. Por isso, alertamos: sempre e cada vez que um pensamento desses afecte o seu Espírito, desvie o seu pensamento definitivamente, sem dó nem piedade, elevando-o a Deus, que tudo pode, tudo cria, tudo vê, tudo sabe. Só Ele tem força para cuidar de todos os seus filhos, para neles colocar as malhas do perdão, sensibilizá-los às luz do seu amor. Não deixe que a negatividade do rancor se instale no seu pensamento. Não desconfie, não tema, não receie. Tudo isso é muito negativo.
Com esses trunfos nas mãos, terá, finalmente, toda a capacidade para se erguer ao alto e perdoar aos irmãos que já partiram. Perdoe-nos, perdoe-nos com todo o seu amor.


6

O meu funeral teve o mais belo discurso que eu alguma vez ouvi. Teve a urna mais rica, o jazigo mais bonito de todo o cemitério. Até o preto não parecia preto, mas um fato domingueiro, ou acessório condizente com uma toilette a rigor. Os arranjos florais, caríssimos e rigorosamente dispostos, davam para decorar uma catedral em dia de celebração nupcial de um qualquer monarca europeu.
Até houve lágrimas, e perdoem-me o espanto, pois choraram por mim os que eu menos esperava. Mas choraram mesmo, muito embora, na altura, eu nem percebesse porquê. Eu estava mais vivo e mais lúcido do que eles, por espanto meu, por ignorância minha.
Depois foram para a minha casa. Leram o meu testamento no meu escritório. Usaram a minha cadeira, a minha caneta. Abriram as minhas gavetas sem cuidado, apoderaram-se dos meus arquivos, revolveram os meus documentos. Fizeram tudo como se eu ali não estivesse, sem me pedirem ordem. Tudo isto me enervou. De repente, tudo aquilo a que tinha chamado meu, escondido dos olhares mais atrevidos, estava, sem respeito algum, a ser violado.
Foi aí que começou a minha revolta. Eu não queria nada disso. Eu queria que esperassem. Mas não. Mal saíram do cemitério dirigiram-se à minha casa e, quais assaltantes sem escrúpulos, puseram-se a ler o testamento sem mais nem menos. Fizeram-no com tal sofreguidão que eu não pude deixar de lamentar aquela frieza, aquele bem estar de quem sabe que vai herdar uma fortuna. Eu tornara-me o alívio dos sôfregos. Ninguém imagina como eu senti isso
No testamento eu dizia que a minha filha mais velha ficava a dirigir a maior parte da empresa, pois tinha mostrado possuir especial propensão para chefia, e aos meus restantes dois filhos entreguei o Departamento de Pessoal, com capacidade, entre outras, de supervisão dos níveis de produção, e o Departamento de Vendas, que englobava os contactos com o estrangeiro. Ao fim de cada ano, porém, dividiam entre os três os lucros da empresa.
Qual não foi o meu erro. Pensando que conhecia os meus filhos, entreguei-lhes o meu património esperando que o perpetuassem com seriedade e justiça, como eu o havia feito. Mas não. Pensando que eu não os observava de quando em vez, a mais velha começou a gastar o dinheiro da própria empresa em viagens e mais viagens; o do meio foi um autêntico fracasso no Departamento de Pessoal, pois despedia bons funcionários que, além de serem o único sustento do lar, já não tinham idade, ou dificilmente conseguiriam encontrar colocação em outra empresa, desfalcando, desta forma, a minha por falta de pessoal especializado. Assim, esse meu filho votou famílias à miséria, sendo completamente insensível aos pedidos de reingresso ao serviço, muitas vezes feitos por parte dos próprios familiares. O mais novo, muito embora fosse guarda-livros, não mostrou qualquer vocação para o cargo, pois não tinha o sentido da responsabilidade.
A mãe, a quem eu os tinha incumbido de dar uma mensalidade que lhe permitia viver desafogadamente, ao ver tudo isto começou a definhar a olhos vistos, vindo a agudizar os problemas de saúde de que já vinha a sofrer ainda eu vivia na Terra.
Ela, que havia sido o meu braço direito, acompanhando-me sempre nos meus contactos, quer fora, quer dentro do país, nunca esteve de acordo com tal testamento. Mas eu dizia-lhe que não tinha razão. Amava-a demais para lhe deixar tão grande responsabilidade. Eu não queria que ela tomasse conta dos negócios sozinha. Eu pensava que os filhos, o sangue novo, deviam tomar as rédeas da empresa e que ela devia descansar. Mas não. Nem eles tomaram conta da empresa, nem ela descansou. Felizes com a minha morte, ficaram eufóricos. A dor que isso me provocou, como pai que muito os amava, e vendo a minha mulher naquele estado, foi de endoidecer.
Ainda tentei fazer com que alguns empregados tomassem a empresa, mas não foi possível. Há momentos em que desígnios mais fortes que a nossa vontade se levantam, e nós nada podemos fazer.
Mas depois perguntei-me: Por que estou eu a assistir a tudo isto? Foi quando compreendi, (o que nós temos que aprender quando cá deste lado!), que tudo o que eu havia observado era nada. Vi que os meus filhos haviam sido educados na concupiscência, na perfídia. Eu não os houvera habituado a conviver e a perceber o esforço que é preciso para sobreviver. Eles não sabiam do sofrimento que ia à sua volta. Tudo lhes tinha sido muito facilitado. Eu havia criado pequenos monstros insensíveis, até ao próprio sofrimento da mãe.
Assistir a tudo isto, para quem está no lado espiritual, é árduo sofrimento. O meu materialismo e a minha falta de fé condenaram-me a lágrimas de sangue...
Mas Deus é sublimidade pois, nas minhas súplicas incessantes de querer voltar atrás, eu sei que vou poder reparar o mal que cometi. Todos os homens têm as suas oportunidades. É fantástico como todos repomos a ordem na desconexão, no desfazer que, por uns breves momentos da nossa vida, momentos tão pequenos, causamos tanta luta e tão complexa, tão difícil. Esses breves momentos são responsáveis por milénios de trabalho de correcção, com fim a corrigir os erros que cometemos.
Sei que os meus filhos, entretanto, tornaram-se operários, os casamentos fracassaram, a mãe é dama de companhia de uma amiga, mas por especial favor, e também já compreendi que não foi a riqueza que os condenou, mas a fraca educação que lhes dei. E é isto tudo que eu vou corrigir.
Não vai ser nada fácil. Mas sei que a mãe é uma alma leve e disposta a ajudar-me. Quando ela regressar a este lado irá compreender.
(Continua)

Margarida Azevedo

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