domingo, fevereiro 06, 2011

HERDÁMOS OS CONFLITOS!




Somos herdeiros de um cristianismo resultante de uma multiplicidade de interesses políticos, sociais e teológicos. Esses interesses criaram conflitos, fricções entre os vários grupos que se formaram, alguns no tempo de Jesus, tais como grupos judeo-cristãos e cristãos gentios, outros após a crucificação, não mais que a continuação dos anteriores como também das novas igrejas formadas a partir do trabalho de expansão levado a efeito pelos Apóstolos e seus discípulos.
Estes conflitos têm em Pedro, habitante de Cafarnaum, e Paulo, cidadão romano, os seus principais protagonistas, sobretudo no que se refere à problemática do cumprimento da Lei e da Circuncisão, temas seminais na formação do Cristianismo. Porque de culturas e tradições diferentes, o seu trabalho de evangelização complementava-se. Paulo, cidadão romano, de origem grega, judaica e frigia, possuía uma cultura grega de cariz platónico, pregou em meios de altos saberes da sociedade helenista; Pedro, ao contrário, fazia parte de meios não intelectuais, tendo apenas contacto com comerciantes e administradores gentios. Era, no entanto, um homem profundamente conhecedor da sua religião, o judaísmo, na sua vertente mais tradicional, facto ao qual podemos acrescentar a experiência que o convívio com Jesus lhe conferiu Assim, Pedro continuava judeu entre os pagãos, enquanto Paulo fazia-se pagão entre os pagãos (ver SCHMIDT, J. São Pedro, pp. 251-264). Isto é, se para o primeiro a salvação vem pelo cumprimento da Lei, para o segundo ela é produto da Fé; o primeiro evangelizava os circuncisos, o segundo os incircuncisos.
Mas estes conflitos não ficavam por aí. Eles tinham origem no seio do próprio judaísmo. Os judeus da diáspora, profundamente helenizados, manifestavam nuanças culturais mercê da influência do pensamento filosófico grego. Estas disparidades culturais passaram para os primeiros cristãos, que podemos dividir do seguinte modo:
Apóstolos;
Discípulos;
Simpatizantes.
Se os apóstolos eram judeus, os restantes eram:
Baptistas, gnósticos, gentios, gentios da diáspora…
Entre os grupos cristãos judeus temos:
Ebionitas
Elkesaítas
Nazoreanos
Ceríntios
Simaquianos
” (KLIJN, A. F. e REININK, G. J., Provas Patrísticas sobre as Seitas Cristãs Judias, citado por BÜTZ, p.151)
Embora haja alguma diversidade entre as crenças destes grupos, James Dunn identificou três características comuns que garantem a possibilidade de colocar cada comunidade sob a categoria de ” judaico –cristã”:
1. Fiel obediência à lei de Moisés;
2. Exaltação de Tiago e menosprezo de Paulo;
3. Uma cristologia de “adopção” – acreditavam todos que Jesus era o filho natural de José e Maria e fora adoptado por Deus como seu Filho depois do baptismo por João.”
(ibidem).
A maioria dos investigadores está de acordo de que estes grupos tinham profundas influências do Gnosticismo, o qual estava solidamente enraizado por todo o império romano (BÜTZ,ibidem)

Alguns, os da diáspora, não falavam hebraico nem aramaico, mas grego. Eram os judeus helenizados dos quais fizeram parte os primeiros cristãos, os chamados cristãos judeus helenistas para os quais Jesus era uma encarnação. Esta doutrina de que Jesus era a encarnação de Deus irá tornar-se o pólo mais importante do cristianismo de raiz gentia. Sobre esta problemática podemos questionarmo-nos, e porque se trata de um pensamento gentio e não judaico, se Jesus era de facto tido como a encarnação de Deus ou se de um deus? Tudo vai depender da cultura do tradutor, da maior ou menor importância que der aos aspectos linguísticos ou teológicos. Para o Espiritismo é mais do que isso. A questão reveste-se de elementos doutrinários sendo que, para a Doutrina, Deus não é redutível a um espaço, seja ele pequeno ou infinitamente grande.
Há que saber, o que significava para o Gnosticismo helénico Deus e deus. No entanto, repetimo-lo, é desta tese, a da encarnação, que o Cristianismo é herdeiro, mas que as Judeus mais radicais não podiam/podem aceitar. Só por curiosidade, este é também o ponto de maior discórdia entre Cristãos e Islâmicos. Tanto para estes como para os Judeus, Deus não é representável figurativamente, não cabe na dimensão humana, deixando para Jesus o papel de profeta. O Espiritismo tem uma posição semelhante, como facilmente se depreende do que dissemos acima.
Assim sendo, a nossa herança cristã primitiva é cheia de conflitos, discórdias e discussões, não só em torno da pessoa Jesus, qual a sua verdadeira natureza, se carnal, se só espiritual, que tipo de reinado era o seu, chegando-se mesmo a questionar se de facto sofreu, fisicamente, ou não na cruz, mas também, dentro de um ambiente judaico e não judaico, a de saber quem seria mais cristão.
Como é de esperar, surgiram várias cristologias, das quais as mais conhecidas serão as que chegaram até nós, escritas por grandes teólogos cujos nomes são bem nossos conhecidos: Mateus, Marcos, Lucas (também autor, ao que parece, de Actos dos Apóstolos), João e Paulo, o grande pensador e divulgador junto dos gentios.
As discussões, por vezes bastante acesas, são representativas de culturas, sensibilidades e fé, vivências e influências diferentes. Por outras palavras, aprendemos com estes conflitos antigos que a presença física de Jesus, o contacto directo com a pregação, curas, prece. etc., não confere melhor entendimento sobre ele do que não o tendo conhecido. A questão situa-se essencialmente na capacidade de pensar sobre Jesus, compreendê-lo, do que propriamente conhecê-lo fisicamente.
Em suma, o Espiritismo precisa urgentemente de se debruçar sobre a História do Cristianismo, a fim de quebrar o isolamento em que se encontra face aos outros grupos cristãos, sob pena de perder o comboio logo à partida, ou seja, na estação sociológica da cidade em que vivemos. É de todo o interesse que faça seminários sobre estas matérias e outras afins, perdido que anda em falsos cursos e falsos saberes, falsos conceitos e conteúdos, a fim de melhor se preparar para os desafios que a espiritualidade deste mundo nos exige, porque a do outro depende em tudo do modo como vivemos cá deste lado.
Mais ainda que em nome da Doutrina, eu diria por respeito ao ser humano.

Margarida Azevedo
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Bibliografia
BÜTZ, Jeffrey J., Tiago irmão de Jesus e os Ensinamentos Perdidos do Cristianismo, Lisboa, Editorial Presença, 2006, cap.7.
SCMIDT, Joël, São Pedro, Mem Martins, Publicações Europa-América, 2007, cap. 17 e 19.
TROCMÉ, Étienne, São Paulo, Mem Martins, Publicações Europa-América, 2004, cap. III, V e VIII.

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