quarta-feira, fevereiro 11, 2009

MORTE É FELICIDADE XXXIII


A IMPORTÂNCIA DA MORTE NOS CONTOS DE FADAS

(CONTINUAÇÃO)

1. Adão e Eva, os contos e a desobediência

Podíamos começar assim:
Era uma vez um rei mágico tão poderoso que criou o céu e a terra e todas as coisas que neles existem: as estrelas do céu e os peixes do mar. Ele até criou um homem e uma mulher a quem deu o nome de Adão e Eva.
Juntou-os e disse-lhes que tivessem muitos meninos. Para tanto criou um ambiente apropriado, cheio de beleza, o qual lhes foi ofertado como prenda de casamento. Esse espaço era uma floresta lindíssima, paradisíaca, cheia de árvores de fruto, a que deu o nome de Éden.
Mas Adão e Eva cansaram-se da monotonia do paraíso, ainda mais porque o rei tinha-os proibido de comer frutos da árvore mais bonita, uma majestosa macieira.
Que injustiça. Os frutos eram tão vermelhos e luzidios, tão apetitosos. Por que seria que o rei não queria que eles os comessem? E Eva começa a ficar curiosa (ela era mais curiosa que Adão).
Acontece que uma serpente, astuta e conhecedora das intenções de Eva, disse-lhe que não tinha qualquer importância se comessem daqueles frutos. Nada de mal lhes aconteceria, apenas e tão somente que ficariam detentores dos segredos do rei.
_Ora aí está a verdadeira razão! O rei tem medo que desvendamos os segredos dele! – exclamou Eva para consigo. Vou colher uma maçã para saber se de facto é tão boa como parece, e desvendar os segredos do rei.
E se bem o pensou, melhor o fez. Vai e colhe uma maçã, oferecendo ao Adão um bocadinho a provar para ver se era bom. Ambos deliciaram-se, pois de facto era muito bom. Nunca o paraíso lhes havia dado coisa tão boa.
Mas acontece que o rei, ao saber que tinha sido desobedecido, ficou muito zangado e disse-lhes do seu trono de diamantes:
_ Como ousais desafiar-me? Como ousais desobedecer-me? Ides ficar castigados para todo o sempre. Sereis expulsos do paraíso, ireis correr mundo e, como tal, morrereis. Tu, Adão, terás que trabalhar se quiseres comer; e tu, Eva, darás à luz filhos em grandes dores – disse o rei, retirando-se de imediato.
No entanto, eles não ficaram muito preocupados pois abriram-se-lhes as portas do mundo, o qual estavam tão desejosos de conhecer. Assim, num golpe de mágica, saíram do paraíso e foram correr mundo, mas sujeitos à morte.

O que é que isto significa? Que a morte é filha da desobediência, da curiosidade e da ambição. Mas Deus não fica melhor. Ele parece ter sido cruel. Não deu espaço a que houvesse uma explicação, um pedido de desculpa, um qualquer repor a ordem preestabelecida. Nada. A decisão é irreversível porque a lei está feita e não contempla excepções. Morre-se e não há nada a fazer. Trabalhar e ter filhos em dor, tal é a lei. Repor qualquer ordem seria impensável, visto competir ao rei, e só a ele, a tarefa de mudar o que quer que fosse.
Através de Adão e Eva aprendemos que viver é ser perseguido por uma condenação fatal. Por mais mundo que corramos, tudo o que fizermos, para onde formos, as lutas que travarmos têm sempre presente a morte como o fim, o limite necessário porque imposto.
Em consequência, a humanidade vive na esperança de reentrar no paraíso, observado segundo determinados parâmetros: se a pessoa sofre injustiça, um dia ira para o mundo dos justos, e quem o injustiçou não escapará ao castigo; se sofre de uma doença incurável e dolorosa, um dia irá para a pátria dos sãos; se vive sem alegria porque o mundo é mau, um dia irá para a pátria da felicidade. Se o mundo está um caos, se as pessoas não se entendem, um outro mundo espera todos aqueles que desejarem a paz e a luz. E tudo isto significa morte como caminho para a beatitude, a luz, ou a paz eternas.
Não somos capazes de pensar a felicidade sem a morte, não conseguimos mesmo dissociá-las. A nossa estrutura afectiva, tal como o amor entre Adão e Eva, onde interagem curiosidade, desejo, desobediência, entrega e procriação, manifesta-se através da representação que temos da morte.

Os contos remetem-nos para uma estrutura idêntica, revelando a necessidade de morrer para conquistar, ou dar algum sentido à vida. Tomemos o exemplo concreto de Branca-de-Neve, onde a morte se apresenta segundo quatro aspectos:
Primeiro, a mãe que morreu (tal como em A gata Borralheira; no conto As Fadas, é o pai), o que representa a morte enquanto aniquilamento. Trata-se de uma morte como corte afectivo radical, o que iremos ver no item já a seguir.
Segundo, a expulsão de Branca-de-Neve do palácio (= expulsão de Adão e Eva do paraíso), sendo entregue a um caçador para que a mate na floresta, o que não acontece (Adão e Eva também sobrevivem fora do paraíso porque ainda não se expuseram aos escolhos da vida), representando a morte como algo bem perto e bem vivo, mas que ainda não age, uma presença que é impossível não perceber. Ou então, como diz o povo, “estive à beira da morte, mas ainda não foi desta” ou “escapei por pouco”. É a morte que espreita, que diz “estou aqui, mas ainda não chegou a tua hora”.
Terceiro, o envenenamento de Branca-de-Neve resultante de um feitiço, isto é, a morte enquanto interiorização, factor de crescimento, o repouso, ou como habitualmente dizemos “preciso de parar para pensar, para reflectir”, por outras palavras, é a morte que não é morte, mas um impulso que nos eleva para lá do comum, do terra-a-terra, contacto com o mundo dos mortos, ou com o que está adormecido em nós e que desejamos venha a manifestar-se. É também a morte como resultado da ingenuidade, exemplificado na astúcia do feitiço que consegue enganar a menina (tal como Eva cai no conto da serpente). É igualmente a procura do saber, do discernimento, da consciência, da lucidez.
Quarto, a morte terrível da madrasta, não mais que uma feiticeira má (tal como a ama, a quem a menina fica entregue após a morte da mãe, em A Feiticeira e a Pombinha). Esta morte significa punição, expulsão do mau para sempre. É a morte cruel no sentido de ser acompanhada de tortura e consequente pena de morte, como iremos ver separadamente no item n.º3.
Esta estrutura, a partir deste conto modelo, vai estar presente em outros, nomeadamente, A Bela Adormecida, que dorme durante cem anos vítima de um mau feitiço, por inadvertência sua e, ”No seu entusiasmo, nem sequer teve tempo de pegar no fuso. O que a fada má tinha anunciado, cumpriu-se e a jovem Princesa espetou a mão e caiu sem sentidos.” (PERRAULT, 1994, p. 7).
Ambas despertam através da presença e toque físicos (beijo = sedução e prazer que aniquilam a morte) de um jovem e belo príncipe. Isto significa que o amor é a única força que mata a morte, ou faz despertar para o verdadeiro sentido da vida; é triunfo, prémio pelo esforço e consequente maturidade. Por outras palavras, mesmo que morra o objecto amado, não morre o amor por ele.
O conto Branca-de-Neve resume assim as noções de morte que nós somos capazes de conceber: a morte que não representamos (anulação do objecto amado, simbolizado na mãe); a morte enquanto algo que nos persegue (os escolhos da vida, simbolizados pelas ocorrências na floresta); a morte-sono que imaginamos como mera paragem na vida (os fracassos e seus resultados, simbolizados na ingenuidade/ignorância) e a morte que não gostaríamos de ter (a morte solitária e terrível, simbolizada na madrasta). (Ver item n.º3, a) o lado que não perdoa).
Através dos contos, a criança (todos nós) brinca com a morte, vê nela um bem, seja ela um castigo para os maus (o que significa protecção), seja sono agradável para os bons, os quais, vencida a ingenuidade própria de quem está a aprender e a desenvolver capacidades de defesa, é fonte de prazer. A morte-sono termina com a consumação do amor, isto é, casar com o príncipe ou a princesa, como também em A Bela Adormecida. Podemos ainda dizer que a morte sexualiza o amor, não o encara como um estado de espírito sem entrega carnal, mas como um sentimento singular para o qual convergem o coração, o corpo e a natural procriação.
A criança identifica-se facilmente com o lado bom, e ao fazê-lo assume o seu papel de futuro pai/mãe. Assim, a morte não é castrante, pelo contrário, é superlativamente o castigo dos maus: anulação. Afasta-se do lado mau, com o qual sabe que tem alguma semelhança mas que, através do desenrolar do conto, aprende a combatê-la a fim de escapar à morte, ou seja, ao castigo. Assim, morte é deixar de ser uma coisa, no sentido de existir, para que outra se manifeste, totalmente diferente. A morte revela opostos: fada boa, impulso vital, força para o bem, concretização do amor, protecção a todo o momento, vigilância; fada má, impulso para a destruição, força para o mal, inveja e ódio, sedução e mentira, desprotecção.
A morte é, assim, uma realidade com a qual a criança vai ter que viver, realidade essa inquestionável. Mundo de binaridade tipo bom versus mau, bonito versus feio. Note-se que a personagem principal dos contos é pobre ou rica, não há meio termo. É uma personagem que tudo desconhece e que, ao ser lançada na floresta, depara com escolhos bem complexos dos quais precisará de inteligência, perícia, capacidade de sonhar e alguma magia para os sobrepor como em Jorinda e Joringuel. O bem será a vitória sobre os obstáculos, vencendo o mal e a morte.
Numa leitura um pouco diferente, não será errado afirmar que a madrasta, que expulsa Branca-de-Neve do palácio, representa o papel de Deus que expulsa Adão e Eva do paraíso, neste sentido: expõe a criança aos escolhos, aspecto fulcral para o seu desenvolvimento, ainda que tal possa trazer a morte.
Na Natureza, é a ave adulta que empurra a jovem cria do ninho, expulsando-a a fim de perder o medo e voar livremente. Se não conseguir voar, cairá esborrachada contra o chão e morrerá. Para a criança, o mundo lá fora é representável pela escola, que a espera “extraindo-a” do lar, facto que tão necessário é ao seu desenvolvimento.
Branca-de-Neve recebe as advertências dos anões, conhecedores dos segredos da floresta, mas nem por isso lhes obedece. Promete fazer o que eles dizem, mas não faz. A floresta é por demais atraente apesar dos escolhos, tal como em O Capuchinho Vermelho e como o Éden, que é belo, mas contém a serpente que seduz e engana Eva, veículo de expulsão.
(Continua)

Barbara Diller