terça-feira, outubro 20, 2009

MORTE É FELICIDADE XLVIII


COMUNICAÇÃO ENTRE VIVOS E MORTOS

(Continuação)

9

Deixa-me. Desamarra-me. Tu não vês que eu tenho um voo. O avião está ali à minha espera. Mas porque é que tu me prendes? Eu não te fiz mal nenhum. Eu tenho que ir voar... Os passageiros estão à minha espera... Não posso chegar atrasado.
Porque é que tu não páras de dizer que morri? Tu não vês que estou a falar contigo? Olha o meu avião ali na pista. Tu não vês?
Não insistas em dizer que morri ou ainda te dou um murro. Estás a irritar-me. Até já estou com falta de ar, sinto que vou desmaiar. Segura-me, segura-me. Sinto-me fraco, estou zonzo. O que é isto? O que é que tu me fizeste? Estou cheio de sangue... Há sangue por todo o lado...
Mas, estou a ver tudo ao contrário. Não, não. Estou a ver outras coisas. Deixei de ver a pista e o avião desapareceu. Já nem sequer vejo os passageiros. O que é que tu me estás a fazer? Explica-me ou dou em doido.
(Depois da doutrinação)
Como a vida é surpreendente. Está uma pessoa muito bem no seu local de trabalho e, sem ter tempo para dizer “Ai!” tudo se desmorona.
Quem havia de dizer que eu tinha morrido naquele desastre de avião! Por isso eu estranhava estar sempre a olhar para a pista e para o aparelho, e não conseguir dirigir-me para ele, pilotá-lo... fazer o meu trabalho. Além disso, eu não conseguia compreender porque é que eu não tinha notícias da minha mulher e da minha filha, havia já tanto tempo.
Sei que vi uns escombros, alguma coisa a arder, mas não me lembro de mais nada. A imagem que me ficou foi anterior ao acidente, ainda eu estava no aeroporto. Apenas sei que tentava a todo o custo dirigir-me para o avião, mas que uns vultos que eu não sei descrever impediam-me de o fazer, e isso irritava-me.
Agora sinto-me bem, leve, e sobretudo sinto paz, uma agradável sensação de paz. Só gostava de saber alguma coisa da minha mulher e da minha filha. Elas eram tudo para mim. Como eu as amava. Talvez um dia... Não, não vou ter dúvidas. De certeza que um dia as verei, e talvez mais depressa do que penso.
Para já, a minha viagem é outra, os meus voos são outros. Tudo vai ser diferente. Antes de tudo sinto que preciso de descansar.
Adeus e muito obrigado!



10·
Decorria a Segunda Grande Guerra. Os Judeus eram perseguidos em todas as frentes. As fronteiras estavam tomadas e não havia escapatória possível. Os poucos que se atreviam a ajudar-nos eram fuzilados. Vivíamos todos cheios de medo.
Éramos bonitas e jovens e tínhamos a vida à nossa frente. Era uma pena sermos condenadas a trabalhos forçados, ou mesmo à câmara de gás. Tínhamos que encontrar uma solução para escaparmos com vida e, quem sabe, a guerra acabaria um dia e nós retomaríamos a nossa vida como qualquer rapariga. A guerra poderia trazer-nos riqueza, jóias, roupas caras, ambiente de luxo e protecção se soubéssemos usar o corpo que Deus nos dera.
Os soldados alemães, longe das famílias e das noivas, olhavam-nos com falsa admiração. Desconhecíamos que eles estavam proibidos de se apaixonar por raparigas judias. Nós também não pensávamos amá-los, apenas viver o que a ingenuidade supõe que é viver.
Uma noite, eu e a minha amiga aceitámos o convite de dois soldados. Fomos a um baile numa casa apalaçada, mas mal frequentada, onde parecia que estava o batalhão inteiro de soldados alemães. Eram muitos, muitos... Ao princípio sentimo-nos pouco à vontade. Todos nos olhavam, não pela nossa beleza, mas por sermos judias. Há muito que aquele baile estava planeado pelas forças alemãs. Nós não o sabíamos.
Como a hora ia adiantada e há muito que tinha ultrapassado o recolher obrigatório, muitos retiraram-se com o respectivo par para os inúmeros quartos da casa, outros para a cave, outros ainda para o sótão. Apesar de insistentemente solicitarmos que nos levassem a casa, fomos obrigadas a permanecer no edifício também. Os dois soldados levaram-nos para a cave. E foi aí que tudo começou.
À medida que descíamos a escadaria de pedra que nos conduziria ao calabouço, ia-se percebendo cada vez com mais pormenor os gritos de raparigas a serem espancadas por meio de bofetadas, pontapés por onde quer que as apanhavam, e com correntes grossas apertavam-lhes o pescoço, largando-as depois violentamente contra o chão. Foram violadas, algumas à nossa frente.
Os soldados que nos acompanhavam acenaram com a cabeça para que começassem o mesmo connosco, só que não sabiam que nós não éramos como as demais. Usámos a nossa beleza e o nosso poder de atracção. Antes que nos dissessem alguma coisa começámo-nos a despir, oferecendo-nos.
A partir de então, eles tinham-nos nas mãos. Sabiam que nós os temíamos, que nos deixámos intimidar com as atrocidades a que assistimos e, dessa forma, tornámo-nos espias contra os nossos.
Entregámos à morte um número sem fim de Judeus para salvarmos a nossa pele. O nosso nível de linguagem era baixo como o chão, tal como a vida de prostitutas que levávamos. Perdemos a fé, a dignidade e o amor próprio para no fim virmos a morrer num bombardeamento.
Mas, meu Deus, ao chegarmos a este lado entrámos no inferno. Se conseguissem ver os rostos daqueles que traímos, acusadores e impiedosos, chamando-nos “Traidoras, traidoras!” Eram crianças a chamar pelas mães que não vinham, mães que gritavam pelos seus filhos, famílias separadas, perdidas, desnorteadas.
Por todo o lado estava uma escuridão e um frio intensos, como se fosse um nevoeiro de nuvens pretas e densas. E gritos, muitos gritos que nos ensurdeciam. Sobre o chão havia picos, o cheiro era nauseabundo a sangue, pus e a carne queimada.
Fomos obrigadas a ver tudo o que causámos. Os que mandámos torturar, mutilar. Os que por nossa culpa foram queimados vivos, as violações, os espancamentos e os furtos de jóias com que alimentámos a nossa vaidade. O que sentimos no nosso ser é absolutamente indescritível. Tudo o que causámos caiu-nos em cima, até sermos tocadas no arrependimento e no total desapego de tudo quanto significasse vaidade.
Um dia, uma doce voz se aproxima chamando-nos pelo nome. Tirou-nos dali e levou-nos para um sítio completamente diferente, onde recebemos o tratamento de que necessitávamos. Trataram-nos das feridas, reconfortaram-nos e receberam-nos numa casa onde estavam muitos como nós. Foi aí que nos prepararam para virmos assistir aos vossos trabalhos.
Esses benfeitores têm sido até hoje os nossos protectores queridos e muito amados.

Que dizer de tudo isto? Que sendo a espionagem uma teia perigosíssima, quando ela é contra o país que nos viu nascer, o nosso povo, então é duplamente condenável.

· Esta mensagem aconteceu há muitos anos, com dois médiuns de incorporação incorporados em simultâneo.

(Continua)

Margarida Azevedo

1 Comments:

At 12:43 da manhã, Blogger Unknown said...

Cara Margarida,
Usando uma analogia com o post anterior, não lhe tenho passado cartão aqui já há algum tempo.
A verdade é que os temas são, normalmente, mais sentidos do que transformados em palavras por cada um e é-me difícil comentar cada passagem lida neste espaço.
Mas queria recordar que continuo a encontrar nos seus textos algumas das melhores descrições acerca de momentos difíceis de compreender pela maioria das pessoas, como a verdadeira iluminação ou a percepção da miséria espiritual a que muitos são sujeitos ou onde chafurdam, ainda que usem roupa de marca e disfarcem o cheiro da lama e do pântano com perfumes caríssimos.
Parabéns pela sua energia e determinação!

 

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