UMBRAL, UM LUGAR COMPLEXO II
“Os Espíritos que seguem desde o princípio o caminho do bem, nem por isso são espíritos perfeitos; se não têm más tendências, não estão menos obrigados a adquirir a experiência e os conhecimentos necessários à perfeição.” (Kardec, 1984)
Do que foi dito anteriormente conclui-se
que o umbral liberta Deus do seu papel de castigador, ficando o Espírito
entregue, fatalmente, ao resultado dos seus bons ou maus pendores. Por outro
lado, se Deus não castiga também não alivia. Simplesmente está fora de uma
coisa e de outra.
Além disso, se há os que seguem, desde o
princípio, o caminho do bem, mas nem por isso estão isentos da luta pelo
conhecimento, e se todos vamos para o umbral após a morte, como afirmam alguns,
então ninguém está livre das tribulações, sejam elas neste planeta, sejam no
umbral, tudo em nome da ciência e da perfeição.
Outro aspecto não menos pertinente tem a
ver com o facto de se o umbral é o lugar que nos espera a todos após a morte,
se contém vales de enxofre, lagos de sangue e de pus, se há colónias aterradoras,
e se tudo isso está numa relação de contiguidade com a vida na terra, como
referem os mais esclarecidos, então onde situar o processo de limpeza
espiritual e de purificação tão necessários ao progresso dos Espíritos?
A globalização está a empurrar-nos para a
emergência de uma reconceptualização do nosso discurso, de forma a cortarmos
com uma certa exasperação a qual se traduz por uma crescente insensibilidade ao
sofrimento. Os ambientes espíritas têm-se tornado, ano após ano, frios e
insensíveis, calculistas, isolacionistas, perigosamente radicais a tal ponto
que fazer uma abordagem dos incêndios florestais, cheias e todo o tipo de
catástrofes naturais, o terrorismo, os tiroteios em escolas e demais lugares
públicos, etc., é encarado como fazendo parte do processo de limpeza do planeta
que, dessa forma, passará de lugar de provas e de expiações a planeta de
regeneração.
Confundindo o avanço tecnológico com
evolução espiritual, pois que uma criança mexe num computador como muitos não
manuseiam uma tesoura, concluem que já cá temos os novos habitantes iluminados.
Porém, quando os telejornais apresentam os pedopsiquiatras e pedopsicólogos a
alertarem pais e educadores para os perigos de as nossas crianças e jovens passarem
tanto tempo com telemóveis e computadores nas mãos, a teoria da iluminação cai
por terra. Efectivamente, acreditar que a regeneração de um planeta se faz por
meios tecnológicos e de catástrofes de toda a ordem é não ter o mínimo de
sensibilidade pela vida, é fazer do umbral que ainda é a terra o ponto de
charneira para o Divino.
Se existe o umbral em torno do planeta,
realidade paralela à nossa do tipo mundo das ideias de Platão e a que
Aristóteles chamou metáforas poéticas, então não é aqui que tudo começa. Pelo
contrário. O umbral é um mundo paralelo de provas e de expiações e o nosso
planeta mais não é que a materialização das mesmas. Até porque quem lê o Nosso Lar percebe que se está perante
uma realidade objectiva.
Como fazer para sair desta situação? Além do
referido no número anterior, temos a:
1.
Crença de que os Espíritos sabem tudo, nomeadamente o
futuro;
2.
Crença de que os Espíritos presidem ao progresso
científico, aos inventos, a descobertas tecnológicas, e que revelam tesouros
escondidos;
3.
Crença de que Deus criou seres perfeitos (não sujeitos
à escala evolutiva).
4.
Crença de que quando desencarnarmos vamos para o
paraíso;
5.
Crença de que os Espíritos de Luz se manifestam na
terra, nomeadamente, santos, anjos, arcanjos e serafins
Sobre estas
matérias, vejamos o que diz a Codificação:
1- “As percepções e os conhecimentos dos
espíritos são indefinidos; em uma palavra, sabem eles todas as coisas?
- Quanto mais se
aproximam da perfeição mais sabem: se são superiores, sabem muito; os Espíritos
inferiores são mais ou menos ignorantes em todos os assuntos.” (Kardec, ibidem,
questão n.º 238)
2- “ - Os Espíritos não podem guiar descobertas
nem investigações científicas. A Ciência é obra do génio e só deve ser
adquirida pelo trabalho, pois é por este que o homem progride. Que mérito
teríamos nós se, para tudo saber, apenas bastasse interrogar os Espíritos?
(…)
O
mesmo se dá relativamente aos inventos e descobertas da indústria. Chegado que
seja o tempo de uma descoberta, os Espíritos encarregados da sua marcha
procuram o homem capaz de levá-la a bom termo e inspiram-lhes as ideias
necessárias, isto de maneira que lhe não tire o respectivo mérito, que está na
elaboração e execução dessas ideias.
- Os
Espíritos não podem concorrer para a descoberta de tesouros ocultos. Os superiores
não se ocupam dessas coisas e só os zombeteiros indicam tesouros que o mais das
vezes não existem e apontam lugares diametralmente opostos àqueles em que realmente
existem. (…) a verdadeira riqueza consiste no trabalho.” (Kardec, 1997, p.
112).
3-
“ Se a opinião de que há seres criados
perfeitos e superiores a todos os outros é errónea, como se explica a sua
presença na tradição de quase todos os povos?
- Aprende que o teu mundo não existe
de toda a eternidade, e que muito antes de existir já havia Espíritos no grau
supremo; os homens, por isso, acreditaram que eles sempre haviam sido
perfeitos.”
(Kardec,
o.c., questão n.º 130).
4- “Em que se transforma a alma no instante da
morte?
- Volta a ser Espírito, ou seja,
retorna ao mundo dos Espíritos que ela havia deixado temporariamente.” (Kardec, ibidem,
questão n.º 149).
5- Os Espíritos
puros têm como missão: “Assistir os
homens nas suas angústias, incitá-los ao bem e à expiação de faltas que os
distanciam da felicidade suprema (…). São às vezes designados pelos nomes de
anjos, arcanjos ou serafins;
Os homens podem comunicar-se com
eles, mas bem presunçoso seria o que pretendesse tê-los constantemente às suas
ordens.”
(Kardec,
ibidem, p.102).
6-
“ Há Espíritos que ficarão perpetuamente
nas classes inferiores?
- Não; todos se tornarão perfeitos.” (Kardec, ibidem,
questão n.º 116).
Além dos anteriormente referidos, parece-me
que é por estes elementos que devemos começar. Exacerbar a moralidade e a razão
em nada abona a seu favor. Elas desenvolver-se-ão com o tempo. Para já, influenciados
que somos pelos Espíritos, é de uma educação para a espiritualidade que
precisamos urgentemente. Aprender a pensar o bem, a desejá-lo para todos,
aprender a perdoar, a desfrutar da diversidade humana e da Natureza, estarmos receptivos
ao aprendizado nesta escola maravilhosa que é a Vida significa construirmos um
pequeno oásis espiritual na terra.
Não existe quem saiba tudo, neste ou
no outro lado da vida, ninguém é perfeito, só Deus; não há paraísos perdidos,
não temos acesso a seres altíssimos porque fulminar-nos-iam com a sua luz.
Contentemo-nos com a luz que nos chega, que já está muito acima de nós, sem ela
não tínhamos a Codificação.
Não temos uma ideia objectiva do que
se passa ao redor de nós. Que sabemos do umbral de que tanto se fala? Diz-se,
com alguma razão, que nele ocuparemos o lugar compatível com a nossa
consciência, um dia, quando desencarnarmos. Creio, no entanto, que ele é
sobretudo uma boa casa do nosso inconsciente, individual e colectivo. Talvez
ele seja o tal mundo muitooooo distante, o referencial dos nossos gostos,
preferências, simpatias, ou não, onde habitam os nossos conceitos, os sentidos
que damos à vida.
Pré-ocupemo-nos
com
os problemas que temos à nossa porta, dentro das nossas casas. Quando o ser
humano deixar de criar infernos é justamente quando o planeta irá passar a
outro nível. As desgraças que acontecem no mundo não são um processo de purificação,
mas a consequência de uma multiplicidade de factores, principalmente a crise de
valores que se está a viver, a falta de perspectivas para o futuro, o falhanço
das religiões porque não conseguiram modificar a natureza humana, pelo
contrário, criando o medo e o sofrimento, alimentando a miséria fazendo da pobreza
uma virtude, têm-se importado mais como vozes infernais que doces teorias das
virtudes divinas. Ao longo da história massacraram o ser humano com falsas
noções da vida espiritual, dando imagens do além fantasiosas, perpetuando a
mentira ao longo dos tempos. É este uma pequena parte do umbral em que temos
vivido.
Há outro além deste? Invisível para os
nossos olhos? Que sabemos nós? Que vemos nós? Estou sentada frente a este
computador, a escrever estas linhas. Quantas coisas estarão a passar-se neste
momento, nesta sala, junto a mim, e eu nem uma ténue sensação tenho, um
vislumbre que seja me toca no olhar. É o drama da transcendência na imanência,
ou do fraco que deseja superar-se.
Os Espíritos gravitam pelo universo no
cumprimento das leis de Deus, que nós não entendemos por sermos tão pequeninos.
Margarida Azevedo
Referências
bibliográfficas
KARDEC, A., O Livro dos Espíritos, CEPC, Lisboa,
1984, Livro Segundo, Mundo Espírita ou dos Espíritos, cap. I, Dos Espíritos, perg. n.º 127, p.105, nota
de Kardec.
___________, O Céu e o Inferno ou A Justiça Divina Segundo o Espiritismo, LAKE,
São Paulo, 1997, Primeira Parte - Doutrina,
cap. X, Intervenção dos Demónios nas
Diversas Manifestações, p.112.
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