SEM MEDO NÃO HÁ RELIGIÃO II
“A oração é forte quando nos transforma, e não
apenas quando Deus faz aquilo que nós queremos.”
Dimas de Almeida
O
medo é perito em gerar a confusão entre conceitos. Por exemplo, há quem tenha
como sinónimos crer e temer, isto é, o crente convicto é um
temente de Deus. Vejamos.
Temer
a Deus significa minimização do mundo. O temente acredita que Deus está feliz
sempre que ele desvaloriza o mundo em detrimento de um amor exclusivista e
radical para com Ele; mundo e Deus são dois opostos, uma binaridade do tipo, o
mundo é um lugar onde coexiste uma panóplia de desgraças, a que todos estamos
eternamente condenados, o que, por extensão, amar o mundo significa amar o que
não presta, isto é, caminho desviante de Deus.
Os
espíritas mais radicais não se cansam de afirmar que vivemos num mundo de
provas e de expiações, o segundo grau mais baixo da escala evolutiva, antes, só
o de mundos primitivos, o que significa que a felicidade nos está completamente
vedada na Terra. O mesmo é dizer que há uma pré-programação das nossas acções,
de tal forma que a nossa vida está numa luta constante para conseguir agir em conformidade
com a vontade de Deus. Desta forma, viver consiste numa luta inglória contra
essa pré-programação, a fim de entrar num mundo de bem-aventuranças. A procura
de fazer, supostamente, tudo o que Deus gosta deixa de ser um acto gratuito e
livre, mas um conjunto de práticas para evitar o umbral, ou o inferno, noutros
grupos cristãos. Entregar-se ao além, viver em prol dos bons Espíritos,
desvincular-se progressivamente da Terra, desvalorizar tudo o que nela acontece,
porque é obra do karma, uma espécie de pré-história existencial a que
inevitavelmente ninguém escapa, ou porque é uma consequência lógica do mundo
desvairado em que vivemos, é uma virtude e sábia decisão, porque, naturalmente,
é a procura do lugar sagrado, morada de Deus lá muito longe.
Essa acção, geralmente destruidora do natural
desejo de liberdade, porque resultante de uma ideologia que vê o mundo como um
perigoso espaço cheio de negatividades, porém, muito atractivas para muitos, transporta
a fé para o domínio do misterioso, para uns, ou para o sabe-tudo dos espíritas
radicais. E tombamos redondos no habitual: estamos em linha recta para
acreditar que há gente privilegiada, que consegue desvendar episódios do
passado remoto, dominar o futuro, gente a quem nada se opõe a bem do futuro
brilhante da alma no além. Essa gente muito superior, são os santos, para uns,
os médiuns de alto nível, para outros, tendo em comum a capacidade exclusiva da
comunicação com Entidades superiores, chegando alguns a pensar que há quem
tenha contacto directo com Deus, procedendo a grandes revelações. No
Espiritismo, temos Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco, só para
citar os mais conhecidos, que comunicavam com Entidades a que só eles tinham
acesso, radicalmente com mais ninguém, o que vai contra os princípios básicos
da Doutrina. Os Mentores dos grupos de trabalho são unânimes em dizer que se
plasmam em variados pontos do Globo, com apresentações e discursos diferentes,
mas que, em substância, apelam ao mesmo: a paz, o entendimento, o amor, a
partilha, a oração.
Este
ponto, de capital importância para a assimilação da tolerância religiosa e
espiritual, conduz-nos, justamente, para o facto de que não há privilegiados,
que o Ocidente não comunica com Entidades tão superiores às quais o Oriente não
tem acesso, e vice-versa. É claro, para quem só conhece a mediunidade
ocidental, vive a fascinação dos seus médiuns predilectos, as Entidades muito
iluminadas que só estes recebem. Isso é uma das barreiras à abertura ao
diferente na sua espiritualidade.
Este desprezo pelo mundo, como palco das
maiores negatividades, conduz, em linha recta, a preconceitos, divisão dos
seres humanos em superiores e inferiores; coisas como as limpezas étnicas e
religiosas, bem como as boas práticas libertadoras de todos os males: temos o anti-semitismo,
os infiéis, ou então, outro exemplo mais recente, os cristãos como gente
satânica. Tudo isto é uma amálgama de conceitos numa salada mal confecionada,
em que o medo toma o nome de fé libertadora super-poderosa. Na verdade, o temente
diaboliza a vida terrena, porque o mundo é, para ele, o chão dos demónios, do
negativo no seu sentido mais abrangente.
Crer
em Deus, pelo contrário, significa insatisfação permanente, mas consigo próprio.
Porque nada teme, porque tem a certeza de que Deus a tudo preside, porque sabe
que nada acontece sem que Ele o permita, o crente nunca tem a sua fé como
definitivamente construída, nem como o móbil de acções acabadas. O crente é um
insatisfeito, um ávido, ele está sempre à procura de algo mais. Sente-se muito
longe de Deus, o seu agir é sempre incorrecto, falta-lhe sempre muita coisa; a
paz que transporta é muito deficitária, porque há uma inesgotável insaciedade.
Por isso, a oração é a sua arma, os constantes exames de consciência são uma
necessidade permanente, o amor pela vida uma máxima, o outro é o seu grande companheiro,
a acção prática na vida uma constante. O crente é livre na fé e na acção,
porque a vida terrena é para ele caminho divino; sabe que pisa solo sagrado,
porque tudo é obra de Deus misericordioso.
Vejamos
ainda outro binómio cujos conceitos é importante distinguir: invisível e Deus.
Ora o conceito de invisível e Deus não são sinónimos, até porque Deus nem
tampouco é um “conceito”. O invisível, qual fonte inesgotável com resposta para
tudo, raiz das grandes teorias, de forças exorcizantes contra todos os males, até
das forças políticas que têm o condão de sozinhas porem o país na linha; enfim,
o invisível, com as suas varinhas mágicas, não é Deus, mas uma realidade, tão
ou mais real do que a nossa vida material, a que os seres de carne e osso dão
uma importância desmedida, por vezes superando o próprio Deus. Esse invisível,
que não é totalmente invisível para toda a gente (há médiuns videntes, porém, sempre
com uma vidência limitada a uma determinada dimensão) é uma criação de Deus. É
o plano terreno, ansioso por grandes líderes, grandes na medida em que são
autênticos enviados, possuídos por forças e conhecimentos sobre-humanos, que
faz do invisível um mundo à parte. No entanto, tudo o que é do plano invisível
não é mais obra de Deus do que tudo o que é do plano terreno. A casa de Deus é
a imensidade de tudo o que existe, e os conhecimentos no plano invisível têm as
suas limitações, como têm os nossos conhecimentos no nosso mundo. Além disso,
nós também somos invisíveis para outros planos existenciais.
Deus
é Misericórdia pura, Amor incondicional, silêncio no recôndito da alma. Deus é
uma acção invertebrada, um olhar que não vê, uma presença na ausência, uma
transcendência na imanência das Suas criaturas.
Vivemos
no conflito de interpretações dos nossos conceitos. Há uma gramática que
precisa de ser revista, um verbo do tempo que nos ofereça interpretações que
tenham uma resposta que vá em linha recta aos problemas actuais.
Todos
os grupos religiosos são expansionistas, todos querem ter mais e mais devotos.
No entanto, o que é que eles expandem? Conflitos e mais conflitos, todos filhos
do medo.
Contudo,
a geografia do religioso está a mudar. Está-se a traçar outro mapa, e com ele
uma nova era da fé. Mas qual? Tendo em conta que o religioso é o centro de
grandes tensões sociais e psicológicas, que Deus é que a nossa fé procura e
simultaneamente expande? Que pesquisa ao interior de nós mesmos deixamos que a
fé elabore?
Socialmente,
cimentou-se o medo dos loucos à solta, de uma massa de gente perigosa e
imputável. É o medo de ser atacado em todas as frentes. A internet espalha o
medo do médico, porque está nas mãos da indústria farmacêutica, dos
medicamentos, porque são tóxicos, das vacinas, porque são feitas a martelo, dos
aparelhos de diagnóstico, porque são cancerígenos, dos alimentos, porque não
estão em condições, da água, porque está contaminada. Discernir, verificar,
informar, escolher está fora de questão. Nada presta. E os líderes religiosos
tiram bom partido da situação: apresentam a religião como, não o último, mas
como o único recurso.
Precisa-se
de um cânon que defina o que é religioso do que não o é. Algo que diga que a
religião é uma organização sem medo dos infernos, dos castigos de Deus como um
Ser frio e calculista; que ensina a servir, cá neste mundo, e que a oração é
uma linguagem com poder; que todo o discurso que nos esmague não é religioso;
que a religião é tanto mais eficaz nos seus objectivos quanto mais espiritual,
isto é: não há milagres, mas a força desmedida do bem-fazer; que o génio é um
Espírito que muito evoluiu para muito servir, mas longe, quantas vezes, da
pureza espiritual que muitos lhe atribuem, na confusão entre a genialidade e a
santidade.
Na
fusão do religioso com o espiritual chegaremos a um fim: a alma humana já não
carece de fé, de cor ideológica, porque a sua vivência caminha lado a lado com
a dádiva de Deus: viver é partilhar.
Fiquemos
com a oração de um Mentor:
Senhor, eu fiz hoje o
melhor que pude pelo bem da humanidade.
Sei
que muita coisa ficou por fazer porque ainda sou muito deficitário/a, mas dei o
meu melhor.
Eu nada temi, porque sei que Tu estás comigo.
Tu és aquela voz que está sempre presente na minha alma ainda tão pobre,
a mão protectora e firme, uma presença
incondicional em qualquer das horas do dia.
Senhor,
eu quero ser merecedor/a da força que me dás para trabalhar,
da
vontade de querer vencer e ultrapassar todos os obstáculos.
Torna-me,
por isso, num/a trabalhador/a incansável, Teu servo/a
e
que, no que estiver ao meu alcance, eu a todos preste o meu auxílio.
Que
amanhã eu continue a minha caminhada, cá neste mundo ou noutro, se tu achares
que chegou a minha hora de partir.
Sei
que, vá para onde for, a Tua divina presença irá acompanhar-me.
Obrigado/a,
Senhor.
Se
conseguirmos, de alma lavada, chegar ao fim do dia, elevar o pensamento a Deus,
e dizer qualquer coisa como isto, temos aí a felicidade deste mundo.
Margarida Azevedo
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