terça-feira, janeiro 26, 2021

PARA ONDE CAMINHAMOS

E mais uma vez o mundo se vestiu de luto. É mais uma vez entre tantas vezes. A natureza há muito que se manifesta, aflita, num grito dilacerante. Mas os humanos têm sido insensíveis. Os interesses económicos e ideológicos têm-se imposto com veemência, desprezíveis e vis. Não é apenas uma pandemia que está a derrubar vidas, é o cenário desastroso em que a mesma está a acontecer. Entre alterações climáticas irreversíveis, espécies a desaparecer, lixo acumulado sem tratamento, poluição dos rios e oceanos; insegurança no trabalho, empobrecimento galopante, enriquecimento fácil de um grupo cada vez mais reduzido, miséria humana crescente; refugiados, terrorismo religioso e político; insegurança social, famílias desmembradas, obscurantismo, intrigas, suborno, manobras políticas e económicas dúbias, falsa democracia; educação cada vez mais deficitária, crescente analfabetismo, universidades a moldarem mentes, formatização do pensamento e consequente falta de liberdade de expressão; leis só no papel, o Estado cada vez mais forte com os fracos e cada vez mais fraco com os fortes, o peso de estar nas mãos de alguém, impunidade dos desfalques ao Tesouro Público, as desculpas esfarrapadas, etc.,etc. O ser humano tornou-se alvo de desconfiança. Tudo o que se diz ou faz é observado, analisado, dissecado ao mais ínfimo pormenor. A pessoa não interessa, e a pandemia mascarou, “desinfetou”, afastou ainda mais. Todos somos portadores/transmissores de algo perigoso, todos imagem da morte. Ninguém é pessoa nem é gente, nem se sabe o que é, é 5467439865. Profissionalmente, cada um vai para onde o mandam. Permite-se-lhe que tire um curso de Línguas e Literaturas Modernas, mas já se sabe que vai vender telemóveis; licencia-se em Engenharia Civil, mas já se sabe que vai ter que emigrar; tirou um curso de enfermagem, mas vai para Inglaterra, caso lhe apeteça ter dignidade; tirou um curso de Teatro, mas vai servir à mesa em bares e restaurantes. Para onde, de facto, caminhamos? Passemos um olhar atrevido sobre ténues salpicos de fé, isto é: como enquadrar Deus neste cenário, que universo de esperança, que futuro nos espera? Primeiro, há uma interrogação prévia: o que é o caminho? Há um trajecto diferente, particular, singular, único. É o historial longínquo de uma existência perdida na noite dos tempos e que, por graça divina, aterrou aqui e que nos conduz a reflexões de outra natureza: Qual o caminho que me é permitido fazer? Estarei preparado/a para as surpresas do caminho? Todas estas questões são por demais grandes e nós habitamos um mundo demasiado pequeno e limitado. O nosso alcance é curto. A preocupação com a saúde impõe-se acima de todas as outras preocupações porque caminhar é, efectivamente, estar saudável, mas não apenas a saúde do corpo, a da alma também. Porém, a situação pandémica que atravessamos está a remeter-nos para a noção de degradação da vida humana resultado do acumular de erros que não foram corrigidos, o que torna inevitável atracarmos aqui. Sente-se o desvalor do humano, a precaridade existencial do homem, o empobrecimento das acções inter-pessoais. Com o afastamento físico entrou-se noutra era. Irreversível? Não se sabe. Vive-se uma tensão entre a verdade e a mentira, entre a luta pela vida objectivando o enfraquecimento da morte, não apenas física, mas também da integridade da pessoa humana. Por outro lado, consequentemente ou não, há no ar uma noção de ressurreição urgente, aqui e agora, a imposição de outra dimensão existencial que glorifique este não-sei-quê que atormenta sem cessar. Vive-se a terrível questão: que tempo é este? ou então: que momento é este? O que é que de nós vai sobreviver? Para onde estamos a ser levados? Entrou-se na era do triunfo do paradoxo: o mundo inteiro está a viver o mesmo pesadelo, porém, nunca se viveu tão encarcerado, nem se morreu tão só, tão isolado, tão distante. Criaram-se muros, a humanidade exilou-se. Os computadores são a grande máquina isolacionista. Sentado/a sozinho/a numa sala frente ao monitor, o indivíduo tem a sensação de estar com o mundo. Mas o mundo é uma transmissão existencial de afectos, é o calor de sentir um coração abater que não o seu, sorrisos que se trocam. O mundo não é de plástico, é amor. Quanto à morte, assunto da ordem do dia, esta já não é cerimoniosa. Abdicou da mortalha, do mar de flores, dos acompanhamentos autênticas multidões, dos discursos clamorosos, das ovações, das orações complexas e demoradas, dos sentimentos dos presentes porque já não há presentes, já não há mesmo ninguém, nem as anedotas durante os velórios, as risadas e a célebre frase: ”Se precisar de alguma coisa, estou aqui.” Acabou-se, foi-se. A morte já não se festeja nem se chora; os corpos embrulham-se em sacos de plástico. Depois cremam-se ou vão para a terra. Está feito. A dor já não se partilha, isola-se. Ninguém quer saber. Surge o proliferar de teorias como cogumelos, cada uma com a resposta mais pronta, reclamando a verdade explicativa de todas as coisas que estão a acontecer. E o paradoxo vai triunfando: entrámos na era apocalíptica, para a grande maioria, ou na de uma espécie de limpeza existencial da humanidade, para alguns, ou então na de um castigo divino sem precedentes, para os apologistas dos infernos. Mas se assim é, porque não souberam prevenir? Porque não impuseram a sua sabedoria magnânima ao serviço da prevenção. “Ah! Mas nós fizemo-lo”, dirão, “só que ninguém nos ouviu”, esquecendo-se de que Deus conhece as intenções de todos. A nossa história está repleta de apocalipses, fins do mundo, castigos divinos, ira de deuses, demagogias religiosas de toda a ordem. Temos disso que sobra. O que falta é perceber que o amor incondicional pela pessoa humana ainda não é o móbil existencial unificador da humanidade, menos ainda das religiões. Está-se cada vez mais longe da universalidade do amor, e a prova é a degradação a que se chegou. O ódio inter-religioso, uma vergonha, é apenas uma parte, a pandemia, a outra, o seu duplo no corpo. É caso para dizer, a pandemia caiu na fraqueza de toda a gente. Como nos salvamos da tormenta? Tolentino Mendonça dá uma resposta: ”O que nos salva é um excesso de amor, uma dádiva que vai para lá de todas as medidas. É essa a bem-aventurança que nos salva. É esse assombro de amor que nos relança. Não é um acordo, um pacto. Isso é para os negócios, mas devemos saber que tal não salva um homem, não põe de pé um pecador, não traz um filho de volta, não sinaliza a infinita misericórdia de Deus.” p.155 (1) Pois não, mas traz um novo sentido à vida, quebra o gelo, torna fértil o solo mais estéril. O amor sem medida é o móbil que constrói e sedimenta o Reino de Deus aqui e agora, independentemente de tudo o que possa estar a acontecer. A vida corre voraz, está a escapulir-se por entre os dedos. E há tanta coisa para fazer, modificar, melhorar, transformar e poderá já não haver tempo. Estivemos demasiado ausentes. E nada há de pior que sentir que se está a ficar sem tempo, que se viveu longe da vida, isto é, há quem tenha vivido morto sem saber: não deu pelos filhos a crescer, não se deu conta de que alguém o/a amou, mas não permitiu que o amasse, que esbanjou o tempo precioso a reclamar que não tinha nada nem ninguém, não olhou para a natureza. Com que sentimento se tem vivido face à natureza, por exemplo? O escritor norueguês Karl Ove Knausgard, que escreve sobre as cenas banais da vida comum, aquelas de que se pode dizer que não se passa quase nada, partilha connosco as suas reflexões ao dizer:” …o que vou procurar na natureza é o sentimento de uma presença.”, tendo como base a máxima de que “…a vida quotidiana contém igualmente as questões mais fundamentais, que são, é claro, as mais simples.” (p.70) (2), Todas as coisas se mostram na emergência de serem observadas, porque olhar atentamente é uma forma de amor. O sentimento de uma presença é a descoberta da alteridade na grandeza da vida que nos rodeia. Que fizemos do nosso quotidiano? Como temos passado os nossos dias? Que importância demos ao que, só aparentemente, não tem importância nenhuma? Há quem se queixe da falta de tempo, mas que tempo? O que é o tempo? O grande paradoxo é não percebermos que nós somos tempo, não somos o tempo nem estamos no tempo, e é nessa condição que acontece a compressão do tempo. A nossa expansão está a retrair-se, os grandes objectivos da vida cessaram, os desejos, os gostos, os projectos, tudo se desmoronou: temos pouco tempo, igual a temos pouco nós para existir, expandir, crescer, alargar, superar e superar-se. Acumulou-se o não feito. Há uma sensação colectiva de que alguma coisa se está a aproximar. O que é que aí vem? Um gigante que nem nos vê porque, face ao seu tamanho, somos micro-organismos? A ignorância revelou-se, a fraqueza impôs-se e o medo instalou-se, e os gigantes aí estão: ……………. “Quem é que ousou entrar Nas minhas cavernas que não desvendo, Meus tectos negros do fim do mundo?” ……………… “Quem vem poder o que só eu posso, Que moro onde nunca ninguém me visse E escorro os medos do mar sem fundo?” (3) Quem somos? Somos vozes que tremem, seres habitados por uma força que se desconhece, que lutam pela descompressão e pela transcendência. Aguarda-se que o paradoxo faça o milagre da paragem rápida neste desconcerto do mundo onde o que não é se quer impor como o que é, e que já Camões cantava: “O recado que trazem é de amigos, Mas debaxo o veneno vem coberto, Que os pensamentos eram de inimigos, Segundo foi o engano descoberto. Oh! Grandes e gravíssimos perigos, Oh! Caminho da vida nunca certo, Que, aonde a gente põe sua esperança, Tenha a vida tão pouca segurança!” (4) Seremos loucos? Mas jamais poderemos deixar de o ser. Não se vive sem a loucura. É ela a nossa identidade, é ela a reveladora das grandes máximas e das grandes verdades, a impulsionadora de momentos de inspiração ímpar. No evangelho de Marcos, por exemplo, devemos ao louco a revelação de quem é Jesus: “Sei quem tu és: o santo de Deus.”(Mc 1: 24) (5) Há uma sabedoria na loucura, o soltar-se de um sentido que nos leva mais longe e nos faz compreender o que está perto. É importante destacar que esta revelação feita pelo louco está enquadrada entre a escolha dos quatro pescadores, primeiro Simão e André, depois Tiago e João, filhos de Zebedeu, e a cura da sogra de Simão (Mc 1: 16-19, 29-34). Assim, as revelações da loucura gravitam entre a escolha e a cura, porque é outra a sua natureza. Dito de outro modo, não é por ser-se escolhido, ou porque se é curado, ainda que milagrosamente, que se compreende o que está perto, mas por meio de outro sentido - os nossos trabalhos espirituais não são do nosso alcance -. Também não é um pagamento nem um gesto grato. Agir por gratidão é uma dependência, porém, não agradecer é uma falta. A revelação é inteiramente gratuita/livre e mora na casa da loucura (= o sentimento de uma presença quando se olha a natureza?). É o paradoxo existencial do Homem. Serão os demónios quem age por nós? Seremos nós que agimos por eles? Este tempo, nós, caminha para alguma coisa que ultrapassa a história. O mundo já foi visitado por tempos (pessoas) que marcaram a história com o objectivo de a transcendermos. São tempos que irrompem neste mundo de onde emergem coisas novas. São daimonions, à maneira de Sócrates, que nos habitam e que não são dizíveis pela linguagem científica ou da fé, mas por outra. Qual? Aquela em que algo fala através de nós. Procuramos uma qualificação para esse daimonion, mas sem sucesso. À semelhança de Sócrates, apenas sabemos que esses daimonions que falam através de nós objectivam uma libertação. É o outro lado do paradoxo, uma necessidade intrínseca de nos libertarmos através de algo totalmente desconhecido, e por meio de uma linguagem que se esconde. Talvez sejamos nós mesmos esse oculto, porque nós somos também daimonion, desconhecidos de nós mesmos. Precisamos de despertar para a vertigem das coisas simples, para as vozes ocultas/desocultas, revelação de uma única realidade, a vida. É nela que procuramos o amor como o móbil existencial. Para onde caminhamos? Caminhamos para a transcendência, para uma antropologia que se define pela fé. Caminhamos para a epifania do mundo como solo sagrado, representativo de Deus Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis. Caminhamos para a absolutização da alma, sacralização dos actos humanos identificados com Deus, como em espalho reflector encandeante pelo Sol. Caminhamos para a construção do mundo santidade divino puro. Caminhamos para o despertar da consciência, a luz, a vitória do bem querer. Isto é novo? Não. É isto que está connosco desde sempre, porque é eterno como eterno é o nosso daimon existencial. Margarida Azevedo Bibliografia citada: (1) MENDONÇA, J.T., Elogio da Sede, Quetzal, Lisboa, 2018, 10. A bem-aventurança da sede, A bem-aventurança que nos salva, pp.154-156. (2)Philosophie magazine, Plaidoyer pour la nuance, Karl Ove knausgard, “Je cherche le sentiment d´une présence”, Décembre 2020 Janvier 2021, Paris, n.º 145, pp. 68-73. (3) MARTINS, F., Ao encontro de Fernando Pessoa, Antologia, edições Asa, Porto Codex, 1987, p.77. (4) CAMÕES, Os Lusíadas, Porto Editora, Lda., Porto, 1974, Canto I, estrofe 105, p. 79. (5) Aconselho a leitura da perícopa na sua totalidade – Mc 1: 21-28. A tradução utilizada nas citações é de Dimas de Almeida, realizada no âmbito de estudos exegéticos no Grupo Ecuménico de Carcavelos.

domingo, janeiro 17, 2021

A EVOLUÇÃO DESTE PRIMEIRO QUARTEL DO SÉCULO XXI

A história, na qual nos movemos, é um vasto compêndio de guerras e lutas, todas impulsionadas por cobiça, inveja, interesses obscuros rumo, no dizer de alguns, ao progresso e evolução espirituais. É importante salientar que nem sempre venceram os melhores, os mais aptos, os mais astutos. Venceram os mais fortes, quer na força muscular, quer na astúcia das tácticas utilizadas, quer na retórica das palavras. As mais recentes conclusões científicas dizem-nos que, perante uma situação em que é preciso agir rapidamente, os mais dotados intelectualmente, QI maior, têm menor probabilidade de resposta satisfatória face aos que possuem um QI inferior. Talvez tenha sido essa a razão da queda desastrosa das grandes civilizações face à barbárie. Se essas civilizações se tivessem estendido até aos nossos dias certamente que o rumo da História teria, inevitavelmente, sido outro. No entanto, dos deuses humanizados aos humanos endeusados, poucos têm a coragem de dizer, temendo talvez o ridículo, que a evolução se mede pela capacidade de amar, objectivando uma paz estável, e não pelas vitórias nos campos de batalha; as benesses espirituais se conquistam por meio de um coração e de uma mente cuja inteligência é directamente proporcional ao desejo de Bem. Pelo contrário, a procura de melhores condições de vida, confundida com consumismo esbanjador, acompanha necessariamente a ambição levada ao extremo. Surge, consequentemente, o fabrico de novos produtos bem como novas apresentações dos já existentes, aliciando as pessoas a comprar o que não precisam. O importante é incutir a dependência, e com ela criar a falsa noção de necessidade. A felicidade já não significa ser feliz, ter saúde, amar e ser amado, ter fé, orar a Deus para agradecer ou pedir benesses. A felicidade, agora, resume-se a isto: acompanhar o progresso, isto é, consumir para estar integrado na sociedade e ser aceite pelo círculo em que se movimenta, encher-se de dívidas, andar a comprimidos para dormir, ansiolíticos e antidepressivos, desprender-se do valor que é a saúde e a vida, afinal vamos todos morrer, aniquilar o passado, desprender-se dos avós, dos que lhes transmitiram, ainda que reste o vazio de nada ter que substitua esses saberes, o repúdio pelo aprendizado de matérias que gravitem fora do alcance dos interesses profissionais, a despolitização atroz enfim. O que resta, então? O divã do psiquiatra, naturalmente. O sofrimento, aspecto perigoso da natureza humana (um indivíduo em sofrimento é capaz de tudo para se libertar da situação), conduz, obviamente, a excessos de toda a ordem, agravando, naturalmente, o consumismo escravizante. Ora o desejo insaciável de comprar é indício de que algo não está bem. Os apologistas do sofrimento como forma evolutiva exemplar, baseados na máxima de que não há ninguém que não sofra, fazem tábua rasa quanto ao facto incontestável de que o sofrimento aumenta a vulnerabilidade, as más tendências, nomeadamente a absolutização/relativização do tipo o céu é tudo e a terra é nada. Ora, a absolutização/relativização é um binómio patológico uma vez que torna a existência humana redutível ao esperar da morte para alcançar o bem definitivo no outro mundo. De facto, assim o mundo jamais poderá elevar-se a outras esferas, mais leves, mais filantrópicas, mais altruístas. O humano fica reduzido à sua situação de problema num cenário de condenação perpétua. Urge, portanto, entrar noutra gramática da vida, encetar outro léxico. Que esta vida é uma passagem, parece que é facto claro para toda a gente; que não há ninguém que não sofra, igualmente. Porém, a nossa existência não se movimenta no tudo ou nada, no oito ou oitenta. Há um sem fim de pormenores pelo meio, há a vontade, há o desejo, há o grito existencial que se evidencia, há o arrependimento, há uma consciência que se constrói quando algo se manifesta e desencadeia um não sei quê que nos faz recuar. Fazer da vida um caminho para a morte é um suicídio espiritual, tornar este mundo redutível um vale de lágrimas. Isso é a conversa do insensato que não consegue empenhar-se na construção de algo que valha a pena e, parco de afectos, desprovido de sentimentos, espera a morte como uma libertação. Todavia, ela liberta, efectivamente, mas aqueles que viveram para a fé, para a partilha, para a sede de caminhar com Deus, que ultrapassaram as suas falhas, os seus fracassos, que des-sofreram com o que, para muitos, seria a escola do sofrimento; a morte é libertadora quando a vida criou os moldes para que, chegados ao outro lado, este seja, efectivamente, um feliz continuar do trabalho que na terra começou; a morte é libertação para todos aqueles que, abnegadamente, se entregaram à causa da Humanidade, isto é, ao amor sem limites, ao infinito no finito dos nossos corações; a morte é libertadora para todos aqueles que se transcenderam na imanência do desejo do muito querem amar. Dizem alguns que até hoje não havia maturidade para se perceber os assuntos da espiritualidade, faltava, e falta, uma linguagem mais súbtil. Mas o que é a maturidade e que linguagem é essa? Não absolutizemos as nossas necessidades. Se não há, então trabalha-se com o que há, porque o que há já é bastante, só não o é para aquele que vive preocupado com o que não há. Nos meios espíritas está tudo explicado. Por exemplo, perceber o Pentateuco de Kardec é uma aventura intelectual de tal forma exigente que não é para qualquer um. Por isso é que há um punhadinho que entende mesmo, do tipo uma coisa como deve de ser, que faz parte dos que atingiram a maturidade e o léxico: explicam tudo porque sabem tudo por brilhantes intuições, e se as não têm, há sempre uma psicografia que tem; esse punhadinho responde, tem resposta pronta para tudo, tem tudo muito claro porque o punhadinho fala com Espíritos muito especiais, a que só o punhadinho tem acesso. Habitualmente esconde-se atrás das reencarnações, ou seja, um passado inteiramente desconhecido, por graça divina, acrescente-se, mas que é a grande revelação do punhadinho que diz coisas muito sapientes, do lado de lá, que resolve tudo o mais do lado de cá, com grandes máximas moralistas, normas, preceitos, regras, leis, comportamentos, pedagogias, todas relativizadoras, todas culpabilizadoras, todas minimizadoras da natureza humana, enfim. São os que atingiram a tal maturidade, alguns até viveram no tempo de Jesus Cristo, tal como os Espíritos que com eles falam tu cá tu lá, que se lembram de tudo e que, como foram seguidores presenciais de Jesus Cristo, são uma autoridade na matéria. Há mesmo quem tenha chegado a ser membro do Sinédrio. Mas, continuemos. Submersos num vazio de que não se sabe como sair, resultado do desenraizamento judaico-cristão de que naturalmente somos herdeiros, entrou-se na era da desautorização e do vale tudo. As grandes ideias humanistas do passado e os grandes ideais não foram continuados. Tem-se hoje a sensação de que se quebrou a linha de continuidade da História das Ideias. Os fiéis, levados por falsos conceitos de espiritualidade, estão de tal modo vulneráveis que acreditam em tudo, basta para isso que alguém, munido de esperteza aguçada, lhes fale ao coração com palavras bem articuladas, pensamentos cheios de compreensão, numa retórica argumentista onde tudo está pensado ao mais ínfimo pormenor. No caso dos espíritas, a situação piora tão simplesmente porque deixaram de estudar os livros da Codificação, além de que os poucos que o fazem tornaram-se fanáticos, na sua maioria. E ficamos na mesma. Estes novos ventos, os da ignorância como virtude, gerou verdades absolutas como nunca se viu, comportamentos sociais perigosíssimos, em nome de Deus, na esperança de que há um prémio no outro mundo. Com isto, os avós são velhos parados no tempo, as ideias das Luzes, da Antiguidade Clássica ou da Renascença estão ultrapassadas, mais, abafam-se; são antiquadas, os seus representantes um bando de lunáticos. De facto, a “profissão” de livre pensador sempre foi uma aventura, hoje mais ainda. Nesta incultura, o resultado é este: p. ex., o padre António Vieira agora passou a racista, S. Francisco de Assis é um pobrezinho tonto, Gandhi uma personagem de contos, Teresa de Calcutá a grande santinha. O enquadramento, o contexto que deu razão ao seu trabalho, a lutas que travaram, a coragem que foi necessária, a entrega incondicional ao bem ao próximo, o desapego, enfim, não é referenciado. Onde está então a tão almejada maturidade do século XXI? Quando alunos do nosso brilhante sistema de ensino, às portas das universidades, diziam há bem pouco tempo que os presuntos vêm do supermercado, tal como as laranjas e as sapatilhas para as actividades desportivas, isto é representativo da evolução do nosso século. Já agora, os bebés vêm de onde? De Paris, pois claro! É urgente combater esta sensação de que tudo cai do céu, sem a mínima noção do que é o trabalho, do que significa produzir alguma coisa que vai ter um preço e que vai fazer parte de um sistema de trocas complexo. De igual modo é fundamental saber que o campo do religioso existe para tornar a humanidade melhor aqui e agora, não para projectar os homens e as mulheres para o mundo dos anjinhos. Deus é Deus e nós somos nós. A fé é perceber isso, racionalmente, mas é, e muito mais, como uma antropologia, uma sensibilidade para lá do tangível. É uma experiência do foro existencial rumo a uma escatologia que se define, se assim podemos dizer, de amor. Se a fé não rumar ao amor não é fé, mas força confusa e cega que cai redonda no egoísmo asfixiante. Por outro lado, a crescente quão preocupante massa de pobres, ou melhor, de míseros, a praga de sucata humana, rendidos à iletracia que lhes foi imposta, porque a educação está cada vez mais cara e selectiva, não pensa porque tem a barriga vazia. Em primeiro lugar comemos e só depois pensamos, temos fé, acreditamos seja lá no que for, cantamos, poetamos. Não há ética nem moral de estômago vazio, nem direitos nem deveres, nem justiça nem piedade. É como o ar e a água. Sem ar ninguém respira e sem água ninguém vive. Então parece que é por aí que temos que começar, pelas coisas mais simples, que só o são aparentemente. Se os grupos religiosos não mudarem rapidamente os seus discursos dos pobrezinhos, se não educarem para uma vida com condições materiais satisfatórias, baseadas no conforto, entenda-se, dignidade, continuarão a alimentar uma falsa teologia dos escolhidos, a representarem Deus como o prolongamento das suas fantasias discriminatórias e, pior do que isso, a ensinarem que Deus é mais amigo dos pobrezinhos ou, dito de outro modo, só se ama verdadeiramente Deus na pobreza. Ora Deus é pai da humanidade inteira. As condições sociais e económicas são trabalho nosso. Se tomarmos Jesus como exemplo, temos o ensinamento gratificante e consolador: “Vai e não voltes a pecar”, o mesmo é dizer, faz a tua parte cá deste lado com tudo o que te rodeia. Religião, espiritualidade, fé não podem pactuar com interesses obscuros, mas serem organizações de discurso e prática transparentes. Muitos templos estão vazios para dar lugar ao enchimento transbordante de outros. Não numa regra de substituição, mas numa repulsa do estagnicismo, numa revolta silenciosa aos atavismos dos lugares marcados, fartos de estar ao canto, de serem nada o ano inteiro e serem tudo apenas no natal. Outros porque lhes é dado o acesso a falar com os Espíritos. É a ânsia do desconhecido, de um conforto de outro mundo materializado num médium; ou então a esperança de ter por perto o ente que já partiu, ou falar com o anjo da guarda para zelar pela vida todos os dias; ou ainda, perante o grande desconhecido que é a morte, saber se existe mesmo alguma coisa do lado de lá, como é e o que diz. É lamentável. Dos templos antigos vazios, aos novos movimentos cheios, há um traço comum: não há maturidade alguma, ninguém até hoje percebeu nada de nada, e continuamos num eterno recomeço. O que há é um sentimento de urgência num mundo que se tornou demasiado apressado e construtor de castelos no ar onde emerge uma insaciedade descontrolada a rumar ninguém sabe para onde, numa humanidade infantilizada. Margarida Azevedo

sábado, janeiro 09, 2021

SOB O CÉU AZUL

Quando nascemos entramos num túnel que não sabemos aonde vai ter nem aonde nos leva. Esse túnel que percorremos durante umas escassas dezenas de anos, para os que habitam neste plano durante esse tempo, e ao qual chamamos vida, também ele nos percorre e desafia. Esse túnel também precisa de nós para ser habitado. O habitante e o habitado necessitam-se, precisam-se mutuamente, interagem, encontram-se. O presente, que tantos rios de tinta faz correr quando se fala de crise, valores, insegurança, corrupção, e tantas outras coisas que nos estremecem, faz-nos sentir que a vida se relativiza perante um conjunto de manobras cujo objectivo é fazer esquecer uma infinidade de coisas boas, sim, coisas boas, que acontecceram em todas as épocas. As grandes vozes defensoras do sofrimento como a melhor e única forma de evolução, perigosas quão fanáticas, e as primeiras a lutar com todas as forças contra o seu próprio sofrimento, o que é muto natural, anti natura seria não o combater, mais não são que forças negativas que retratam este planeta como exclusivamente um mar de dores sem fim a partir do chavão “vivemos num mundo de provas e de expiações.” Só que isso significa que há provas e expiações, não diz que só há provas e expiações; há sofrimento, mas não há só isso. O túnel não é apenas um espaço limitado e longo, é também uma protecção face a situações indesejáveis, bem como uma forma mais rápida e segura de chegar ao outro lado. Viver aqui também é uma forma de protecção face a outros planos mais complicados, chamemos-lhes assim num português doce. Sempre houve, anonimamente, e não apenas aquelas figuras de referência mundial que transformaram a fé em figuras de cartaz, gente que, pelo muito amar, igualmente muito contribuíu para o alívio do sofrimento do próximo. Há que perceber que dentro do túnel circulam vidas de tantas etiologias que nem fazemos uma pequena ideia. É um lugar pluralista onde se entrecruzam arqueologias e objectivos de tal forma que estar lá dentro não retrata a natureza de todos como semelhantes. Pelo contrário, o que têm em comum é apenas habitar o mesmo espaço. Lá dentro, a queda da democracia, o seu fracasso e os falsos conceitos e falsos direitos que a ela foram anexados, colocou a humanidade no caminho recto para a opressão como forma única e exemplar de, hipotética e saudosistamente, repor uma suposta ordem plena de virtude, tão virtuosa quão rígida. Só que o túnel não suporta o retrocesso, precisamente pela sua natureza própria. Ao longo dos tempos produziu ideias, lutou contra as opressões, gerou valores, desenvolveu pedagogias, tudo para minimizar a vulnerabilidade dos mais fracos, limitar a tendência para a criação de super-poderosos. Com sucesso? Talvez não como o que desejaríamos, mas com muitas vitórias pelo meio. Não um dos maiores fracassos, mas o maior de todos, é demolir a democracia. O resultado está à vista desarmada. A eleição dos líderes políticos não se baseia em alternativas a uma forma de governação, os eleitores já não votam porque ouviram debates televisivos esclarecedores ou leram jornais objectivos e isentos, ou simplesmente porque são fiéis a determinada corrente política que, historicamente, lhes diz alguma coisa. O eleitorado vota naquele que prometer “endireitar isto tudo”, lhe garantir um trabalho (?), é provável, ainda que a preço miserável (Oh! Mas que sorte encontrá-lo, foi Deus); acabar com a corrupção, com a vagabundagem, os homicidas e os incendiários, isso sim, é verdadeiro empenho. Só que isso não tem partido, nem devia fazer parte de programa eleitoral algum. Como que querendo absolver-se, ou representando o papel de quem está de fora, os políticos fazem esquecer de que absolutamente todos, independentemente da cor política, devem estar empenhados na construção de uma sociedade mais justa, com regras que todos devem cumprir, independentemente de raças e etnias, e cujos exemplos têm que vir de cima. Como chegámos até este caos? Foi muito fácil. Os cidadãos, já não se lhes chama povo, preocupados com a insegurança, descuram o papel das grandes decisões políticas, laborais e sociais, remetendo-as para a classe política. A insegurança tornou-se na maior arma do sistema, o crime convém à política e até à religião: à primeira, porque lhe garante completa autonomia para agir como quiser, implementando um sistema baseado na sobrevivência como uma alternativa virtuosa, do tipo pobres mas seguros, o que nem isso acontece; à segunda, porque garante templos cheios, donativos generosos para agradar aos deuses, e garantir uma felicidade qualquer num reino qualquer. A vagabundagem transformou os líderes da política e da religião em construtores de promessas vãs, retóricos, pronunciadores de belos discursos, acesos manipuladores das palavras (onde é que nós já ouvimos isto?). Os líderes honestos, políticos e religiosos, porque os há, além de silenciados são vistos como indesejáveis, os tais que não estão a perceber nada de nada, não alcançam que a vida está em grandes mudanças e que, na sua teimosia, estão a ficar para trás porque desactualizados. Lutar pelo bem nunca foi tão difícil como agora, é uma aventura perigosa. Já não vale a pena prender, torturar ninguém, porque além de caro é deshumano. Quando alguém denuncia, corajosamente, irregularidades, é apenas meia coragem porque tem que tapar a cara e distorcer a voz. Ora aí está. Pois, entrámos na era da cara tapada e voz distorcida, senão… Sempre é mais barato. Neste beco sem saída, apesar do túnel ter tantas ramificações, triunfa a esperança de uma fé que supera montanhas, ultrapassa fronteiras, se assume como a alternativa mais humana. Porém, neste plano existencial onde, o que dá muito jeito aos corruptos políticos e religiosos, lamentavelmente, ainda há os que defendem a pobreza como a forma mais fácil e a mais elevada de atingir o céu. Assim torna-se quase impossível a criação de melhores condições de vida. Ora, parece que Deus não tem nada a ver com ricos e pobres, mais ou menos sofredores. Será mais acertivo pensar que, talvez, a construção de modelos de vida libertadores, gerar formas de felicidade, vivências pacíficas será mais o Seu género. Isto sem ter a ousadia de falar dos gostos de Deus. As religiões não podem adormecer sobre esta questão. Se há movimentos, organizações que tragam um sólido universo de esperança a tudo quanto é gente, devem ser as correntes religiosas. Sem verdades absolutas, entenda-se, elas são apenas formas de representaçao da fé, mutáveis como tudo o que vive e pernoita neste túnel, à procura de acertar com o caminho directo para Deus. Por outras palavras, mais que pensar no que Deus gosta ou não gosta, será mais sensato pensar em como tornar este mundo num sorriso universal. Bom, mas isto é apenas uma prosa de túnel coberta pelo céu azul. Margarida Azevedo