terça-feira, abril 12, 2011

SOBRE O CONHECIMENTO CIENTÍFICO


Interrompo aqui a prelecção que hei começado, subordinada ao tema da afectividade, para proceder, dentro dos meus parcos conhecimentos, ao esclarecimento sobre o que é ou o que se pode considerar ciência. Fá-lo porque que há nos meios espíritas, mesmo entre os mais conceituados seguidores, uma noção de ciência que me parece desconforme com o seu real significado.

O facto talvez se deva à matematização da realidade, excessiva, acrescente-se, levada a efeito por uma larga franja de gente ligada à ciência. No entanto, não podemos considerar a Matemática como a única ciência, muito embora a sua indiscutível importância. Tomemos um punhado de exemplos como ilustrativos dessa verdade: sem Matemática andaríamos nus e descalços, pois não conseguiríamos tirar as medidas ao corpo, não teríamos mobílias, nem livros, nem automóveis e, é claro, nem toda a maquinaria que por aí existe e que se desenvolve que nem cogumelos… Por outro lado, se apenas estudássemos Matemática nada saberíamos de Literatura, Teologia, Exegese, Arte, Axiologia…E se a Matemática está em tudo, como costuma dizer-se, não é menos verdade que, se está em tudo é porque faz parte de… não é o próprio tudo.

Desta forma, o conceito de Ciência não é, nem pode ser, sinónimo de Matemática. Vai muito para além disso. O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa define-a deste modo: “1 conhecimento atento e aprofundado de alguma coisa (…) 1.1 esse conhecimento como informação, noção precisa; consciência (…) 1.2conhecimento amplo adquirido via reflexão ou experiência (…) 2 processo racional us. pelo homem para se relacionar com a natureza e assim obter resultados que lhe sejam úteis (…)3 corpo de conhecimentos sistematizados que, adquiridos via observação, identificação, pesquisa e explicação de determinadas categorias de fenómenos e factos são formulados metódica e racionalmente (…)” No Dicionário Universal da Língua Portuguesa, Nova Edição Revista a Actualizada, temos: “conhecimento rigoroso e racional de qualquer assunto; corpo de conhecimentos, sobre um determinado tema, obtido mediante um método próprio; domínio organizado do saber; conjunto organizado de conhecimentos baseados em relações objectivas verificáveis e dotados de valor universal; o conjunto das ciências; (…)” . E no Petit Robert, ciência significa: “I. 1.º Connaissance exacte et approfondie cience du bien et du mal (Bible). Science de l’ avenir. V. Prescience. Savoir qqch. de science certaine, par des informations sûres (...) avoir de la science infuse. Littér. Ensemble de connaissances, d’ expériences . V. Savoir. 2.º Ce qu’ on sait pour l’ avoir appris, connaissances étandues sur un objet d’ étude d’ interêt général.(...) * Em grego, no dicionário de Português-Grego, Grego-Português, o conceito de ciência subdivide-se em conhecimento – episteme – e conhecimento adquirido pelo estudo – mathema ; sophia - Para a episteme são remetidos os conhecimentos científicos em geral, para a mathema e para a sophia, as matemáticas e o saber, num sentido de sabedoria, interrogação sistemática sobre a origem e natureza última de todas as coisas. Esta associação entre a Matemática e a Sofia tem a ver com o facto de que, para o mundo grego (helénico/dialecto ático) a Matemática era uma ciência que contribuía para o desenvolvimento do espírito crítico.

Penso que se pode dizer, sinopticamente, que Ciência é o estudo aprofundado e sistemático de determinada matéria.

Lamentavelmente, muito embora o Espiritismo seja uma doutrina aberta ao conhecimento, promovendo a curiosidade e o espanto com tudo o que acontece, seja do mundo visível seja do invisível, a verdade é que os espíritas estão cada vez mais fechados em si próprios, mercê da onda de negatividade que prolifera dentro da Doutrina, fechando-a ao saber, excluindo determinadas ciências por puro preconceito, ou, o que é pior, sem nunca terem lido um livro sobre as mesmas. Porque baseados apenas em psicografias, grande parte cheias de erros, julgam ficar detentores de tudo o que há para dizer nessas áreas. É pena. A psicografia nem tão pouco tem essa função, mas a de despertar o interesse e o gosto pelo aprendizado; a psicografia não substitui, nem poderá nunca substituir, o cientista pois que o aprendizado vem pelos nossos próprios méritos e de acordo com o nosso merecimento. Poderá ser um apoio, uma ajuda, preciosa, acrescente-se, mas não mais do que isso. E já é muito bom.

Ora, em Espiritismo não se pode dizer que há saberes que não servem para nada, ou que cientistas, que dedicaram toda uma vida à descoberta ou investigação em determinadas áreas, não significam nada. O Espiritismo é uma doutrina de humildade, ou é científico ou não tem razão de existir, estando, por isso mesmo, depende, como qualquer religião ou igreja, dos saberes paralelos. Não podemos cair naquilo que criticamos nas outras organizações e fazer ainda pior. Dizer que o estudo da Bíblia não faz falta, ou que a Exegese é perfeitamente dispensável, é exactamente a mesma coisa que dizer que a Terra não se move ou queimar na fogueira quem disser que Jesus não é Deus. Os autores dos Quatro Evangelhos foram teólogos portadores de influências, entre elas, a transmissão oral e sacerdotal rabínica, apresentando-nos teologias em conflito, cristologias muito diferentes, apesar das relativas semelhanças entre os três sinópticos (Mt, Mc e Lc).

O mundo já teve, pensamos, a sua quota-parte de homicídios por motivos religiosos, guerras santas, segregações de toda a ordem. O Espiritismo tem que marcar a diferença pela coerência das suas posições, pela tolerância dos seus seguidores, e pelo desejo insaciável em conhecer cada vez melhor a vida, com tudo o que dela faz parte.

Para que Roger Perez afirme, na homenagem a A. Kardec em L’ evangile selon le Spiritisme, “que a pura doutrina de Jesus de Nazaré foi de alguma forma alterada durante séculos de interpretações interesseiras” (trad. nossa), é porque teve acesso a essas mesmas interpretações, as quais lhe chegaram mediante os escritores/estudiosos versados sobre essas matérias.

Para fundamentarmos as nossas opiniões, precisamos de ler, e ler fora dos nossos meios, caso contrário deixamos que nos passe ao lado o mundo em que vivemos. A segregação e o fundamentalismo são formas de xenofobia como outras quaisquer... São como viajar num transporte público e só olhar para os que são da nossa raça. Além disso, o Espiritismo é uma doutrina de origem pluralista, como afirma Kardec (op. cit., p. 15). Tudo é absolutamente necessário, mesmo o que por momentos nos parece estapafúrdio. Quem persistir no isolamento só lhe resta uma solução: faça uma fogueira e queime os livros.

Muita paz

Margarida Azevedo

_____________________________________________

*“1.º conhecimento exacto e aprofundado ciência do bem e do mal (Bíblia). Ciência do futuro. V. Presciência. Saber qq coisa com perfeito conhecimento de causa, através de informações seguras (…) ter a ciência dos que julgam possuir o que não estudaram. Lit. Conjunto de conhecimentos, de experi^ências. V. Saber. 2.º Aquilo que se sabe por ter aprendido, conhecimentos alargados sobre um objecto de estudo de interesse geral.” (trad. nossa).


Referências bibliográficas
Instituto António Houaiss de Lexografia, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Círculo de Leitores, Lisboa, 2002, p. 926.

Dicionário Universal da Língua Portuguesa, Nova Edição Revista e Actualizada, Texto Editora, Lisboa, p. 353.

ROBERT, Paul, Le petit Robert, Diccionnaires Le Robert, Paris, 1990, p. 1778.

S.J., Isidro Pereira, Dicionário Grego-Português e Português-Grego, Livraria A.I., Braga, p. 778.

KARDEC, A., L’ Evangile selon le Spiritisme, Les Éditions Philman, Paris, p. 15.

0 Comments:

Enviar um comentário

<< Home