sábado, agosto 10, 2024

RACISMO E ESPIRITISMO IV

 



“Para todas as coisas <há> um tempo;

E <há> um tempo para todo o assunto debaixo do céu.”

Eclesiastes*

Temos muita dificuldade em compreender, definir ou dizer qual é o nosso tempo. Traçar  um caminho, rumar a um objectivo, desenhar linhas de conduta é um desafio e tanto. Estamos embrenhados no modo como nos organizamos, não nos damos conta das influências que recebemos, que vão interferir no que rejeitamos, bem como na forma como reflectimos as grandes questões.

Efectivamente, vivemos o dramatismo das questões sem resposta: Como definir a nossa era? Para onde caminha a História? Para onde é que eu vou? E na incerteza que se faz ao largo, a nossa grande companheira de todos os dias, sentimo-nos encurralados numa apocalíptica desconfortável que, no receio de perdermos identidade, nos faz dissidentes.

Para alguns, essa dissidência está a construir discursos de ódio que, impulsiva e irreflectidamente, pretende dar ao passado um aspecto denso e soturno, do tipo eu quero libertar-me da vergonha de que me acusam, ou, vamos deitar abaixo estes tipos que nos exploraram. Com isto se pretende um conceito de eternidade sem passado, como se o eterno fosse algo do domínio do aparecente, sem referencial, em que cada vida é qualquer coisa que surge por acaso. Ora, todos os povos, toda e qualquer pessoa, qualquer animal ou planta está marcado por uma anterioridade que lhe dá sentido. Temos a História Humana como temos a História Natural. A Vida é um curriculum evolucionista em que tudo e todos estão fatalmente implicados.

Ninguém pensaria que no século XXI estivéssemos a viver fracassos, desilusões como as que vivemos. Aquilo de que o ser humano precisa é de uma mudança de mentalidade, de uma conversão à vida. Como diriam os Gregos, uma metanoia. Não é a Deus que temos primeiro que nos converter, mas à nossa História, onde Ele, naturalmente, se manifesta. Ir contra a arquê, fundamentos, raízes, fundura, é o mesmo que rejeitar o pó de que somos feitos. Não podemos permitir que se condene o passado à pena capital. Tribunais não faltam, falta a justiça, a qual deve começar no cerne de nós mesmos.

Levar o passado ao banco dos réus, e com ele os povos brancos, abafando todo o tipo de benfeitorias, como educação e progresso tecnológico-científico, é o mais escandaloso e o pior dos racismos. É cultivar o puro ódio. É justificar e cimentar a ideia de que a corrupção de hoje, que impera por toda a parte, sempre existiu, abafando a infelicidade em que os povos mergulharam, muitos com grande saudade do colonizador.

Com quem é que eu sou feliz? Quem é que me dá melhores condições de vida? Onde é a minha terra? Quem é a minha família? Eu sou feliz com quem me trata bem, quem se importa comigo; a minha terra é a terra que me dá de comer, e a minha família é quem me estima e respeita.

Racismo? Então o dos ciganos contra os negros, dos indianos contra as outras raças, dos negros entre si e para com os brancos? Desses ninguém fala, é politicamente incorrecto. Racismo, só os brancos, com o seu Cristianismo nefasto.  

Devemo-nos mutuamente a gratidão dos contágios culturais. “Um ingrato é um caloteiro moral”, dizia Eduardo Fernandes de Matos (Casa Espírita, Associação de Beneficência Fraternidade). Não concordo com o modo como o Cristianismo se expandiu, menos ainda com a ingratidão de que esta a ser alvo. Porém, ele próprio evoluiu mediante as influências que recebeu dos povos por onde se difundiu. A nossa vida caracteriza-se por um sistema de trocas, e o factor religioso não lhe está imune. Daí os tão falados, e sempre discutíveis, sincretismos religiosos, de que hoje nem nos apercebemos.

A Espiritualidade adverte para a falta de fé e de oração. Ora, quando as religiões forem organizações de paz, acima de todas as coisas, de fé e crentes em Deus, ao invés de organizações político-económicas; quando assentarem os pés na terra e abandonarem o milagroso, o sobrenatural, e a exclusividade de alguns face a uma massa de gente supostamente desfavorecida; quando abandonarem a ideia de que os preceitos ritualísticos exteriores são os caminhos únicos e verdadeiros para Deus; quando acabarem com os heróis e os mártires, e que o céu é para os que melhor conseguirem impor as suas ideias como o supra-sumo da verdade; quando acabarem com a falsidade de que crer em Deus é estar investido de super-poderes, tipo salvo-conduto para fazer o que quiser dando o direito de destruir tudo o que se lhe opuser; quando as religiões deixarem de ser discursos amargos e forem discursos doces, bebendo no cálice da tolerância, do sorriso, da sinceridade, e sobretudo na pedagogia da partilha da existência com todos, percebendo que a coisa mais feliz é estar na vida, que é sagrada porque é de Deus, então iniciaremos uma nova era espiritual.

Até agora, religião e ditadura têm estado inter-ligadas. No século XXI, com raras excepções, nada parece demover os seus líderes das suas moralidades podres, desumanas e, nalguns casos, mortíferas. A destruição jamais os assustou, porque a morte homicida é para eles uma missão libertadora.

É urgente acabar de vez com dicotomias de que somos herdeiros: puro/impuro, bom/mau, santo/pecador, céu/inferno. Somos todos impuros, maus e pecadores, e por isso a nossa experiência existencial de hoje não pode anular a de outrora, não tem autoridade para o fazer. A nossa sociedade não serve de modelo. Há que perceber que o tempo cronológico do nosso passado está prenhe de momentos avassaladores. Muitos dos erros de ontem foram portas que se abriram, tal como os erros de hoje são portas abertas para amanhã. De momentos de grande loucura nasceram inesquecíveis surpresas da razão. Afinal, há erros não são erros, mas possibilidades, portas escancaradas à aventura.

Levar o Cristianismo ao mundo é transportar uma fé mundivivente, transmissora de uma espiritualidade que não cabe num coração só. Cristianismo significa viagem. E o que é a viagem? É caminho, que não se faz só. Há sempre companheiros de viagem, pessoas com quem se conversa, se troca impressões, se fala da vida, enfim. Viajar significa partir. O mesmo é dizer que o Cristianismo está sempre de partida, ou seja, exposto às mais diversas influências. Impossível separar os oceanos, os caminhos mais ou menos poeirentos, os impulsos da curiosidade desta força que ninguém define. Jesus deu-nos o exemplo de itinerância, assim como Paulo de Tarso, no sentido de que o sedentarismo é impróprio da fé no Deus único. Ser cristão é sair, aventurar-se, descobrir (tirar a cobertura).

O Espiritismo diz-nos que o Espírito viaja pelo universo à procura da fusão com Deus. Em cada estação da sua viagem ele fica marcado por novas experiências. E que experiências: raciais, étnicas, folclóricas; viaja pelos cinco continentes, aprende os seus cantares, a força das palavras novas, pinta quadros, ergue monumentos, descobre a força das plantas, descobre formas diferentes. Mas Deus é sempre o mesmo.

Procura-se, hoje, uma força desmedida que acabe de vez com o passado. Há quem acredite que tem essa força, como um génio que saiu de uma lâmpada para satisfazer todos os desejos. Pobre humanidade que está tão perdida.

Os rótulos aprisionam, são próprios de uma sociedade doente, tão doente que só vê doenças. Tolerar, perdoar e ter boa-fé têm que se despojar do peso religioso e assumirem a sua natural laicidade (os próprios evangelhos são laicos; Jesus não fala de si mesmo religiosamente). Não podemos continuar a fazer da religião o lugar privilegiado dos nossos caprichos, instintos de vingança, milagres, que nos aceite como vítimas. Religião não significa ocultação.

Já perdemos muito tempo. É urgente acabar com o esconderijo atrás das vestes dos santos, dos discursos dos Espíritos, ou das doutrinas. Não podemos travar o futuro com as nossas vãs teorias, bizarras e primárias. Não podemos condenar o passado ao exílio, fazendo da ignorância de hoje uma virtude. A fé é liberdade, e a Espiritualidade é trabalho.

Reinterpretar textos, factos históricos, momentos singularíssimos (não anular o kairós, momentos que quebraram os tempos na sua sucessão interminavel) é abrir horizontes. “Sem a reinterpretação do passado, tornamo-nos infiéis do presente”, dizia o pastor Dimas de Almeida. Ver-se racismo em tudo é falar de nós mesmos como apenas problema. Apagar um texto é assassinar a existência de realidades que fazem parte do nosso crescimento. Reinterpretar as nossas raízes não implica anular o que quer que seja. É tornarmo-nos receptivos ao que a vida nos ofereceu.

Antes da oferta no altar, vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão (Mt 5: 23-24). Antes do religioso está o outro, antes da oração está a reconciliação, a resolução de conflitos. Trocado por miúdos, antes do género, da etnia ou da raça está uma coisa intransponível: a Humanidade.

O mesmo é dizer: Nem tu que és racista és pior e vales menos; nem tu que não és racista és melhor e vales mais. O grande valor está na fé e no amor, que são os únicos que valem alguma coisa, porque são daltónicos. Tudo se resume a fases, períodos, momentos, vivências, transitoriedade. Sejamos como formos, não vamos ser sempre assim. Graças a Deus.

É tempo de nos comprometermos com o amor, com a verdade, com a luz, com a justiça, com a educação. Não é de templos que precisamos, nem de mais centros espíritas, nem de mais rituais. Já temos que chegue. É de uma fé renovada o que verdadeiramente mais falta nos faz. Quanto ao Espiritismo, como fé cristã e sem uma moral própria, portanto, ecuménica, nunca foi, não é e jamais será um movimento racista.

 

Margarida Azevedo

 

 

Referências

* Antigo Testamento, vol. IV, Os Livros Sapienciais, Tomo 1, Quetzal Editores, Lisboa, Ec3:1, trad. F Lourenço.

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