sábado, maio 24, 2008

MORTE É FELICIDADE XII


VAMOS MORRER

Desde sempre que a morte é vista como uma ocorrência do futuro, certa mas longínqua. Provavelmente uma vingança dos deuses, ficção de Deus, uma herança mórbida de Adão e Eva, um jogo macabro, uma fatalidade, um destino nada honroso. Um acontecimento sempre para depois, para nunca mais, eternamente adiado. No entanto, há em nós uma qualquer sensação que não conseguimos definir que nos leva a pensar que a vida é-nos emprestada; ela acontece como se algo nos trespassasse num ápice, um mero punhado de anos, e nos engolisse de novo para se saciar e cantar vitória.
Por isso dizemos que viver é um desafio, jogo perigoso entre o aqui que vemos de forma distorcida, e o para lá de que não nos lembramos. A vida é uma herança dolorosa, uma construção sólida de um futuro ao qual não escapamos.
No entanto, a morte talvez seja o único acontecimento que merece ser referenciado como “o futuro”, porém nada distante Ela persegue-nos, conhecedora da nossa temeridade, das nossas lutas, das certezas próprias dos incoerentes.
Este paralelismo insólito é responsável pela certeza cruel de que não há nada que nos faça escapar, sobreviver, perpetuar. Vamos definitivamente morrer. Uma desgraça, é verdade.
Mas há quem pense que não. Ou então há quem acredite que a sua hora não chegará enquanto não tiver feito tudo o que acha que tem para fazer. Só que de repente lá se vai o castelo, e Deus é tão injusto. Mata as criancinhas, os jovens, os pais de família, as mães com filhos que ainda mal chegaram ao mundo, gente importante com grandes projectos para a Humanidade... A morte, quando vem, não escolhe. Porquê? Podia levar os que não fazem cá falta nenhuma, os maus, os ambiciosos, os assassinos. Esses são os que ficam sempre para mais tarde.
A morte é assim mesmo. Que sabe ela a nosso respeito, das nossas intimidades mais recônditas? Que percebe dos nossos projectos, que noção tem de Humanidade?
Segundo o Espiritismo, de nada nos serve esta conversa. Nada do que acabamos de dizer faz sentido, pois a revolta, os queixumes ou as desilusões não são bons conselheiros. Só se desilude quem se ilude, e a ilusão é própria da crendice. A vida é objectiva, e a morte ainda mais. Morrer é sobreviver, com regras, com leis muito precisas.
Ninguém escapa a essa realidade porque todos estamos no mundo apenas de passagem, passagem essa cheia de labutas mas que, após o seu cumprimento, somos “puxados” para o mundo a que realmente pertencemos. E isso não é uma questão de mérito, apenas, mas de presente mais passado. Quem reencarnar para uma vida de trinta anos não vive oitenta, mas quem reencarna para oitenta pode reduzir para trinta, e mais facilmente do que pensa.
Essa redução do tempo de permanência na Terra não tem nada a ver com o sofrimento, mas com o modo como este é encarado e vivido. O bem ou mal sofrer definem não só o modo como se vive o tempo que é destinado a uma encarnação, como também o impacto ou força que lhe conferimos face à existência em sentido lato.
Assim, quem tem fé sabe que o desencarne em pessoas ainda jovens significa que terminou um ciclo, que a pessoa não iria beneficiar se permanecesse mais tempo na Terra, que certamente a existência foi encurtada por vias duvidosas, nomeadamente através do consumo de drogas, ou por uma forma de estar socialmente desconexa. Isto significa que a morte, nestes casos, é um benefício acrescido, pois o Espírito é retirado do meio terreno com o propósito de ser tratado no Astral; que lhe foi dada a oportunidade de reencarnar em um meio no qual provou que ainda não estava convenientemente preparado; que a sua presença era de tal modo nociva que, porque fora do âmbito do karma colectivo daqueles com quem convivia mais de perto, não conseguiu subir ao nível, ainda que muito baixo, dos seus semelhantes.
Além disso, e porque é referenciado em O Evangelho segundo o Espiritismo, (KARDEC, A, 1987, p. 93) se entre duas pessoas, uma boa e uma má, desencarnar a primeira e não a segunda, queremos esclarecer que isso é o mais comum e, portanto, nada tem de anormal. Ao bom não é necessário mais tempo de vida porque já evoluiu, ao mau a permanência por mais algum tempo ser-lhe-á benéfica pois ainda tem muito para modificar.
Outro aspecto insere-se no facto de muitos considerarem a morte como uma fatalidade. Ora, a morte não é uma fatalidade. Aquele que vai nadar num rio, depois de ter sido avisado de que este é perigoso porque tem fundões e remoinhos, e morre vítima de um acidente dessa natureza, com apenas vinte anos de idade, não podemos dizer que essa morte foi uma fatalidade. Apenas que não respeitou ou não cumpriu a informação que lhe foi dada. Além disso, mesmo que a morte não ocorra por acidente, mas de forma súbita ou doença incurável, morrer jovem é tão justo como morrer velho, e não há qualquer fatalidade. Segundo a referida obra (pp. 91-92), a morte não é capricho, crueldade, miséria ou perdição. Prolongar uma vida estagnada na evolução, sem objectivos e sem amor é que poderia ser tudo isso, e muito mais. Não tenhamos dúvidas, seria muito mais perigoso para a pessoa viver uma vida inútil.
Quantas não são as mortes que bendizemos e agradecemos a Deus? Quantas não abençoamos afirmando que são uma graça da Divindade, pois aquela vida estava a ser muito sofredora? Querer prolongá-la seria egoísmo, incoerência, falta de amor. Quando tal acontece por doença súbita obedece à mesma justiça e é obra do mesmo Ser. Somos nós que ainda encaramos a vida como uma coisa muito boa, apesar das desilusões que ela nos provoca, dos dissabores Mas é a vida que é cruel e não a morte.
Nascemos preparados para morrer, mas não isentos do sofrimento que a morte nos provoca, porque esse só pelo esclarecimento se combate. Desta forma se compreende que a morte que nos espera é um acontecimento de justiça total.
As religiões cristãs conferem à morte um rosto triste, arrastando para a sobrevivência a ideia de corpo carnal. Com isso pensam que matam a morte. O Espiritismo, como cristianismo primitivo, faz precisamente o contrário, tenta dar vida à morte. Por outras palavras, há que preparar o Espírito, esclarecendo-o, para que seja prolongada o mais possível a sua permanência na morte (estado de desencarnado). Há que retardar o regresso. Há mesmo que preparar o seu não regresso. E isso é fácil de compreender, as Entidades mais esclarecidas não voltaram à Terra, e só à distância, muito à distância, comunicam com este planeta através da hierarquia espiritual.
O papel do Evangelho é mostrar que todos os que vêm a este planeta têm naturalmente que partir um dia. Mas o Evangelho não fica por aqui. Ele ensina-nos a esperar o certo, e diz-nos como morrer. Para tanto apela à vigilância, à prece e ao amor, ainda que sejam vivências muito íntimas do nosso coração espiritual.
O que nos espera, então? Espera-nos o dia em que veremos na morte a grande felicidade, o momento mais esperado e mais alto da vida. Será quando diremos com profunda alegria “Vou morrer!”, mais enfático ainda se dissermos “Vou definitivamente morrer, pois já encontrei o meu caminho. Tenho amor, tenho luz, tenho paz. Tenho tudo. Sou feliz, inteiramente feliz!”

Barbara Diller

quinta-feira, maio 15, 2008

MORTE É FELICIDADE XI


A PREPARAÇÃO PARA A MORTE


(Continuação)


a) reflexão

A maior preparação para a morte reside nas acções diárias da vida, nos pensamentos, em tudo o que de um modo geral compõe o nosso quotidiano. O crente em Deus não entra em pânico, nada o perturba, nada o deprime.
Essa confiança não lhe advém do facto de ele ter comunicações com o além, por falar com os Espíritos, pois isso todos o fazem em todos os movimentos, ou melhor, é apanágio de todos os corações. A confiança só provém da fé, sólida, firme e inabalável.
Não são os Espíritos que conferem estatuto à nossa fé, mas é a nossa fé que garante estabilidade aos Espíritos. É por meio dela que eles encontram o conforto de uma prece, descobrem o seu estatuto, se sentem vivos e independentes entre os mortos da carne, se encaminham para um mundo melhor com a força e a luz do esclarecimento. Guiados pelo espírito de fraternidade, ingressam nos mundos ditosos onde, segundo os seus Mentores, trabalham nas mais diversas actividades.
Será que tudo o que foi supra mencionado não faz qualquer sentido para os Espíritos? De modo nenhum. Cada um vive na casa afectiva que constrói ao longo de um conjunto de existências. Não são os nossos preceitos, no entanto, que vão definir o seu maior ou menor apego à família e amigos. São os sentimentos que nutrimos por eles que se tornam apelativos da sua presença, da simpatia com que esta se faz sentir. O Espírito é uma realidade afectiva, e não uma realidade composta por formalidades perecíveis.
Para nós, trespassados pela engrenagem do tempo do corpo, mergulhados no mecanismo do nascer, crescer e morrer, o preceituário que inventamos é uma forma mágica de perpetuar a memória dos antepassados. Pensamos que é assim sob os receios de cairmos em esquecimento total após a morte. Pensamos que a tradição é perpetuação. Mas se assim fosse, que é feito dos nossos antepassados esquecidos que nos antecederam há milhares e milhares de anos e cujos ritos, fórmulas, e tudo o que envolve a nossa crença já não praticamos, nem sabemos como era? Éramos crentes, religiosos, dogmáticos... na pré-história? Como sabê-lo? Que reinos mágicos elaborámos, que contos contámos às nossas crianças, que valores transmitimos? Ainda há quem pense que o formal é meio de tornar inesquecível aquele que viveu há milhares de anos. É à máquina da nossa afectividade que devemos, ainda que tão infinitamente ténue, a memória, o souvenir que guardamos da noite dos tempos, a informação de que procuramos o amor e a luz.
Infelizmente, muitos espíritas há que estão mais ligados ao aspecto formal que aos sentimentos. Muitos preocupam-se excessivamente com a morte, procurando estabelecer com os Espíritos o maior número de comunicações possível. Isso é falso espiritismo, falsa doutrina, falsos espíritas. Nada no que está codificado apela a semelhantes práticas. A única desculpa que poderá haver para tal postura será simplesmente o facto de se tratar com toda a certeza de gente muito pouco esclarecida nos preceitos doutrinais.
Não há maior preparação para a morte que seguir este preceito: “Vigiai e orai em todo o tempo porque não sabeis o dia nem a hora.”

Barbara Diller

terça-feira, maio 06, 2008

MORTE É FELICIDADE X


A PREPARAÇÃO PARA A MORTE

Em nós, míseros e rudimentares seres, os humanos desta criação que tantas lições grandiosas recebem dos animais, tudo isto no dizer de religiosos mais ou menos fanáticos, ou de naturalistas mais naturais que a própria Natureza, a morte não é um acontecimento totalmente inesperado, como o é para todos os restantes seres vivos. Erro crasso, pois o vasto reino animal mostra-nos sem ambiguidades que a morte não é uma ocorrência inesperada, surpresa ou acaso e desprovida de sensações desagradáveis. Para qualquer animal desta fauna surpreendente que tanto nos fascina, para qualquer espécie coroando a vida de uma multiplicidade de inteligências em desenvolvimento permanente, a morte é sentida de formas que nós não sabemos explicar, porque não temos uma sensibilidade suficientemente desenvolvida para compreender o reino que se chama Vida.
Quem desconhece a magnitude dos cemitérios de elefantes, o latir triste do cão a quando do falecimento do seu dono, as aves domésticas que deixam de cantar quando há morte no lar, etc. ? Alguém sabe explicá-lo? Alguém sabe por que se suicidam as baleias, em massa? Podemos adiantar razões, umas mais razoáveis que outras, aparentemente, mas todas filhas da nossa vontade em explicar o que nos rodeia, mas insuficientes.
Todos os animais têm a sua noção de morte. Todos morrem com dignidade, porque todos matam com dignidade. Através deles recebemos magníficas lições do Grande Espírito que construiu, e continua a construir, este Universo infinito. Eles ensinam aos humanos como se dá a vida pelos que se amam, nomeadamente os filhos. Representam com fidelidade o milagre da Vida, a maternidade da Natureza, a procriação. Com os animais aprendemos como aceitar as intempéries, a suportá-las sem queixume e a viver cada dia que passa.
Somos nós, porque os herdeiros de uma animalidade ainda muito próxima, que vivenciamos a morte de forma pouco humana, desconforme com a nossa espécie. Os nossos postulados, a saga da nossa existência, as nossas crises, a nevrose da sobrevivência ainda são um meio de manifestar o animal que somos, mau grado a persistência das Forças do Alto em luta constante por nos tornarem realmente seres de razão e de fé, isto é, a fraternidade de todos os homens.
E no entanto, ou talvez por isso, para lá do animal, somos o ser que deseja a morte. Não sabemos se o mesmo se passa com os nossos irmãos “inferiores”, sabemos apenas que nós a procuramos, que levamos uma existência a prepará-la, que a reflectimos nas insónias. Porém, sabemos tão pouco dela. Perdidos em deambulações mirabolantes ou no cepticismo de filosofias quais espelhos do patético, entregamo-nos ao comezinho, perdemos tempo com o que temos de mais certo na vida.
Nos meios agrários do interior de Portugal, nomeadamente no Baixo-Alentejo, não há ninguém que não tenha a mortalha devidamente preparada, pois é vergonha deixar a morte chegar e não ter com que a vestir. A morte não pode estar nua. Como ela chega a qualquer hora, a pessoa não pode estar desprevenida, pois a nudez da morte é desrespeitante.
Desta forma, a morte é corpo, um corpo muito especial, transcendente, à procura da sua mesma incorporação. Podemos dizer que morrer é incorporar uma realidade muito forte, hiperconsciente, que tudo vê, tudo sabe, tudo conhece. A morte é uma superpessoa de personalidade marcada, vontade férrea. A morte comanda, a morte ordena, moraliza.
Mas a morte também tem o seu espaço. Não é apenas a mortalha que prepara para a morte. É fundamental saber onde quer ou onde pode ser sepultado o corpo. A sepultura é o remetente de uma carta, confere raiz, nome, estado, poder. A sepultura diz quem gerou, trouxe ao mundo aquele que ali jaz. A sepultura é princípio.
Na tradição católica, ir rezar à sepultura é encontrar-se com o corpo e alma do falecido. Quanto melhor estiver identificada, maior a certeza da sua presença aquando da evocação através da reza. Já na tradição protestante, a sepultura é visitada, não a partir da importância do corpo, mas da memória. Visitar o falecido no cemitério é falar com ele, trazê-lo ao pensamento, recordá-lo, mostrar que ele vive no coração de quem sente realmente a sua falta, e por isso sentiu necessidade de estar com ele num lugar muito especial.
Morte é também viagem. A sepultura bem cuidada dá ao falecido segurança, condu-lo para uma viagem feliz, ou visitas agradáveis a quando da ida dos familiares ao cemitério. Mas para que essa viagem o leve à pátria do Eterno Descanso ele precisa de rezas. Daí o complicado conjunto de dizeres, fórmulas e repetições hipnotizantes proferidas nos velórios.
As rezas são meios de transporte para as almas, o correio dos familiares, uma referência incondicional e determinante para o lugar que as espera. Retirar ao falecido o anel ou aliança do dedo, ou herdar as jóias (ouro) é entregá-lo definitivamente à morte, acompanhá-lo até ao começo da viagem. Está selada a perpetuação do nome, e a morte foi prevenida e preparada.
A célebre expressão “Não tem onde cair de morto” significa ser tão pobre que nem mortalha tem, nem ouro, nem sepultura, nem nome a perpetuar. Não tem sítio onde morrer porque nem tão pouco tem meio ou forma de identificação.
A mortalha e o ouro (traje) identificavam a natureza social do falecido, o seu poder económico, os seus respeitos para com os antepassados que o antecederam na viagem, e com os quais se espera que vá encontrar-se.
Mas esse traje tem história e depende do estado civil da pessoa. Assim, era comum entre as classes mais abastadas a mortalha dos homens consistir no fato de casamento. Caso este já não servisse, levariam o fato domingueiro, isto é, o fato de festa, tal como os rapazes novos solteiros. As mulheres levavam, não o vestido de noiva, pois este estava reservado às raparigas solteiras, virgens, as quais iriam celebrar núpcias no outro mundo, mas o melhor fato que tivessem em casa. Não passava pela cabeça de ninguém, nem hoje, escolher para a mortalha um fato velho e muito usado, ou o mais fraco.
As classes mais pobres seguiam o mesmo preceito, muitas vezes mandando fazer na costureira o fato-mortalha. A propósito, foi em 1998 que uma costureira de Pias nos disse que, entre as roupas que estava a fazer para a Festa Rija, tinha uma encomenda de mortalha. Tratava-se de um fato de saia e casaco em tons de azul entre o marinho e o turquesa, a pedido de uma idosa do lar da Fundação Viscondes de Messangil. O tecido, de excelente qualidade, era vistoso e alegre, talvez exageradamente festivo para uma viúva de oitenta e tais anos, no pensar da referida costureira.
Além da preparação do traje, assunto de mulheres, pois os homens preocupam-se com o nível de vida da casa ficando reservados para as mulheres os assuntos das almas, todos os lares possuíam (possuem) os utensílios fúnebres. São eles o lençol para a cama ou para a mesa da casa-de-fora, onde era colocado o caixão, dantes em linho ou meio linho, nas classes mais abastadas, hoje em algodão puro para quase toda a gente, assim como a toalha da arca onde eram colocados o candeeiro de arame, os castiçais para as velas, os solitários para as flores (mais raro). Os tecidos eram sempre brancos, debruados a rendas e/ou bordados, as velas lisas e claras como nas igrejas, o candeeiro de arame brilhante em tom de ouro.
O banho que é dado ao falecido terminava com alguns borrifos de perfume, sobretudo nas classes mais abastadas, ou nas casas onde houvesse gente solteira. Perfumar fazia parte das regras fúnebres de alguns lares, e a sua função transcendia em muito o facto de o morto expelir algum odor próprio da decomposição cadavérica.
Completados estes preceitos, o falecido estava pronto para ser velado, isto é, iniciava-se o vastíssimo quanto complexo e fastidioso conjunto de rezas a fim de o entregar nas mãos dos antepassados e, por meio destes, ser apresentado a Supremo Senhor. Aí, esperava-o o festim dos mortos arrependidos de seus pecados e misérias.
(Continua)

Barbara Diller