RACISMO E ESPIRITISMO III
“Todos
os homens são iguais perante Deus?
-
Sim, todos tendem para o mesmo fim e Deus fez as suas leis para todos.”
“A
desigualdade das condições sociais é uma lei natural?
-
Não; é obra do homem e não de Deus.” *
O nosso planeta é composto por cinco
continentes, o que corresponde a cinco grandes espiritualidades, que, por sua
vez, se subdividem numa infinidade de apresentações de que fazem parte as
diferentes mundivivências culturais, a que não são alheias as raças e as
etnias.
Se é certo que a mediunidade é igual em
todo o lado, isto é, vidência, capacidade de cura, de efeitos físicos,
intuitiva, etc., (1) o modo como é
exercida varia segundo essas mesmas culturas. Assim, nas religiões da natureza,
cada qual usa os seus produtos, da época e da região. Se no Brasil usam
cachaça, na Alemanha será schnaps, em Portugal aguardente. Até num mesmo país,
face à diversidade dos produtos da natureza, assim os materiais do rito. Por
exemplo, se no norte de Portugal abunda o milho e no sul o trigo, é natural que
esses produtos marquem a tradição identitária da relação com o mundo espiritual,
tanto colectiva quanto relativamente a cultos domésticos. E isto é assim em
toda a parte.
Na China há, na tradição ancestral, uma
grande diferença entre as práticas de cura feitas na zona banhada pelo rio
Yangtzé, (“importante para origens culturais do sul da China”) (2), e as do rio
Amarelo, a norte, de terras férteis e alto teor de sedimentos amarelados. (3) Quando falamos de
digitopunctura, acupunctura, do-in, tão divulgados no mundo ocidental, nem nos
apercebemos de que estão aí as suas verdadeiras raízes.
As diferentes raças acompanham e
representam essas espiritualidades, que não têm só que ver com o mundo
invisível mas, e principalmente, com a nossa vida social, fazendo deste planeta
um mosaico onde a diversidade não falta. Temos o privilégio da pluralidade de
apresentações, com os seus rituais, os seus mitos, as suas explicações para os
mistérios de que somos acometidos, como a origem da vida, do Homem, do Bem e do
Mal, do sofrimento, a morte, a imortalidade, a relação do mundo material com o
mundo espiritual, etc. Neste aspecto, a hierarquização racial que é feita não
mais é do que o resultado da confusão entre progresso tecnológico-científico
com as espiritualidades.
Não se sabe como nem porquê, mas há uma natural
tendência para sobrevalorar o científico em detrimento do etnográfico. Ora, nem
a Ciência tem resposta para tudo, tendo em conta os limites da razão e a sua
falibilidade, nem o etnográfico é totalmente falho de verdade. As almas que
habitam este mundo, todos nós, têm missões específicas. Assim, “Os espíritos de ciência não são
necessariamente superiores aos outros (…). Portanto, um espírito pode
ser muito avançado em ciência, mas ainda precisar desenvolver outras qualidades
para alcançar um grau mais elevado de perfeição.”**
O que verdadeiramente difere em cada ser
humano reside no modo como aplica os seus conhecimentos, sejam eles de que
âmbito forem. Um cérebro que se dedique a criar armas cada vez mais
sofisticadas não é da mesma linha de outro que se dedique ao progresso da
Medicina; tal como um médium que se dedique à adivinhação não está ao mesmo
nível de outro que recebe mensagens a convidar à oração. Seja na Ciência, na
Tecnologia ou na Fé, é de espiritualidades que falamos. Cada um de nós é representante
de uma casa muito antiga, uma vontade própria, uma natureza singular.
O meu marido veio de Angola. Não se cansa
de dizer que África tem uma espiritualidade que não se encontra por cá. Há uma
química, uma fé, uma fundura espiritual que vem do interior da própria terra.
Ora, se o mundo tribal característico de algumas zonas do planeta está muito
distante, civilizacionalmente, do mundo científico e tecnológico, por outro
lado está em estreita intimidade com uma vivência espiritual que esse mesmo mundo
científico e tecnológico foi, gradualmente, perdendo. Há quem não saiba, mas a
chefia numa tribo é uma coisa muito complexa. Tudo está perfeitamente definido.
Em África, o Curandeiro ou Xamã “cura
doenças, realiza rituais espirituais”; o Sacerdote/Sacerdotisa é o “intermediário entre os deuses e a
comunidade” (3); o Adivinho faz
previsões e “interpreta a vontade dos
espíritos” (3); o Rei Sagrado,
nalgumas tribos, acumula a função de líder político com funções espirituais. (3) Cada um transporta consigo o peso de uma
ancestralidade, bem como a consciência objectiva das forças espirituais que
governam a Natureza, o que o investe de autoridade. O mesmo nas tribos índias.
Um cacique é um líder político-administrativo, organiza a tribo e faz cumprir a
lei; o Pajé é o porta-voz do Grande Espírito: líder espiritual, curandeiro
(cura doenças com plantas), realiza os rituais, entra em contacto com os
Espíritos, é, portanto, um líder espiritual. (3) No Budismo Tibetano, a escolha do
Dalai Lama consiste num processo espiritual muito singular. Os monges viajam
pelo Tibete, e não só, à procura de crianças que tenham nascido um ano após o
desencarne do Dalai Lama. Uma vez seleccionadas, são submetidas a testes
rigorosos. (3)
Perguntamo-nos porque é que tudo isto
ainda existe? Tribais ou não, todas estas práticas existem porque são suportes
espirituais do planeta. A sua existência não está vocacionada para os altos
voos da tecnologia ou da ciência. Um dia, irão naturalmente desaparecer, como
já desapareceram espiritualidades politeístas, tais como da Roma Antiga (com
raiz em crenças etruscas, gregas e orientais), da Grécia Antiga (caracterizada
pelo antropomorfismo, ou seja, os helénicos acreditavam em deuses com
características humanas; na cidade de Delfos temos as pitonisas, sacerdotisas
do templo de Apolo), do Antigo Egipto (religião que durou três mil anos; mistura
de espiritualidades, Mitologia, Medicina e Magia), da Mesopotâmia (politeísmo
complexo, composto por um panteão de deuses e semi-deuses hierarquizados
segundo o grau de importância), com as respectivas civilizações que lhes deram
ser. O Cristianismo está, igualmente, em profunda mudança. Está a deslocar-se,
sobretudo, para a África subsaariana e para a Ásia. Na Europa, está a tomar
nova configuração, mercê das convulsões sociais e políticas, da globalização,
bem como dos movimentos ecuménico e inter-religioso, que vão ganhando espaço. O
mundo, na sua espiritualidade, não pára.
Tudo isto tem um nome: Espiritismo,
comunicação do mundo invisível com o mundo terreno. Desde sempre. E isso vai
muito para além da Codificação. Esta, não inventou a comunicação dos Espíritos,
nem os médiuns. A Codificação “apenas” estabeleceu um código de conduta em que
o nosso comportamento social está em estreita relação de contiguidade com o
mundo espiritual: aprender a discernir dos Espíritos, soltar o pensamento
humano dos grilhões dos talismãs, das fórmulas, no fundo, de representações
figurativas; porém, tendo em consideração que há pessoas que, na sua
espiritualidade, precisam de um suporte figurativo, há que respeitar;
oferece-nos, ainda, um estudo aprofundado da mediunidade, objectivando a
anulação da estranheza perante os factos mediúnicos, ora como actos diabólicos,
ora como sobrenaturais.
Mas não é tudo. O mais importante é
perceber que essas civilizações que passaram pelo planeta são marcos
importantíssimos do nosso progresso espiritual. Muitos de nós, não todos porque
não progredimos ao mesmo ritmo, somos os homens das cavernas que ainda não
saíram daqui. Passámos pelas civilizações antigas, reencarnámos numas e
noutras, passámos pelas diferentes raças, etnias, crenças, cultos, vivências
sociais e políticas, vivemos em períodos de paz e de guerra, convulsões de toda
a ordem, enfim, uma mundivivência bastante complexa até chegar aos nossos dias.
É consciente desta realidade que o Espiritismo não faz qualquer diferença entre
Trabalhadores homens ou mulheres, raças, etnias, nacionalidades. Poucas
doutrinas se podem vangloriar de tal presunção. Em Portugal, qualquer pessoa
pode ser Trabalhador da Casa Espírita.
Quanto
à mediunidade, as práticas são bastante diversificadas, para idênticos
objectivos. Assim: no Budismo, são inseparáveis das técnicas de meditação as
técnicas respiratórias. Quem não sabe respirar convenientemente não sabe orar
nem meditar; nalguns casos temos um vegetarianismo rigoroso, noutros não. Nas
religiões da Natureza, temos a dança, o bater de palmas, o toque dos atabaques
e muita alegria. Nas igrejas católicas, temos o órgão, o canto lírico e o
vinho/hóstia; noutras igrejas, os espirituais negros, etc. No Espiritismo
impera o silêncio, ouve-se música relaxante e meditativa e bebe-se água
fluidificada (semelhante à água benta na igreja Católica) no fim dos trabalhos;
quando se faz necessário realizar algum trabalho mediúnico de grande
especificidade, dias antes há abstinência de carne, peixe, álcool, sexo.
Posto isto, esta é a única visão objectiva
e certa para explicar o progresso espiritual? Não. É apenas a que funciona para os que estão abrangidos por esta fé.
A nossa maior vigilância deve ir no sentido de analisar muito bem aquilo em que
acreditamos. Por muito bom que seja, se cairmos no totalitarismo, aquilo em que
acreditamos é aquilo que não raro nos condena. O mundo transborda de gente
condenada por aquilo em que acredita. Por vezes, entrar em ruptura é um grande
acontecimento. A ruptura, habitualmente, abre as portas à possibilidade…
As religiões não estão acima da crítica,
da interrogação, do estudo livre e aberto. Nós dizemos que são caminhos para
Deus. É verdade. Mas é mais verdade ainda que são essencialmente caminhos para
nós. Quanto aos Espíritos que nelas se manifestam, é muito chato para algumas
pessoas, são os mesmos em toda a parte. Manifestam-se de formas diferentes,
segundo as crenças: adaptam-se desde o silêncio mais profundo, à exuberância
mais ruidosa. Dizem as mesmas coisas, mas com uma linguagem adaptada às
circunstâncias, ao meio, ao entendimento do auditório. Uns identificam-se mais
com uns locais do que outros, mas sempre em função das suas missões. Não são
seres superiores, mas são gente de bem, e é isso o mais importante. Kardec
adverte: “ Os Espíritos que se ligam a
locais ou coisas materiais nunca são superiores, mas por não serem superiores
não têm de ser maus ou de alimentar más intenções. São mesmo, algumas vezes,
companheiros mais úteis do que prejudiciais, pois caso se interessem pelas
pessoas podem protege-las.” (4) Isto para que não sejamos acometidos,
irreflectidamente, de ideias disparatadas de que a ausência de luz
resplandecente significa treva pura. Não temos acesso nem a uma coisa nem a
outra. Os Espíritos de mundos inferiores ao nosso não entram em contacto connosco:
“Há Espíritos que nunca podem
comunicar-se: os que, por sua natureza, ainda pertencem a mundos inferiores à
Terra.” (5)
Quanto
aos Espíritos puros, que “ São às vezes
designados pelos nomes de anjos, arcanjos ou serafins“ (6), bem vaidoso
seria quem se julgasse com capacidade de comunicar com eles.
No fundo, sermos mais tribais ou menos
tribais, citadinos ou campesinos, as Entidades que se manifestam estão em
níveis idênticos. Por exemplo, um Mentor de um grupo em Portugal pode trabalhar
numa tribo qualquer, num país europeu ou asiático. Não são as raças ou etnias
que definem a maior ou menor assertividade quanto ao fundamento e ao ensino das
Entidades. A seriedade e o respeito, a qualidade de vida social, profissional e
familiar do médium são determinantes para a qualidade do trabalho. Porém, mesmo
através de médiuns mais imperfeitos podem vir mensagens de grande interesse. Perguntou
Kardec: “É absolutamente impossível
receber boas comunicações por um médium imperfeito?
- Um
médium imperfeito pode às vezes obter boas coisas, porque, se tem uma boa
faculdade, os bons Espíritos podem servir-se dele na falta de outro, em
determinada circunstância. Mas não o fazem sempre, pois quando encontram outro
que melhor lhes convém, dão-lhe preferência. “ (7) Este reparo é sempre bem-vindo para
desempoeirar as mentes que só aceitam e acreditam nas mensagens recebidas por
gente perfeita e de grande moral, que escreve ao kilo ou que fala pelos
cotovelos, inspirados por Entidades que só eles recebem. Sobre esse
preconceito, a Entidade acrescenta: “Perfeito?
É pena, mas bem sabes que não há perfeição sobre a terra. (…) Digamos antes bom
médium, e já é muito, pois são raros.” (8)
O mesmo se verifica quando desencarna
alguém que foi um sábio na Terra. “Geralmente,
pensa-se que interrogado o Espírito de um homem que foi sábio na Terra, em
certa especialidade, obtém-se a verdade com mais segurança: Isso é lógico e,
não obstante, nem sempre é certo. A experiência demonstra que os sábios, tanto
quanto os outros homens, sobretudo os que deixaram a Terra há pouco, estão
ainda sob o domínio dos preconceitos da vida corpórea, não se livrando
imediatamente do espírito de sistema.” (9) Isto significa que, contrariamente ao que
se pensa, nem sempre são as Entidades que enganam, mas os médiuns que se
enganam a si mesmos ao endeusarem pessoas que mais não são que simples e comuns
mortais.
A época de Kardec viveu essa situação.
Fascinados pelo deus ciência e pela super-poderosa razão, tudo o que estivesse
fora do conhecimento científico era desvalorado. No entanto, perante este filho
da sua época, a Entidade comunicante apelou à coerência, como sempre: “O conhecimento científico de um Espírito é
sempre uma prova da sua elevação?
-
Não, porque se ainda estiver sob a influência da matéria pode ter os vossos
vícios e preconceitos.” (10)
É tempo de começar a ler Kardec com outros
olhos. Todas as diferentes espiritualidades do mundo têm uma razão de ser. A
Codificação dá-nos, com toda a clareza, essa noção. Por isso, o Espiritismo
jamais foi uma doutrina racista, não é nem será; nem enquanto doutrina, nem
enquanto comunicação com os Espíritos.
(cont.)
Margarida Azevedo
Referências
*KARDEC,
A., O Livro dos Espíritos, CEPC,
Lisboa, 1984, Livro Terceiro, As Leis
Morais, cap. IX, LEI DE IGUALDADE, I
– IGUALDADE NATURAL, 803, p.325.
**Copilot
(Vide: O Livro dos Espíritos, VI,
Escala Espírita, 100-113)
______________idem,
III – DESIGUALDADES SOCIAIS, 806,
p.326.
(1)“Ao seguirdes caminho, anunciai dizendo que
“ficou próximo o reino dos céus!” Curai os doentes, despertai os mortos, curai
os leprosos, expulsai os demónios.” Mt10: 7-8. Trad. F.Lourenço.
Curai:
tratamento do corpo
Despertai
- gr. ἐγείρω
(egeirō) – “despertar da morte”; sentido
literal: “despertar do sono”, “levantar-se”, “acordar”. In: Copilot.
Expulsai:
tratamento espiritual
As
3 principais mediunidades do cristão: de cura física e espiritual; de fala. Em
comum têm a força curativa do Verbo/Palavra. Há sentidos divinos para as
palavras.
(2)https://pt.wikipedia.org./wiki/Rio-Yangtzé
(3)
Copilot
(4)
KARDEC, A., O Livro dos Médiuns,
CEPC, Lisboa, 2001, SEGUNDA PARTE – DAS MANIFESTAÇÕES ESPÍRITAS, cap. IX, LOCAIS ASSOMBRADOS, 14, p.147.
(5)
____________, O Livro dos Médiuns, FEB,
RJ, 1977, SEGUNDA PARTE – DAS MANIFESTAÇÕES ESPÍRITAS, cap. XXV, DAS EVOCAÇÕES, 282, Questões sobre as Evocações, 3ª, p.
349.
(6)____________,
o.c. 1984, Livro Segundo, Mundo Espírita ou dos Espíritos, cap. I, DOS
ESPÍRITOS, PRIMEIRA ORDEM – ESPÍRITOS
PUROS, 113, Primeira Classe, p.102.
(7)____________,
o.c., 2001, idem, cap. XX, INFLUÊNCIA
MORAL DOS ESPÍRITOS, Questões
diversas – Dissertações de um espírito sobre a influência moral, 8, p.241.
(8)____________,
idem, ibidem.
(9)_____________
o.c., 2001, idem, cap. XXIV, IDENTIDADE
DOS ESPÍRITOS, Distinção entre os
Espíritos bons e maus, 265, p. 281.
(10)
____________, idem, ibidem, 268, Perguntas
sobre a natureza e a identidade dos Espíritos, 2, p. 287
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