sexta-feira, dezembro 26, 2014

NATAL OU A FESTA DA ENCARNAÇÃO LIBERTADORA



            A liturgia diz-nos que o Natal celebra o nascimento de um messias, ou um salvador, anunciado há muito nas Escrituras. Numa linguagem actual, ele seria o líder espiritual enviado por Deus, o ser superior que viria consolidar a promessa de libertar o seu povo da opressão, um ser acima de todos os seres, o super-homem.
            Outrora, com Moisés, houvera uma primeira libertação que consistiu em deslocar as doze tribos, que ainda não são propriamente um povo, para o Monte Sinai, uma terra inóspita.
Essas tribos, porque movidas por um natural sentimento de esperança, certamente sonharam com um novo paraíso, uma terra de abundância. O que aconteceu, porém, foi o contrário, e a esperança depressa se desmoronou, a ponto de surgirem revoltas entre as tribos e no seio das mesmas. Alguns chegaram a pensar que a escravatura era preferível à liberdade, pois com fome dificilmente a liberdade faz sentido, e no Egipto, embora escravos, não lhes faltava o alimento indispensável à vida.
Esta questão, interessante, tem-nos acompanhado ao longo dos séculos: escravatura de estômago aconchegado ou liberdade com fome! Como equilibrar o prato da balança de ambos os valores, a liberdade e os bens materiais, no complexo agir do quotidiano!? Se faltar a esperança, o grande móbil das acções, caímos perdidos na desilusão e tornamo-nos construtores de maus pendores, donde o pior é, sem sombra de dúvidas, a subjugação ao opressor - os Hebreus duvidaram do seu Deus libertador, construíram um bezerro de ouro, ao qual se submeteram na fé e adoraram em orgias.
Todavia, o novo libertador não precisaria de transportar o seu povo para outra região, separar as águas, realojá-los noutra montanha, adaptá-lo a outra geografia mediante outros fenómenos. Agora, era esperado que libertasse o seu povo do invasor, o Império Romano. Seria rei, seria líder político e seria líder espiritual. Já não é o libertador à semelhança do êxodo, da condução de uma massa gigante de gente para uma terra identitária.
Contrariamente, este novo libertador, o Messias, toma o seu povo como exemplo da humanidade, conduzindo-o a uma viagem introspectiva, e com ela a uma nova forma de se pensar a si próprio. O povo escolhido não pode esperar que caia do céu um novo maná. Ele precisa de repensar a sua fé, no sentido da universalização da máxima de que Deus é Pai da Humanidade.
Ora, se nos ativermos no complexo e trivial mundanismo da política, complexo porque é nela que se jogam os dados dos interesses, trivial porque, em face da complexidade do espírito que nos define, ela constitui-se em curriculum onde construímos leis que nos vão emancipando da força do mais forte, aspecto ainda tão vergonhosamente elementar da nossa existência, a Encarnação de Jesus veio despertar para um novo conceito que viria a elevar a humanidade a um expoente jamais ultrapassado: o conceito de Pessoa.
Assim, quando falamos de Natal, a que é que nos referimos? A um grande profeta? É incontestável. Mas só isso? O profeta veio elevar a humanidade ao conjunto das pessoas de todo o mundo: judeus e pagãos, gregos e romanos, homens e mulheres, adultos e crianças. Todos são pessoa na medida em que são igualmente caminheiros nos trilhos que conduzem a Deus, sujeitos a semelhantes vicissitudes. Mas não só. A pessoa sobrepõe-se ao magro conceito de religião, não lhe é submissa.
A pessoa, o ser que muito ama, ou esta humanidade, é capaz de ascender a Deus mediante a sua história e apesar da mesma. Há na Encarnação uma mudança radical desse conceito. Isto é, se Deus se manifesta na História, nós podemos mudar o seu rumo, pois compete-nos a tarefa de conduzir os seus desígnios, porque temos a nossa quota-parte de responsabilidade, não somos marionetas.
Isto poderia acontecer sem a Encarnação? Numa humanidade que se procura a si própria, que reclama por um sinal, certamente que não. Entre valores ainda periclitantes, enquanto valores e enquanto vivência dos mesmos, as cristologias que os evangelhos nos despertam são reveladoras de um Messias que, também Ele, precisa de experimentar a humanidade ou a finitude, para através dela mostrar o caminho para uma nova possibilidade: o Reino de Deus. 
Assim, o Cristo também se mostra, também tem corpo, um rosto, é tangível e conhecido. Por seu intermédio, mansuetude impõe-se como valor.
Se existe a incontestável necessidade de ascendermos a Deus, também o Seu filho superior nos mostrou a necessidade desse Deus se nos revelar por seu intermédio, a fim de sermos conduzidos por uma Encarnação superior. Não é Jesus em carne e osso que tal nos revela, mas o divino que nele se manifesta, na revelação de que a natureza humana é capaz de ascender a Deus e, simultaneamente, ser Sua testemunha.
Assim, a humanidade não mais será o conjunto dos condenados, fatalmente submetidos a um sofrimento inato, manipulado na trama dos interesses da política inescrupulosa, nem na tensão permanente entre classes, mas das pessoas, na medida em que todos e todas transportam em si a chama do Deus libertador. Não é o Império Romano da História que nos interessa, embora alguns oficiais do Império tivessem fé a ponto de maravilhar Jesus. A libertação não vem pelas armas, mas pela paz.
O Natal não é uma mensagem do outro mundo, do astral ou do além; o Natal não faz parte do pensamento mágico onde tudo se transforma, sem intervenção do humano ou em contraste com as Leis da Natureza. Também não é um discurso aprisionado num templo, numa confissão ou em qualquer discursividade fora do nosso comum raciocínio. O Natal não é um transe mediúnico.
O Natal é a maior libertação jamais concedida por Deus à humanidade, porque este profeta é o profeta do amor por excelência, e maior que o amor não há.
Por isso Jesus teve a autoridade única para afirmar a relatividade, a inconsequência, a opacidade do nosso pensamento. Mas também nos mostrou como o mesmo, exactamente o mesmo, movido em outra direcção, no móbil de outros interesses, pode conduzir ao maior expoente de liberdade jamais imaginado.
Já não somos nós que queremos ser deuses a partir de imperadores inesquecidos na imortalidade terrena que a História se encarrega de perpectuar, ou portadores de grandes capacidades espirituais; já não queremos ser deuses dos impérios ou da sabedoria, quais magos do Egipto. Agora é este Jesus quem nos convida a outra realidade infinitamente mais sublime: sermos protagonistas do amor de Deus.
A vida não é uma tragédia. Ela é caminho para um horizonte de esperança, não saudosista de um paraíso perdido, mas de Pessoas perdidas na alegria da certeza de um paraíso por encontrar.
A simplicidade da manjedoura coincide com a necessidade emergente de um amor universal que, com este profeta, ultrapassa as fronteiras de Israel, mas é com a sua pré-história que esta história maravilhosa começa. Vivemos o encanto de um conto que ainda não vai a meio. E este judeu ainda tem muito que contar…


Margarida Azevedo

terça-feira, dezembro 16, 2014

A VIRTUDE


            A virtude é um tema filosófico, longamente desenvolvido por Platão, posto na boca de Sócrates, no seu diálogo com o sofista Ménon. Não é um tema da teologia dos quatro evangelhos.
            Os grandes temas dos evangelhos são o arrependimento, pregado por João Baptista, e o amor, por Jesus. O bem não está do lado dos virtuosos, espelhado nos códigos de honra e na sabedoria, como defendiam Sócrates e Platão, mas dos que se arrependem ou muito amam. No helenismo tem uma conotação ética e política e reflecte-se na vida da cidade, para os segundos é salvífico e reflecte-se na conquista do Reino de Deus.
Para o filósofo, a virtude fala-se na agora, onde se discute a vida da polis, objectivando o aprimorar da democracia, onde o sofista, se esmera arte de bem argumentar. Para o crente há duas opções diferentes: profundo exame de consciência, resultado de um ascetismo rígido mediante o isolamento, ou então viver em sociedade, participar em todas as suas actividades, conviver com todos, honestos e pecadores, movido pelo muito amar.
Para a filosofia e para a sofística, o grande debate baseava-se na problemática intransponível de saber se a virtude é ou não transmissível pela educação, isto é, se é matéria pedagógica. Parece que Platão não deu conta do recado, pois os homens honrados da cidade não conseguiram transmitir a virtude aos filhos, e porque filhos de homens honrados eram viciosos.
 Mas não só. Há um elemento de capital importância: a vontade. Ser virtuoso é uma coisa, querer exercê-la é outra. E porquê? Se medirmos acto versus benefício, logo à partida temos qualquer coisa como isto: “Para quê esforçar-me por tocar flauta primorosamente se o auditório não quer ouvir flauta, ou se não tem sensibilidade artística? Ou então: “Eu não vou tocar flauta porque não quero, não me apetece.” A virtude não é uma acção missionária ou sacrificial, menos ainda um acto de caridade em que o virtuoso exerce a sua virtude para mostrar como é feliz, tomando-se a si mesmo como exemplo para os demais cidadãos, isto é, para fazer despertar sentimentos e sensibilidades em quem os não tem. O virtuoso vive a sua virtude como superior aos demais homens da cidade. É um privilegiado da Natureza, um abençoado pelos deuses, não tem que se misturar com os demais porque já os superou.
Qual o papel da educação? Eis o problema. Do lado dos sofistas, temos qualquer coisa muito interessante: só aprende quem quer, e ensinar cobra-se. Com isto, para o conceito de virtude deixa de ser importante o inatismo, por um lado, ou então este só é desperto pelo acto educativo, por outro.
Assim, para quem a quer exercer, a virtude é um acto volitivo: para o rico, que a pode pagar, é uma espécie de benefício social; para o pobre, que não pode pagar as lições, nem tão pouco chega a saber se é virtuoso, pois como saber se é bom em Gramática se nunca teve oportunidade de a estudar?
Pedagogicamente, se repetir muitas vezes as técnicas da execução de flauta, o indivíduo pode tornar-se exímio. É isto a virtude? Para o filósofo não. Ela será sempre o individual inato, aquela particularidade muito especial que só aquele/a possui. Mas é esta a matéria-prima que faz girar o mundo? Para o sofista, não. Para o filósofo, ela é a outra natureza. O diálogo está em aberto até hoje.
Saltando uns séculos, Rousseau acreditava que o homem nasce bom, é a sociedade que o corrompe. Por outras palavras, nascemos todos virtuosos, porém, ao longo da vida estamos sujeitos a perder a bondade, a honra e as demais virtudes, em consequência das más influências. Assim, contrariamente aos filósofos gregos, o inato é uma estrutura tão frágil que é apagado do indivíduo na sua natural vivência em sociedade. O melhor seria, de facto, isolar-se, não se dê o caso de perder a virtude.
            Para o senso comum, a virtude tem sido encarada como uma natural apetência para os actos bons, confundida com a índole, o bom carácter, uma questão moral, portanto; a tendência para o mal, actos bélicos, o rancor, a inveja são manifestações da sua ausência.  
De um ponto de vista etnográfico, o povo designa-a de forma muito abrangente. A massa de pão, quando bem finta, significa que tem virtude; o sal na comida dá-lhe virtude; o homem ou a mulher que tem o dom de curar e de adivinhar o futuro é um/a virtuoso/a. Tudo aquilo que acrescenta uma força à natureza espontânea das coisas é um acto virtuoso. Isto significa que o virtuoso é aquele/a que sabe manipular as forças da natureza.
Mas também há actos sociais virtuosos, logo agradáveis e justos - “ Em virtude da ajuda prestada, ofereço-lhe esta flor”; “Ele/a teve a virtude de se impor pela verdade.”
Associando tudo o que foi dito à temática da salvação nos evangelhos, foi construído um Jesus paganizante, excluído da sua religião, o Judaísmo, e alheio à sua natural mensagem universalista: o Amor. Por que não falou Jesus da virtude? Os autores dos quatro evangelhos, teólogos judeus, aludiram a um Deus que se manifesta na História, palco de grandes dissensões, guerras, ódios e invejas. Porém, é com esse material humano, porque só possui esse, que Deus obra todos os seus feitos. A salvação de Jesus vem para estes, esta Humanidade e não outra, mostrando-lhe que um reino grandioso a espera na medida em que, apesar do muito errar, pode ser feliz.
            A teoria desculpabilizante de grandes manifestações guerreiras, em nome de um suposto bem, justificou a separação dos seres humanos entre naturalmente portadores de dons deificantes, graças infindas, e desgraçados, isto é, indivíduos fora da graça de Deus. Ora, isso não é matéria dos evangelhos. Não há neles a divisão entre beneficiados e desgraçados, judeus e gentios, homens e mulheres, crianças e adultos…
            Jesus não veio para alterar a natureza humana, criticá-la, rebaixá-la; não veio para valorar os dotados de grandes capacidades artísticas, os honrados homens e mulheres da cidade. Pelo contrário, veio revelar o quanto isso tem de aparecente, mero verniz, e que as vestes honrosas, tal como os sepulcros caiados por fora, podem esconder grandes perturbações e sujidade.
            Se Jesus veio revelar alguma coisa, foi os pontos fortes dos fracos: a mulher que unge os pés de Jesus e os seca com os cabelos (Lc 7:44-50), a fé do centurião romano (Mt 8: 5_13; Lc 7: 1-10)., o óbolo da viúva (Mc 12: 41-44), etc. Com isto, curiosamente para a nossa ignorância, os evangelhos não são um manual de virtude, mas um caminho para atingir um reino onde o que lá existe só Deus sabe. Apenas sabemos que é um reino onde o sentido que temos das coisas não faz sentido nenhum. Que importância tem a virtude do tocador de flauta para um reino de melodias jamais imaginadas?
            É certo que é difícil ler os evangelhos fora das crenças e do modo como se está na fé, no entanto, se não houver um esforço no sentido de emancipar o texto e de o ler com a lente da crítica textual, dificilmente se perceberá e atingirá o alcance do mesmo.         
Nos evangelhos, é posto na boca de Jesus que este não gostou que lhe chamassem bom porque, no seu dizer, só Deus é digno de tal epíteto (Mt 19: 16-17). Isto significa que Deus é bom na medida em que só Ele é a Bondade.
Assim, não são os virtuosos que conquistam Deus, porque Deus não se conquista pela virtude, nem o Seu Reino é um prémio conferido aos actos virtuosos. O Reino de Deus não é um podium pois não está a concurso; não é a morada dos laureados, dos bons tocadores de flauta, nem dos que aparentam o bem.
Os evangelhos fazem da salvação uma sociologia da acessibilidade, isto é, salvar-se está ao alcance de todos, bons e maus, o que significa que é independente dos actos cometidos, o que é muito estranho para alguns. É natural, esquecem-se de que o amor, no nosso mundo, é sempre um acto dependente do modo como se é capaz de ultrapassar o muito odiar. Amar é sempre superar qualquer coisa que era desagradável. É dessa superação que o Reino de Deus aguarda. Com isso, entramos na fé inabalável
Para João Baptista era condição sine qua non o arrependimento (Lc 3:7- 9), traçando um caminho de rigoroso ascetismo; para Jesus era o amor (Mt 22: 34-40¸1Jo 4:20), traçando um ideal de alegria e de festividade num reino para o qual todos estão convidados e onde nos espera um banquete (Lc 14: 15-24; Mt 22: 1-14) e um trono de glória (Mt 25: 31-46). Compete-nos escolher ou articular ambas. Os ascetas rejeitam o mundo e isolam-se, os outros vêm na História a trama ou o palco da sua natural evolução. No entanto, a teologia do arrependimento e a do amor não têm por que ser incompatíveis. São ambas necessárias, pois uma justifica a outra como a frente e o verso de uma folha de papel.
Na sua pluralidade interpretativa face às comunidades a que se dirigiam, os evangelhos não fecharam portas, mas abriram universos de esperança. Nada têm a ver a feitura de uma obra-prima. O amor universal expresso nos evangelhos não é um discurso helenista, mas o apelo a um sentimento cósmico, não representável figurativamente. Não há barro que o molde, não há som que o faça soar nem palavra que o descreva.
 A virtude de uma bela estátua não é confundível com o muito amar, porque o amor não é passível de ser encerrado nas suas formas. O enquadramento do amor, nos evangelhos, não passa por uma estrutura aprisionante, moldável por um artífice, tal como a salvação não é redutível a um ramo de louros.
Não havendo uma apologética da virtude, a salvação consegue-se pela da fé e pelo muito amar. Nisto se constitui a escatologia dos quatro evangelhos, um universo de esperança sem fim.
No entanto, as nossas virtudes podem ser ferramentas, caminhos para um fim determinado, talvez mais um fito, isto é, um objectivo que se almeja. Elas são perícias que vamos desenvolvendo ao longo das nossas existências. Porém, o mundo que é o Reino de Deus, estranhamente ou não, inaugura outros valores. Ao lembrar aqueles que nada têm, nem riqueza, nem família, nem honra; mas também aqueles que, embora os possuindo, não sabem conferir-lhes a devida relatividade, ou então que se aprisionaram e vivem fechados e circunscritos no perecível.
Os que não são abençoados pelos deuses, que não sabem desenhar um traço ou moldar a natureza, quer no bronze quer no barro, têm nos evangelhos a esperança em palavras de conforto.
No mundo helenístico, a beleza das formas e da harmonia dos sons agradavam aos deuses e à cidade. Eram virtudes levadas ao rubro. No judaísmo de Jesus, Amor agrada a Deus, que, por muito nos amar, nos convida a todos para uma grande festa de alegrias inefáveis, o Banquete.

Margarida Azevedo

Consultar:
PLATÃO, Ménon


 Bíblias consultadas para este artigo: trad. de J. F. de Almeida; Bíblia de Jerusalém.