quinta-feira, fevereiro 04, 2021

A SANTIDADE NA GEOGRAFIA DA FÉ

“ O que é um santo? Santo é alguém que alcançou uma remota possibilidade humana. Impossível de dizer que possibilidade é essa. Acho que tem alguma coisa a ver com a energia do amor. O contacto com essa energia resulta no exercício de uma espécie de equilíbrio no caos da existência. Um santo não dissolve o caos; se o fizesse, há muito que o mundo seria diferente. Não me parece que um santo dissolva o caos sequer para si mesmo, porque há algo de arrogante e de agressivo na noção de um homem ordenar o universo. A sua glória consiste numa espécie de equilíbrio. Desliza pela encosta como um esqui embalado. O seu trilho afaga a colina. O seu rasto é um desenho na neve no momento de um acordo particular entre vento e rocha. Há algo nele que ama tanto o mundo a ponto de se entregar às leis da gravidade e do acaso. Longe de voar com os anjos, marca com a precisão da agulha de um sismógrafo a paisagem sólida e sangrenta. A sua moradia é perigosa e finita, mas é no mundo que se sente em casa. Sabe amar as formas dos seres humanos, as formas delicadas e distorcidas do coração. É bom termos tais homens entre nós, tais pendulares monstros de amor.” L. COHEN Há muitos/as homens/mulheres que desejam ser santos/as através de sacrifícios e abstinências; há poucos/as homens/mulheres que desejam ser santos/as através de flagelações; há alguns/as homens/mulheres que desejam ser santos/as pelo muito amar. Aos primeiros falta-lhes o indispensável e vivem na precaridade; aos segundos superabundam os sacrifícios físicos e vivem nas trevas da dor constante; aos restantes transbordam os triunfos da luta pela felicidade no sacrifício do ciúme e da inveja. São os que vivem na partilha da alegria de viver. Os sacrifícios e as abstinências são próprios de quem tem alguma coisa de que não precisa, está a mais, porque quem nada tem, ou muito pouco, nada tem de que se sacrificar ou abster; quanto às flagelações, certamente são apanágio de quem já não sabe o que fazer da vida e, em desespero de causa, vive tão baralhado que sacrifica o corpo em vez da alma; mas ao amor entregam-se todos aqueles que espalham cor à sua volta e fazem dos problemas do outro os seus mesmos problemas. Estes são todos aqueles que fazem da Lei, dos profetas e de Cristo o manual de sobrevivência da salvação da alma, um código de amor sem fim. O santo não é um ET, um lunático, esgazeado e esquizofrénico, des-socializado, perdido num mundo que para ele está no avesso porque entregue à perfídia e à insolência. O mundo está farto de santos lunáticos, indivíduos a olhar desconfiados uns para os outros, tipo marcianos com cara de personagens estranhas dos filmes de ficção científica. Nem a religião é um discurso apático, nem os santos aprendizes de monstro. Se a religião não assumir que consiste num processo de humanização, que para isso não pode descurar o papel do crente enquanto homem/mulher, então continuará a confundir conceitos, práticas ascepticas libertadoras, como a oração, por exemplo, com desprezo pela natureza humana, espezinhando o crente no altar da tortura. A religião também não pode ser o prenúncio de um holocausto. Não pode promover a santidade através do desprezo pela vida valorando prioritariamente a morte, sacrificando o visível ao invisível. Quantos problemas do foro psiquiátrico isso foi trazendo aos longo dos séculos?! Gente que vivia na maior degradação, à espera que a felicidade caísse do céu, literalmente à espera da morte para atingir a saciedade, não mais que o prazer sem fim, o casamento com os anjos ou mesmo com Deus, num mundo que para eles estava carregado de impureza. Como explicar semelhante crueldade? Como explicar esta construção terrível de santos, heróis e mártires? Onde está a raiz da felicidade divina associada ao desprezo pela vida humana? A fé é uma força libertadora, e se o religioso não aprender os caminhos da liberdade está perdido. As nossas virtudes e os nossos vícios não são matéria religiosa, mas a massa de que somos feitos. O religioso deve ajudar a dirigir para Deus, mas independentemente de como cada um utiliza o fraco e o forte que há em si mesmo. Em Paulo, Gálatas 5:1, temos esta espectacularidade:”Pela liberdade Cristo nos libertou. Permanecei livres e não vos enredeis novamente num jugo de escravidão.”* Somos herdeiros de um Deus que não quer escravos. Somos herdeiros de um Deus que só Ele tem capacidade para libertar, isto é, que nos devolve a nós mesmos, na nossa condição não contra ela; esse Deus que não nos olha como um mal a abater, mas como seres que, apesar da sua condição, são portadores de uma força desmedida para Ele. A redundância linguística, “para a liberdade Cristo nos libertou, é uma forma de rejeição contra o aprisionamento religioso. As religiões impõem-se como organizações poderosas aprisionadoras e sufocadoras dos fiéis, infantilizando-os, menorizando-os, tornando-os dependentes de um super-poder: Deus. Desta forma, nada há de mais difícil que implementar a liberdade de fé. A nossa vivência é sempre religiosa, base estruturante que deve deixar a cada fiel o espaço para aprofundar as raízes do grupo religioso a que pertence. Isto implica que cada um deve sentir-se livre no contexto em que se encontra. Dito de outro modo, é no seio da religião que os fiéis devem sentir-se livres e não prisioneiros. Por outro lado, não compete à religião escolher quem se salva ou não. As assembleias religiosas não são uma massa de gente em que uns vão para o céu e outros para o inferno. As pessoas não distinguem por serem desta ou daquela religião, nem tampouco por terem religião, nem por cumprirem afincadamente os seus preceitos. Isso pode ser, e é, importante, mas não é decisivo. O valor de uma pessoa não se mede pela religião a que pertence, nem por ser mais ou menos piedosa nem mais ou menos caridosa, mas pela fé e pelo amor como forças impulsionadoras para essas mesmas, e outras, acções. O que define o crente é a sua natureza interior de amante, força mística que, antes de chegar a Deus, pensa no Homem. O crente tem que ser um filantropo desinteressado. Vão longe os tempos de Deus e depois o mundo. Estamos no mundo como caminho para Deus porque Deus também vem ao mundo, é nele que se manifesta. Só na liberdade para acções que não são pedidas, exigidas, comandadas, dirigidas de modo algum, aliciadas com o céu eterno que a fé é realmente fé. Fora disso temos a intolerância e o totalitarismo, e é contra o pensamento totalitário que Paulo, em Gálatas, nos adverte em 5: 13-16: Pois vós fostes chamados para a liberdade, irmãos. Só que não se trata da liberdade como via aberta para a carne; mas antes servi-vos uns aos outros através do amor. Pois toda a lei fica cumprida numa palavra, a saber: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Se vos morderdes e devorardes uns aos outros, tende cuidado para que não sejais aniquilados uns pelos outros.”* É o indizível que se manifesta sempre, é nele que cada um se ultrapassa e, munido de uma força que não domina, olha para o outro e percebe que, sem que ele lhe diga alguma coisa, sabe que ele precisa de si. É esse o santo, não pela pureza, mas por, ainda que ao delével, saber que é necessário onde o mais comum dos mortais não vê porque não está presente. Ora o santo é o que nunca está ausente. As caridades encarneiradas, estéreis quão frívolas, fora das quais não há salvação, dizem os insensatos, são caminho para a salvação e para o banquete com um deus avaro e muito caro; contrariamente, no amor incondicional ao próximo, a caridade não existe, é simplesmente Amor e visa acabar de vez com os necessitados cá neste mundo porque é uma prática lúcida. O amor sabe que o banquete no Reino de Deus não é redutível a um saco de víveres a uma família pobre. Isso é apenas o nosso dever de servos inúteis, aqueles que fazem apenas o que deve ser feito. Só se chega ao banquete no Reino de Deus mediante o excesso de amor, o desmedido e o insaciável amor. Emerge no humano crente, mais que na política, a fuga à tirania religiosa, a pior de todas. Nela, os crentes são levados a acreditar no que não existe, a sacralidade da religião e, o que é pior, por ordem directa de Deus. Acreditam em santinhos milagreiros, com ligação directa a Deus, privilegiados, a quem Deus deu super-poderes porque feitos de uma carne diferente da nossa. Mas a carne humana é toda a mesma e não é símbolo de pecado nem de virtude para ninguém. A carne não é pecado, nem o corpo símbolo de perdição, nem o erotismo anula a fé, nem o corpo se esgota na sexualidade. Tudo é muito mais do que isso, porque tudo é uma transcendência na imanência de um Deus superior que se passeia dentro de nós. Deus também quer e participa nas nossas sensações. Precisamos da religião para viver, não para sobreviver. Ela deve estar ao nosso serviço, congregar-nos, mas jamais estará ao serviço de Deus. Somos nós que precisamos da religião, Deus não precisa das religiões para nada, nem os Espíritos superiores. O acto litúrgico, o ritual, os paramentos, enfim, não servem a Deus, mas ao crente, como meio para chegar mais perto de um estado metafísico: remontar a um tempo longínquo ou uma forma de tornar presente um acontecimento muito antigo; estar lá, vivenciá-lo, fundir-se com ele. Só no religioso os seres humanos conseguem atingir este êxtase, e só a religião os distingue como seres humanos. Entrar no âmbito da religião é, por isso, entrar na liberdade em que cada crente comunica com algo que vem até ele trazendo-lhe a esperança da felicidade. Quanto aos cristãos, o que os define não é a referência a uma igreja qualquer, mas a Jesus, porque nenhuma igreja representa Jesus e porque Jesus, o Cristo, é irrepresentável, inclassificável. Uma igreja que representasse Jesus seria uma tirania, pois arvorar-se-ia como a detentora do sentido dos seus actos e palavras, bem como de todas as suas vivências. Ora, entre os cristãos, não pode haver dominadores nem dominados, mas uma comunidade de irmãos/ãs unidos/as pelo amor numa procura constante de uma vivência, a saber, o amor de Cristo. Cada uma pode ser um caminho. Ora o caminho pressupõe um caminhar, caminhar constante para um horizonte, mas há um nunca mais lá chegar porque nem o horizonte esgota o caminho, nem o caminho atinge o horizonte. O santo, não é um milagreiro, tal como Jesus não o foi, nem nenhum dos profetas. Urge descer ao humano e percebê-lo como um ser naturalmente cheio de potencialidades de que ele próprio é desconhecedor. O que sabemos nós de nós mesmos? Quem somos para nós? Ansioso por encontrar alguma estabilidade espiritual, paz na alma e paz na vida, o santo é quem domina essas matérias, não por as compreender, mas por fazer delas o real sentido da sua vida, não num ímpeto mágico como quem tira coelhos da cartola, mas através de uma fé libertadora e emancipada. O santo é aquele que toca as delicadas pétalas de uma flor, vendo Deus todo aí, e transcende-se na magnitude desse grão de poeira do universo. Precisa-se com urgência que os cultos cristãos sejam de reconciliação, pois só esta lhes confere o carácter de diálogo com a sua mesma transcendência. Religião, fé, santidade já é tempo que de identificarem. Para quê? Para as perdermos, libertarmo-nos delas, anularmo-las como desnecessárias, passarmo-las aos arquivos das bibliotecas na secção de arqueologia. Com o Cristo do judeu Paulo somos levados à grande interrogação, que é mais do que isso, é uma máxima: Já somos livres? Ou, pelo menos, já nos sentimos no caminho para a liberdade? Já não somos escravos, já saímos do Egipto? Que caminhos são os da nossa alma? Que geografia trazemos dentro de nós? Que montanhas e que mares? Que animal existe dentro de nós e no qual Deus se manifesta? Que noção de outro é que transportamos? Que outro representamos, olhamos, queremos conhecer? A que esse outro é que nos dirigimos? Que parte de nós deseja o outro? O que é desejar? Para quê a santidade? Para irmos para o outro mundo? Mas o outro mundo é aqui. É fácil, basta tentar. Cantemos com John Lennon. É uma saída. “Imagine there´s no haven It´s easy if you try No hell below us Above us only sky Imagine all the people Living for today Imagine there´s no countries It isn´t hard to do Nothing to kill or die for And no religion too.” Margarida Azevedo ______________________________________________________________________ Bibliografia citada COHEN, L., Poemas e Canções, I, Relógio D´Água, Lisboa, 2019, Belos Vencidos, O que é um Santo, p.233. * Bíblia, Novo Testamento, Apóstolos, Epístolas, Apocalipse, Vol.II, Lisboa, Quetzal Editores, 2017. Trad. de Frederico Lourenço,

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