sábado, março 29, 2008

MORTE É FELICIDADE V


O QUE É A MORTE (Continuação)


2. Noções de morte

O que é a morte para um espírita? A morte é desencarne, momento de profunda alegria para o Espírito, por vezes mesmo de euforia. A morte é uma necessidade, um princípio, o recomeço de uma vida que foi “interrompida” com o reencarne. Morrer é partir para a terra da verdade, ou de uma verdade maior, pois aqui também é verdade que somos pouco verdadeiros. Morrer é aprender, conquista de todos os Espíritos sem excepção.
A morte é um momento poético, silêncio da alma, momento supremo de meditação, força de quem soube persistir. A morte é uma qualquer magia que, muito para além de um corpo quase em putrefacção, realça a sua ânsia de liberdade, o seu perfume róseo, agudiza o senso do perdão, traz calma e amor. A morte é brandura, relaxe, tranquilidade, para os que partem de consciência leve. A morte é paz, muita paz.

a) morte é lembrança e desejo

“A alma não leva nada deste mundo?
_ Nada mais que a lembrança e o desejo de ir para um mundo melhor. Essa lembrança é cheia de doçura ou de amargor, segundo o emprego que tenha dado à vida. Quanto mais pura ela for, mais compreenderá a futilidade daquilo que deixou na Terra.” (KARDEC, A., 1984, P. 116, questão n.º 150-b).

No momento do desencarne, o Espírito antevê a sua liberdade. Recupera parte da memória espiritual, isto é, relembra uma ínfima parte do passado, nomeadamente aquele que tem a ver com o mundo no qual reingressa, iniciando a sua vivência na pátria do Espíritos, facto que lhe confere alguma estrutura para entrar em outro mundo. É exactamente o mesmo processo que a quando do reencarne. Se o bebé tem as suas defesas para vir a este mundo e sobreviver nele, se nasce preparado para suportar adversidades de todos os tipos, também o Espírito está preparado para ingressar em outra realidade.
E se no bebé isso não é uma qualidade do karma, mas parte da sua estrutura biológica conferida pela componente material do planeta, igualmente essa preparação prévia do Espírito não lhe atribui qualquer emancipação dos passos que a ele sejam necessários, até entrar na Escola Espiritual que lhe está destinada.
Isto significa que o desencarne não acontece de forma imprevista, mas obedece a regras muito precisas. Por outras palavras, se para nascer o bebé precisou de nove meses de gestação, se passou por um trabalho de parto relativamente complexo, paradoxalmente o acto mais natural da vida, assim o Espírito tem uma vida inteira de gravidez espiritual para se preparar para o grande acontecimento da existência, o retorno ao mundo dos vivos, isto é, desencarnados.
Uma vez “cá fora”, o bebé luta pela sua sobrevivência, tal como o Espírito luta pela sua evolução. Ao longo da vida, os seres manifestam uma infinidade de capacidades indispensáveis à sobrevivência, prova da sua inserção, correcta, no mundo. Também os Espíritos, resultante do apoio dos seus Mentores, sentem uma liberdade e um bem estar que nós só utopicamente conseguimos pensar. Talvez por isso, as utopias sejam o móbil mais forte do homem, a grande realidade.
É tudo isto, e muito mais, que o Espírito deseja e relembra no momento do desencarne. A lágrima do adeus é apenas uma despedida momentânea, um até breve, porém, na maioria dos casos, uma surto de felicidade por estar a reencontrar amigos de há milhares de anos.
Depois, tal como a criança que quer ir para a escola, para conviver com os da sua idade e desenvolver-se com eles, também o Espírito deseja ardentemente experimentar outra realidade na qual possa aprender e ser emancipado.
Podemos dizer sem receio que o desencarne é o momento mais desejado para uma Entidade.


Barbara Diller

domingo, março 23, 2008

MORTE É FELICIDADE IV


O QUE É A MORTE ? (Continuação)

a) para onde vou?

Pergunta de pôr os cabelos em pé a muita gente é a de saber para onde irá depois de morto. Se vai para o nada, e o nada já é alguma coisa, se vai para o inferno ou para o purgatório, os mais coerentes nunca falam do céu, se vai para o eterno descanso, e respectiva pasmaceira, ou, contrariamente, se vai trabalhar que nem um condenado.
Na impossibilidade de encontrar uma resposta que lhe preencha o vazio, o incrédulo assustadiço deixa escapar-se-lhe o sono, tão necessário para a libertação do Espírito que necessita de aprender e reencontrar por breves momentos alguma liberdade, e deita-se a meditar sobre o que julga de insólito. Aí, acompanhado pelo vazio das mais altas especulações filosóficas de trazer por casa, toma-se de angústias místicas, inventa fórmulas bizarras que nem as crianças aceitariam, e afirma-se possuído por eminente Espírito de luz.
Depois, e para completar o quadro clínico cujo diagnóstico seria neurose obsessiva, acaba por dizer que, depois de morto e bem morto, vai para onde Deus quiser. É quando dá sinais de alguma lucidez, ou pelo menos de um laivo de coerência, muito embora a pergunta permaneça: Para onde raio irei eu quando estiver bem esticado?
Lamentavelmente, a questão não é posta pela vida. Isto é, a pergunta deve ser levantada a partir do modo como é absorvida a existência presente. Como são gastas as forças que Deus nos dá, como usamos a inteligência, como ocupamos o nosso espaço mental.
Em Espiritismo a resposta é fácil e simultaneamente complexa. Depois do desencarne, iremos para o mundo da nossa consciência, o mundo do nosso merecimento, o mundo encarado como uma resultante do que construímos quando na Terra.
Iremos para um mundo relativamente leve, relativamente pesado, mas sempre para o que merecemos. Até porque esse futuro, o mais certo dos futuros, é sempre uma surpresa agradável. Há que perceber que, por mais abjecto que um homem seja, ele também é filho de Deus, tem amigos que desejam reencontrar-se com ele. Bons e menos bons, todos são igualmente esperados com muito amor no lado de lá. Ninguém está isento desse amor divino e lúcido. Todos fazem parte da mesma experiência, muito embora ela seja irrepetível, singular, intransmissível.
Em uma palavra, depois da morte iremos para um outro tempo, o das colheitas, onde iremos de certeza colher os frutos mais ou menos saborosos da árvore da nossa vivência espiritual.
Tomemos em atenção alguns aspectos sobre os quais assentam as maiores incertezas:

b) o que vai acontecer?

Este é o maior dos medos. Há quem tema perder o sentido de si mesmo, da sua individualidade, ou até deixar de ter vontade própria. Outros temem encontrar um vazio muito grande, um silêncio sepulcral, ou sentirem-se presos dentro do caixão lutando infrutiferamente para saírem. Não falta quem julgue ir encontrar um velho de barbas brancas, acusador feroz, intransigente, pronto a mandar para o inferno todos os que não fizeram a sua vontade.
As Entidades esclarecedoras dizem, porém, o seguinte. Quando deixa o corpo, o Espírito permanece como que adormecido durante um tempo indeterminado. Durante esse tempo ele não está só, mas acompanhado pelo seu Guia, que o protege e aguarda o momento do despertar, tal como a mãe aguarda o nascimento do filho cuidando da sua gravidez a fim de garantir bem estar ao bebé.
Quando desperta, a Entidade não está consciente do seu verdadeiro estado (para a esmagadora maioria das Entidades), tal como o bebé não tem consciência de que está no mundo. Esse acordar para a vida é mais ou menos lento, de um modo geral muito lento, pois a Entidade não se dá conta do mundo em que está. Se for muito ignorante, é natural que, durante um longo período, pense que está a exercer as mesmas tarefas que quando em vida na Terra. É nesta altura que a prece se torna mais incisiva, a esclarece e a faz perceber o seu verdadeiro estado.
Não tendo um pensamento fortalecido, vai onde a chamam, invocando-a, sofre a sensação de abandono quando não sente nenhuma prece, ou então frequenta os lugares mais horríveis da Terra, tais como cemitérios com corpos depositados (há cemitérios sem corpos, e esses são-lhes agradáveis). Se era um viciado, desloca-se aos lugares frequentados por pessoas que tenham os mesmos vícios: tabaco, álcool, droga, sexo, gula, jogo... Se era um místico fanático, aproxima-se dos ambientes afins: seitas, grupos de gurus, religiosos fanáticos, ideologias perigosas que põem em risco a paz e a liberdade de expressão (aspectos muito importantes entre os Espíritos). Se era um médium charlatão, frequenta casas de bruxaria, feitiçaria, e toda a espécie de negatividades a fim de provocar fenómenos, ditar máximas sem sentido, desviando os seguidores mais desatentos do verdadeiro caminho para Deus.
Quando se dá conta do seu verdadeiro estado, revolta-se, vê-se perseguida por todos quantos prejudicou, quer por pensamentos, quer por acções, quer por palavras menos dignas, sente medo; tem frio ou muito calor, enfim, as narrativas nesta área são extremamente diversificadas, pois as Entidades mais negativas experimentam sensações tão estranhas que nos são difíceis de definir.
Nesta altura, estamos no ponto ideal para doutrinar a Entidade, isto é, ou ela tem força para ouvir o seu Guia, e é este quem a doutrina, ou liga-se a alguém de carne e osso esperando que este, através da voz material, lhe dedique uma prece, esclarecendo-a. Para isso não precisa de a ver nem falar com ela, apenas que, ao orar, saiba que a sua prece é uma preciosíssima caridade para com os desencarnados. Até porque esse deve ser um dos objectivos primordiais da prece (ver Espiritismo em Portugal, O levantar do véu, pp.157-.169), e não, contrariamente ao que muitos pensam, ter uma capacidade mediúnica fenomenal. Caridade não é mediunismo. Caridade é amor.
No entanto, se a Entidade não é capaz de “sobreviver” com alguma felicidade no lado de lá, recorrendo por si mesma a estas pessoas (Guias e oradores terrenos), então, através dos encarnados a que se liga, irá ser doutrinada em trabalhos de evangelização, ou por via mediúnica manifestando-se através dos médiuns de incorporação.
Aí é-lhe dito que já não pertence à Terra, que peça perdão a Deus das suas faltas, que perdoe a todos os que a ofenderam, seguindo, caso aceite, para uma Escola espiritual onde continuará os seu aprendizado.
Se o desencarnante é uma Entidade já um pouco esclarecida, então os passos que segue não serão estes, ou sê-lo-ão de forma mais abreviada. Poderá não sentir perseguições, nem sentir-se fisicamente agredida, perseguida, nem dependente de outros qual possesso. Por vezes, a ajuda do Guia é-lhe suficiente, ou apenas a prece dos encarnados, ou algumas sessões evangélicas.
Isto significa que não há um modelo de mundo, mas uma pluralidade de mundos, sendo um deles compatível com o seu estado evolutivo. Porém, seja em que caso for, as Entidades encontram sempre muitos amigos e inimigos que conheceram ao longo das existências, alguém que sente muitas saudades e que zelou pelo seu bem estar quando na Terra.
Entretanto, já com consciência do seu verdadeiro estado, solicita não raro que lhe permitam vir visitar os familiares e amigos que deixou na Terra. Para isso, é necessária alguma preparação, pois vulgarmente experimenta grandes dissabores ou mesmo desilusões. Outras vezes encontra uma família triste com a sua perda e tenta à viva força dizer-lhes “Eu estou bem, não se aflijam. Estou melhor que vocês, pois isto cá deste lado é maravilhoso.” Lamenta que não a oiçam, não a vejam, mas sabe que alguma sensação provocou.
Isto acontece quando, sem mais nem menos, nos lembramos de alguém que já faleceu há muito tempo e que, sem mais nem menos, nos “aparece” à memória. Até porque não há ninguém a quem isto não aconteça, uma vez que todos somos visitados pelos mortos, todos temos os nossos amigos do lado de lá. Por isso é que se diz que a morte não separa ninguém.
Em suma, o que nos vai acontecer após a morte só Deus o sabe. Não há ninguém que possa dizer que vai acontecer isto ou aquilo, concretamente, tal como ninguém pode profetizar quanto ao fim do mundo. Os Guias limitam-se a dar exemplos genéricos, e nunca a descerem à particularidade de cada um. Apenas podemos ter a certeza de que iremos para o mundo construído pela nossa vivência espiritual quando na Terra, mundo esse todo justiça, todo verdade.

UMA BOA PASCOA.

Barbara Diller


sexta-feira, março 14, 2008

MORTE É FELICIDADE III


O QUE É A MORTE?

De algo trevoso e assustador, espécie de pena de talião, a uma graça infinita, a morte tem definições de todas as sensibilidades. As religiões, as escolas secretas e ocultas, as correntes filosóficas que as apadrinham ou delas emergem, todas, sem excepção, adiantam definições mais ou menos aceites, onde misturam pensamentos de alguma espiritualidade a noções vagas tocando a ingenuidade e o bizarro.
A morte, todos o sabemos, não se define, não se representa, mas pensa-se e medita-se. Tudo o que não tem definição, por vezes não significando indefinível, mas adefinível por não existir simplesmente, constitui-se como parte considerável do nosso sistema meditativo. Isto é, sempre que meditamos tocamos com a mente na morte, subimos tanto quanto possível a um plano que não significamos mas que nos causa segurança, bem estar que de alguma forma nos situa em um lugar que desejamos.
Assim, encaramos a morte como uma passagem de um estado a outro para o qual é exigida uma mudança radical da estrutura corpo. Isto significa que, ao deixar o corpo físico, o Espírito ingressa em outra realidade de modo a revestir-se dos elementos materiais do plano em que ingressa, a fim de continuar a evoluir.
Mas a morte não é apenas uma passagem radical acompanhada de mudança de corpo. Contrariamente aos animais, parece, o homem não experimenta apenas uma morte ao longo de uma reencarnação, mas sim uma sequência de mortes com um fim determinado e extremamente preciso. Por exemplo, quando abandona uma ideologia, um preceito moral; quando desiste da prática de certas atitudes; quando envereda por um trabalho diferente; quando decide mudar de país. Mais, essa sequência de mortes que ao longo dos anos constituem a personalidade do homem, cimentando-lhe a individualidade e fazendo-o crescer e desenvolver-se com sentido a uma independência que tem que se afirmar, são uma resultante da interrogação pertinente: “O que estou concretamente a fazer aqui?”
O nosso crescimento dá sinais de evidência quando justamente nos colocamos a questão de saber se queremos continuar ou mudar. Em Espiritismo, a mudança é sempre uma atitude positiva, isto é, ir de um menos para um mais uma vez que não contempla nem aceita a regressão. As teorias regressionistas são encaradas como redutoras da vontade, excluindo a importância do eu singular e consequente construção de “um mundo” em que o individual permaneça distinto.

Daí, em Espiritismo, a mudança não ser uma fábrica de iguais, sujeitos aos mesmos castigos, penas e gozos, às mesmas vitórias e derrotas. O progresso, filho legítimo da mudança, remete para uma necessidade de cada um e cada qual se encontrar na casa do amor, único sentimento capaz de unir os diferentes e torná-los co-criadores com Deus. Mudança é progresso, pois, mesmo que ao vulgo pareça que tudo se encaminha para pior, isso é mera ilusão. Ainda que haja uma revisão do já vivido, isto é, um marcar de passo na mesma estrutura axiológica, a repetição, em verdade, não existe. A pessoa já está preparada, já consegue prever o desenrolar de algumas situações que se lhe tornaram familiares, pois está a reviver situações idênticas para as quais simplesmente aplica o que aprendeu a novas situações.
Por isso o homem é feito de mortes, e não de morte, umas que lhe são impostas, outras sugeridas, ambas construídas pelo natural impulso da vida e com um fim comum, o Bem. É nessas formas ou vivências de morte, não mais que salutares impulsos de mudança, que ele encontra o convívio com o Além. Toma consciência da manifestação de alguma coisa que o observa secularizando os seus pensamentos, que doma o que de mais disforme o seu pensamento ainda produz, complementa a sua existência material com uma outra que lhe é arquetípica, informando-o sobre outras realidades.
Daí nos advém a linguagem, tudo o que dizemos para além das palavras: o sentido, a intensidade, a direcção, o peso, a forma, e tantas infinitas coisas que nos fazem colher na experiência diária o que mentalmente semeamos nos nossos dizeres, ainda que muito íntimos. Assim representamos a beleza e todas as coisas que nos causam espanto e admiração, é igualmente desta forma que erguemos a lucidez necessária que nos faz dotar a vida do tal sentido que não somos capazes de definir. Pela morte tocamos o Perfeito em suas manifestações de beleza inefável.
“Os céus elevados são a pátria da beleza ideal e perfeita em que todas as artes bebem inspiração. Os Espíritos eminentes possuem em grau superior o sentimento do belo. Este é a fonte dos mais puros gozos, e todos sabem realizá-lo em seus trabalhos, diante dos quais empalidecem as obras-primas da Terra.” (DENIS, L., 1989, p.223).


1. Preocupação com a morte

No entanto, por que há uma tão grande preocupação com a morte? Porque a tememos? Estas questões parecem evidenciar uma consciência de alguma forma atormentada, pesada nos seus intentos e saturada de incertezas.
Sobre este ponto, e tentando tranquilizar os mais inseguros, O livro dos Espíritos (1984) esclarece que “É errado que tenham essa preocupação. Mas que queres? Procuram persuadi-las, desde cedo, que há um inferno e um paraíso, sendo mais certo que elas vão para o inferno, pois lhe ensinam que aquilo que pertence à própria Natureza é um pecado mortal para a alma.” (KARDEC, A., p. 376, questão n.º 941).
Isto significa que no referido autor a preocupação com a morte é uma forma de consciência atormentada, como outra qualquer, a qual já foi por nós indiciada em anteriores trabalhos. Mas não só. Além de desnecessária, está apoiada, geralmente, em preconceitos, e o preconceito é o maior inimigo da razão. Ora, a morte é o momento máximo da razão, discurso todo verdade, todo certeza, momento clímax do sentido da existência.


Barbara Diller

sábado, março 08, 2008

MORTE É FELICIDADE II


O INFURTÚNIO E O DESEJO DE MORRER

É extremamente curioso como nos momentos mais difíceis da nossa vida apelamos à morte como se esta fosse portadora de forças apaziguadoras. É como se, porque possuidores de ideais e transportadores de colossais cargas afectivas, a morte fosse em consequência lógica uma dessas personagens indefinidas mas libertadoras.
No entanto, será que é mesmo à morte a que apelamos em último recurso, ou a outra coisa de tal modo perfeita, redutora, imperativa, que à falta de melhor vocábulo transmitimos por morte? Porquê?
Temos dificuldade em atribuir-lhe um fim, terminus de um autocarro moroso mas que nos conduziu ao destino que esperávamos. A morte não é o fim da linha. Chegados ao destino, continuamos a andar pelo nosso próprio pé. A morte parece ser esse caminhar em outro lugar, entregues às nossas capacidades de locomoção mental e afectiva.
O nosso pensamento mágico esforça-se por atribuir-lhe os mais belos predicados. Viajar na morte é encontrar o bem absoluto, a paz ideal, o amor eterno. A morte é saber incondicional, razão extremada, luz infinita, beleza sem par; encontro com os anjos, perdão de todas as ofensas, remedeio de todos os males, visão da Divindade. E ainda, não poderia faltar, prazer, prazer, prazer; trambolhão nos braços do amor, concretização do desejo, encontro definitivo com o par ideal, o filho ideal, o fruto de um grande amor, uma entrega incontrolada, casa afectiva dos devaneios mais eróticos, sensualidade sem limites. A morte é a grande paixão do ser humano.
Para o infortunado, isto é, para todos nós, embora haja um fundo de verdade de veras consistente, é este o mundo que ele espera encontrar ao ansiar penetrá-lo o mais rapidamente possível. Ele não é um suicida, é um ideólogo sonhador que tem na vida terrena a causa do seu infortúnio. Sentindo-se no mundo das trevas, do desprazer, enfim, da des-graça, ele pretende acabar com o suplício que é viver na dor, e por isso clama pelo prazer que a vida não contém.
Mas esse desejo profundo de morte refere-se ainda a um qualquer processo inconsciente, catarxico, no qual a morte é mergulho em águas límpidas, lavagem em profundidade levando consigo toda a sujidade a que a vida nos expõe, exosmose que expele o que não convém, não interessa, não se precisa, o nocivo. Expressão de um amor descontrolado, ela é uma mostra do quanto não daríamos para não amar quem amamos, não desejar quem desejamos, não querer o que queremos, não viver o que vivemos.
Há momentos de reflexão em que paramos, não propriamente para pensar, mas para nos centrarmos no nosso erro de amar, na nossa dedicação ao que não vale a pena, nas nossas perdas de tempo com o que não é para nós. Momentos em que ficamos aflitos, perdidos em questões existenciais, remetendo-nos a nós mesmos para a morte como um fim, não da existência, mas de um modo de existir que está desfasado.
No entanto, o infortunado que deseja ardentemente a morte, não é espírita. Se o fosse, veria que ela é o prolongamento de um estado de alma, de uma forma de estar que não lhe é possível esgotar. Ele compreenderia que nada se impõe à nossa vontade, ao nosso muito querer e que tudo acontece segundo os moldes que traçamos, os modelos com que nos identificamos, os objectivos que nos propomos.
A morte mágica é a morte do nosso aparelho simbólico, representativo das nossas capacidades de camuflagem, um postiço à nossa finitude. Ora, para o Espiritismo, a morte é a revelação, talvez aquilo a que se possa chamar com propriedade desocultação, mas não de uma vida magicamente beatífica. Essa revelação é por vezes um encontro brutal com a nossa mesma miséria afectiva. Amamos tão pouco e tão mal, choramos tão desnecessariamente uma dor por demais vivida, pesando nos séculos da nossa existência.
Morrer é encontro com a nossa escuridão, com uma infinidade de resultados como é a nossa descrença, o devaneio da entrega ao perecível, a redundância dos nossos erros e a persistente queda nos mesmos fracassos. A morte não é passaporte para a luz, mas a continuação de um caminhar lento e penoso para um mundo onde só entram os burilados. No entanto, compreenda-se que o infortunado não atingiu a noção de que nós somos habitantes de um autêntico paraíso, quando comparados com outros de mundos muito inferiores ao nosso.
Por isso, o Espiritismo ensina que não devemos desejar a morte, mas também não devemos temê-la. A estabilidade espiritual, que mais não é que o nosso ponto de encontro com a mínima sanidade mental aceitável para o planeta em que vivemos, consiste na fé, na confiança de que a justiça é proporcional à conduta, às linhas que traçamos no viver quotidiano.
Uns irão para ambientes mais escuros, outros não tanto. Não há regras definidas, não há preceitos pré feitos, não há uma estrutura igualitária, o que seria uma espécie de saco sem fundo para onde iriam todos os mortos. Não, não há. Há individualidades, casas espirituais racionais e afectivas para onde vão indivíduos, não compostos ou massas compactas de gente.
Espíritas e não espíritas, seguidores das mais diversas religiões, movimentos místicos, ateus, todos, absolutamente todos, podem encontrar-se um dia na casa das trevas, no mundo escuro dos malfeitores, se para tanto não tiverem conduzido suas vidas nos preceitos da justiça e do amor universais.
A morte não é uma ideologia construída pelos homens, ela é apenas uma mera passagem, subtil, mais ou menos dolorosa, mais ou menos prolongada, mas sempre uma barreira que tem que ser ultrapassada por todos sem excepção. E se há verdades para as quais ela é caminho objectivo, uma dessas verdades somos nós mesmos, sem máscara, sem símbolos, sem camuflado. A morte é uma nudez que nos assusta porque aquilo que mais tememos é sabermos quem somos de verdade, do que somos capazes, do que já fizemos, do que viremos a fazer porque ainda incapazes de construir mundos de luz.
A morte não é um mito, não é fenoménica. É facto real, uma necessidade absoluta do Espírito que anseia libertar-se precisamente dos mitos, dos fenómenos e da obediência às falsas concepções de espiritualidade.
Todavia, quantas não são as vezes em que o nosso Espírito, porque encerrado num corpo grosseiro, clama bem alto “Morte! Morte! Onde estás?” São os momentos bucólicos movidos por estranha sensação de peso, densidade, arrastamento de algo que não sabemos explicar e que definimos por dias de tristeza, de monotonia. São os momentos em que oramos quais pastores atormentados com o rebanho que se extravia frente aos seus próprios olhos. São também os dias de céu pedrento em que o firmamento parece ameaçar cair-nos em cima.
Mas esta não é a morte clamada pela tristeza ou pelo sofrimento, antes pela sede de liberdade, fuga das amarras que prendem o Espírito à vida terrena. Esta é a morte que a saudade deseja no intuito de rever os entes queridos que deixou no mundo invisível, as relações que interrompeu num até breve de alguns anos, que é o que nós passamos aqui.
Esta não é uma morte-fim, é uma morte-recomeço, morte-vida. É a outra face da moeda que nada tem a ver com o cunho de César, mas um rosto no Espírito, uma presença que se torna progressivamente mais exigente da nossa capacidade de luta, uma vitória que se chama Deus.


Barbara Diller





domingo, março 02, 2008

MORTE É FELICIDADE I


Começamos hoje a publicar uma série de artigos aos quais demos o titulo genérico de Morte é Felicidade. Todos os espíritas e aqueles que acreditam na chamada Teoria das Reencarnações sabem que este titulo não é um paradoxo.


INTRODUÇÃO

Os próximos meses não se avizinhavam nada promissores. Absortos nos motivos de lágrimas e dor profundas, de certeza que iríamos ter momentos de pesar, de receios próprios do sinistro que é a morte, do luto, do preto fero de quem é caminheiro no sofrimento. De facto, semelhante reflexão não parecia a ocupação mental mais agradável. Por certo iria mergulhar no lamaçal escuro de imagens feéricas, nos silêncios medonhos e penúmbricos, nos corpos dançantes no vazio, ou descer ao mundo terrífico dos infernos onde lutam sem cessar gigantes e anões, cada um reclamando para si a mão da menina bela superprotegida por uma fada de grandiosos poderes. Na verdade, havia mesmo o receio de uma perda do sentido, quem sabe, trambolhão no próprio nada.
Porém, lenta e gradativamente damo-nos conta de que a morte, muito embora voraz e vencedora, não é nada disso. Não porque o provemos tipo preto no branco, mas por um ímpeto resplandecente da maximização da nossa sensibilidade, e porque além disso os sentimentos não se provam nas profundezas da matéria, não tão pouco porque a definamos (a morte) ou mesmo a representemos com a fidelidade dos nossos ideais infantis. De facto, o carácter de definição de certas coisas ainda não nos trouxe, até hoje, a segurança ou a fidelidade romanesca aos nossos pensamentos cheios de ilusões, donde a morte, felizmente para nós, ainda não é, nem ao menos remotamente, passível de semelhante loucura.
Habituados que estamos a deambulações metafísicas, pensamentos ríspidos de quem pretende impor um conhecimento que não possuí, (somos sempre ríspidos quando queremos fazer parecer o que não parece que fazemos, menos ainda o que não possuímos), falamos analogicamente da morte como uma supervida onde misturamos actos de uma grandeza colossal com gestozinhos cobertos por boa vontade onde não falta o ridículo.
Depois, num quadro de grande cepticismo, interrogamos os nossos ideais repletos de metáforas e símbolos, perdidos em discussões que vão terminar em afirmações do género: “Quando eu morrer, gostaria que toda a gente cantasse.” Ao que alguém responde: “Eu cá preferia rosas brancas.” Mas outro contrapõe: “Pois eu, não. Cravos azuis. Sempre é mais, mais, como direi... Mais agradável, desinibido.” E toda esta reflexão iluminada, filha das mentes mais viris, termina na questão sublime: “Para quê tanta preocupação se um dia, quando menos esperar, morro?”
Mas esta pergunta é incomodativa e fugaz. Nascemos com ela, por isso de nada nos vale mencioná-la. Basta-nos ligar a televisão, em um dos nossos muitos rituais diários, para nos darmos conta de que outras preocupações se tornam mais importantes. É o novo sabonete que torna a pele mais macia e perfuma durante um dia inteiro; é o antigo detergente da roupa que tem uma nova fórmula mais eficaz, ou então a compra de chicletes para ruminar todo o dia sem que percam o paladar.
Com ou sem esses asseios, ou sem essas ruminações filosóficas (especialmente para quem gosta de roer durante um dia inteiro um pedaço de borracha, como há outros que gostam de estar sempre a pensar no mesmo) a morte é uma objectividade que escapa, experienciada pela Humanidade com e sem corpo físico, lágrima ou sorriso com que todos maquilhamos o Espírito por brevíssimos momentos na Eternidade. Passagem, desencarnação, mudança de estado, e tudo o mais que se queira inventar, tudo é dor, saudade, fraqueza, rendição incondicional, isto é, morte.
Vivemos munidos de um postiço grosseiro que arrastamos pesadamente durante uns escassos anos, corpo carnal ao qual atribuímos a causa da morte. Não queremos perdê-lo, ai Jesus, como viver sem este corpo!? Mas nem ele nos pertence, nesta vida onde nada é nosso, nem os grandes ideais, nem os valores, nem a força e a coragem, os expoentes mais altos que produzimos. Tudo será apagado da mundivivência que nos caracteriza para entrarmos na luz, esperemos dentro dos próximos milhares de anos. Temos tudo isso em nós, somos isso que ainda não somos, temos o que ainda não temos, eternidade luminosa de um dia na País da Luz.
É como se a vida exercesse sobre nós uma qualquer perseguição, nos amedrontasse com o insólito provido do adeus definitivo. A temeridade da saudade do que de mais caro a vida nos presenteia, durante as escassas dezenas de anos que por aqui passamos, ou a mágoa de sabermos que somos acompanhados desde o nascer por uma certeza fria e incisiva, talvez tudo isso, no seu conjunto, nos leve à raiz causal das nossas meditações, a uma ânsia profunda de querer fugir a essa realidade que nos espera.
Somos morte, fenómeno de passagem, ponte entre os visíveis e os invisíveis, os muitos muitíssimos que já nos antecederam. A morte é causa incondicional de um desejo profundo de querermos impor todos os mecanismos possíveis que nos ponham em contacto com esses que nos observam, assim o dizemos assim o sentimos, e nos ensine como a vida se transmite, propaga, continua, em uma palavra.
Mas falar de morte também é recordar. É como sentir que, há muito tempo, perdidos no vazio do esquecimento, uma qualquer experiência tenta falar connosco, comunicar-nos qualquer coisa e inculcar-nos uma ideia de sobrevivência que não rejeitamos, mas que não nos é de todo simpática.
A morte despe-nos, não apenas do corpo mas de todos os dogmatismos e simbologias, e das infinitas coisas que a ignorância e este ver distorcido criaram para dizer que falam de algo. Ao longo deste trabalho iremos ver como a morte nos é tão querida, tão necessária, que o nosso psiquismo não suportaria por muito mais tempo uma vida tão repleta de códigos, sinais e signos a fim de caminharmos portas dentro do invisível.
Ansiamos por essa nudez, o ver o outro a claro. Precisamos de nos enfrentarmos na escassez de informações que temos a nosso mesmo respeito, queremos saber como é na verdade a nossa natureza, a daquele que amamos; precisamos saber porque vivemos desejando uma entrega, ainda que ao ilógico, ao menos lícito, ao que nos causa uma dor profunda. Precisamos de saber porque é que tudo isso tem uma beleza que nos envolve no fantástico.
A morte faz de nós magos, agentes de transformações profundas e radicais. Tornados invisíveis, há um viver que ainda não dominamos. Ao longo deste trabalho, vamos tentar levantar-lhe o véu. Talvez nas derradeiras páginas esse viver tome uma nesga de sentido.

Barbara Diller