domingo, junho 23, 2013

NAS TEIAS COMPLEXAS DA FÉ


É hábito culpar o consumismo de tornar longínquas as tão necessárias atitudes emancipadoras da fé, garante único da entrada no Reino de Deus. Ele é a pedra no sapato, o agente malvadão, laxista, ao serviço da volúpia, a vertente mais desprezível da natureza humana. Pelo menos é assim que pensa o senso comum: o luxo é pecado e a pobreza é a virtude que conduz à fé, e sem fé não há céu beatífico.

Sacrificada no altar da luxúria, dizem, a fé apaga-se ou é-lhe reservado um lugar de segunda categoria no rol das importâncias do complexo pensamento humano e respectivas acções. Porém, o factor religioso jamais abdicou da riqueza e da sumptuosidade, as quais sacralizou, ao longo dos séculos, sob o pretexto de conferir ao templo o estatuto de casa dos deuses/de Deus aos quais/a Quem tudo o que de mais rico deve ser ofertado. E não podia ser de outro modo. Sempre foi considerado que o que é rico na terra é caminho promissor para o outro mundo.

Enredado nos valores terrenos, o ser humano equiparou o que de mais precioso existe na Natureza com o que é suposto existir no céu. Este tem sido imaginado como um mundo de delícias e ociosidade, prazeres infindáveis, uma sensualidade indizível, enfim, tudo o que de mais possamos definir como a antítese do objectivo da fé: a certeza de uma boa colheita após uma vivência ética dedicada à partilha. O mundo dos deuses ou o céu é o lugar da perdição, numa palavra. Desta forma, singrar na fé nunca foi o mais importante. O que a fé dá é que foi decisivo para as supostas venturas celestiais. E a fé tem dado muito.

O Cristianismo pregou o desprendimento dos bens terrenos. Oh! Fantástico. Mas simultaneamente refinou essa tese ao defender que os mesmos deviam ser entregues a Deus, ou seja, às igrejas, no seguimento das práticas religiosas pagãs, sem alterar uma vírgula.

Com isto, o ouro com que se revestiram as estátuas e as imagens nos templos, a faustuosidade dos mesmos e a arrogância dos seus celebrantes, paramentados de igual modo, têm sido o rosto da manipulação da fé. Assim, jamais faltou quem dela cinicamente usasse e abusasse, aprisionando-a na crendice e na superstição, tornando cobiçada a casa dos deuses/de Deus, transformada em tesouro mais que em casa de oração.

O episódio da expulsão dos vendilhões do Templo, por Jesus (Mt 21:12-13; Mc 11: 15-17; Lc 19: 45-46; Jo 2: 13-16), é o exemplo de que aquilo que o dinheiro compra não pode coexistir no espaço da prece. Os negócios terrenos nada têm a ver com matéria de fé, e os templos não são centros comerciais. A expulsão tem também o sentido de que nem tão pouco se deve deixar aproximar as riquezas da área envolvente do Templo. Jesus não está a condenar a actividade comercial em geral, mas sim naquele espaço específico. Por outras palavras, a fé é caminho para outras realidades e o templo o espaço privilegiado para as mesmas.

Os tesouros, acumulados nos templos ou não, entre traças e ferrugem e atractivos para os ladrões, contra os quais Jesus alertou (Mt 6: 19-20; Lc 12: 33-34), foram, pelos grupos religiosos, utilizados para comprar favoritismos, influências, criar redes de corrupção. Nunca estiveram ao serviço de causas nobres, por mais que o queiram afirmar, ou então estiveram na directa proporção de quem dá um chouriço em troca de um porco gordo. Eles podem estar lavados pela fé que os dá, na ingenuidade de assim ganhar o céu, mas estão manchados de sangue no uso posterior pelas organizações religiosas.

O ritual é precisamente isso. A água ou o vinho são servidos pelo celebrante, em nome dos deuses/Deus, em taças do mais fino ouro, tal como o vinho nalguns ritos cristãos. O ritual, como se sabe, pretende ser uma representação mimética de algo muito importante que aconteceu em tempos idos, relembrando-o, é portanto um trabalho de memória, transportando os crentes para outro espaço, outros valores, outros significados, outras forças. No conjunto, são os elementos manipuláveis pela hipocrisia, inculcando no crente a ideia de que a oferenda o transporta a esse mundo. O factor religioso implementou no coração humano que esse mundo será tão mais generoso quanto a oferenda for generosa.

Por outro lado, a fé tornou-se egoísta, porque indiferente ao mau uso da oferenda e ao serviço do enriquecimento dos templos. Desenvolveu um sistema de trocas do tipo “eu dou para que tu me dês”, ou “eu dou porque acredito na tua força desmedida”. Esta prática tem feito parte de uma forma de perspectivar a religião como algo que se impõe ao homem/mulher, um artifício ou um postiço pela forma como tem descriminado os crentes: os mais ricos teriam supostamente um lugar entre os deuses/Deus que estaria completamente vedado aos pobres. Por outras palavras, os pobres eram duplamente marginalizados, míseros na terra e no céu.

Esta forma de fé dispensa grandes ideais de vida religiosa. No caso do Cristianismo dispensa o trabalho introspectivo de modificação interior, propósitos de santificação bem como o tornar factíveis princípios teológicos conducentes a uma vivência religiosa libertadora. Por exemplo, ir a uma romaria em honra de determinado santo é visto por muitos como um acto de fé, mas na maior parte dos casos trata-se de uma prática supersticiosa com o objectivo de exorcizar um mal.

Ora, para lá daquilo de que somos portadores intrinsecamente, bem como de todas as práticas exteriores de fé, torna-se imperioso que a religião eduque num rumo verdadeiramente emancipador, isto é, para a não dependência. Isto significa que é fundamental tomar consciência de que também se aprende a ter fé. A religião está a confrontar-se com essa realidade. Já não pode dar primazia ao aspecto ideológico, mas sobretudo a um projecto de libertação. Ter uma religião não é possuir uma ideologia como quem pertence a um partido político, mas seguir uma via com a qual o crente se identifica por exclusão de todas as outras, porém sem as rejeitar e respeitando-as. Ter uma religião é aderir a uma discursividade que coloca o crente desperto para a realidade, e não na espectativa do surgimento de um ser que a qualquer momento pode aparecer e fazer eclodir uma nova ordem no mundo. O pensamento religioso não é o pensamento mágico, nem os profetas são ilusionistas. Como é que isto é possível? Através de uma educação religiosa vocacionada para a experiência pessoal, as vivências culturais dos crentes, os seus objectivos emancipadores, a forma como emerge a sua fé.

O Espiritismo vai mais longe. Encara a fé numa duplicidade humana e divina, isto é, a fé não é religiosa. Isto significa que o nosso equilíbrio passa pelo bom uso das duas vertentes, a saber, o humano da nossa vivência terrena, mas simultaneamente o espiritual, sem pitafes dourados nem indumentárias complexas. Isto não significa que os condene, mas tão simplesmente que os considera desnecessários e obsoletos.

Por isso a fé é uma força que nos leva a agir deste ou daquele modo, é um impulso inexplicável. Mas não é uma força salvadora. A salvação só se consegue mediante a prática da caridade. Esta tese tem a sua raiz no pensamento paulista, o qual transfere a caridade para um lugar de uma superioridade de tal ordem de grandeza que implicaria sermos outros para a compreendermos. (ver O Evangelho segundo o Espiritismo, caps. XV, XIX).

Qualquer homem/mulher pode dizer-se cristão/ã ou budista, simpatizar com os seus aforismos ou as temáticas de perícopas que lhes são atribuídas. Contudo, seguir cada um dos profetas de uma forma livre e emancipada, mediante uma posição crítica e altruísta, tal proeza já não é para qualquer um. Jesus e Buda falaram para o mundo enquanto o conjunto de todos os seres humanos, superaram o Judaísmo e o Hinduísmo de então, respectivamente, fazendo cada um da religião o ponto de partida para voos mais altos, isto é, a transposição das barreiras ideológicas segregadoras, convidando todos os homens e todas as mulheres para o banquete da Paz universal.

Se tomarmos como referência o Novo Testamento, deparamos com o binómio seminal Baptista e Jesus. Caminham paralelos, remetendo-nos para a grande questão do arrependimento e do amor, respectivamente. Já em S. Paulo, entre a fé, esperança e caridade (nalgumas traduções amor (1), o que é mais abrangente e correcto), a maior é a caridade, não a fé nem a esperança, o que, no que diz respeito à fé, é bastante curioso.

Aprendemos que a fé é remetida para segundo ou terceiro plano, em detrimento de uma praxis vista como o modo como exteriorizamos uma vivência interior, tornando-a quase desnecessária ou mesmo silenciando-a. Faz todo o sentido. Fazer o bem não implica a fé, mas a fé sem a prática do bem é nula.

Parece que a fé tem muito que caminhar. Não é o mundo que a faz perigar, mas antes a sua fraca afirmação da gratuidade, a ascensão a um nível axiológico que encare Deus como libertador. Ainda temos pouca fé.

Sabemos que nos momentos complexos ela está lá, está sempre presente. Nesses momentos desenvolve a coragem e uma força incomensurável. É o tão característico grito de fé que tanto espanto nos causa, e que nos momentos em que tudo parece desabar algo se ergue a partir do nada. A fé é o nascer de tudo no meio desse nada.

Ainda não somos Abraão. Quanto a isso ainda estamos na outra galáxia. Mas somos transporte de uma Força sem nome nem imagem, ausente do nosso aparelho conceptual, que tem um Reino e que exige apenas o Bem para lá entrar. Não é apenas espectacular chegar à noção dessa Presença, é espantoso como falamos Dela, assim como é bela e grandiosa a Sua Revelação. A fé tem aqui o seu terreno fértil, mas somente quando estiver emancipada de crendices e da ilusão de poder onde ele definitivamente não está.

É inútil dizer que o mundo está em convulsão. Nunca deixou de o estar. O humano é um ser de problema e o nosso humanismo ainda não subiu aos degraus mais altos da tolerância, nem da cegueira do deslumbre. Ainda não estamos cegos de luz, mas de ignorância. Desconhecemos o deslumbramento da fé que transporta montanhas. Quando pronunciamos a palavra fé, o que dizemos concretamente? Algo desconhecido, mas é preferível o incómodo da ignorância ao abismo da falta de um referencial como aquele a que chamamos Reino de Deus.
Margarida Azevedo
1. Do gr. Ágape: afeição; amor fraternal; objecto da afeição; no pl. Ágapes, refeições fraternais dos primitivos cristãos.

As Testemunhas de Jeová traduzem por amor.
Bibliografia consultada:

KARDEC, A. L´Evangile selon le Spiritisme, Marly-le-Roy, Les Editions Philman, 2002, caps. XV, XIX, pp.237- 245; 294 – 302.

LINDBERG, Carter, História do Cristianismo, Lisboa, Editorial Teorema, 2007, cap. 9, Pietismo e Iluminismo, pp.167-180.

PEREIRA,I., S.J.Dicionário grego-português e português-grego, Braga,Livraria A.I., 1998.

sexta-feira, junho 21, 2013

AS IDEOLOGIAS MATERIALISTAS NÃO SE AJUSTAM À MENSAGEM DOS ESPÍRITOS




Jorge Hessen

http://aluznamente.com.br

Deus não concede privilégios a ninguém, e, se há sofredores e felizes é por força do mau ou bom uso do livre arbítrio do Espírito. Por força da liberdade de escolha, cada pessoa decide qual o caminho a seguir. Não é com regozijo que coexistimos com o infausto vulto do “mendicante social”. Quem é tal figura? Ressalvando-se as exceções, não ignoramos que há pessoa insensível, usurpadora, que abomina trabalhar, não produz nada para a sociedade e (sobre)vive vampirizando os recursos dos programas sociais do estado. Apresenta-se como uma coitadinha, “abandonada social”, e exige impetuosamente muitos direitos para si, despreocupada com os próprios deveres.

Existe pessoa que fala de si como uma infeliz desfavorecida, mas não cumpre suas obrigações, ou se as cumpre, entende que está sendo explorada. Não gosta de estudos, detesta leituras (quando alfabetizada). Quase sempre por ter ojeriza à sala de aula e professores, esquivou-se da escola, mas responsabiliza a sociedade e o “(des)governo” por sua condição de iletrada e pobre. Não esqueçamos que Deus proporciona a todos os seres idênticas e incessantes oportunidades de crescimento. Coloca em estado latente o mesmo poder, a mesma sabedoria e os mesmos estímulos evolutivos para todos, no longo e difícil trajeto para a perfeição.

Nessa linha de raciocínio, o que pensar do cidadão que execra e exorciza tudo o que exige raciocínio? Aquele que vive na sua mansarda sem quaisquer bens, exceto um aparelho de TV, para poder discutir sobre capítulos de novela e jogos de futebol. Comumente alimenta a fé nas religiões que praticam o comércio espiritual, prioritariamente as que incluam exorcismos e rituais com berreiros e espasmos convulsivos. Culpa o destino, o governo, a raça, a cor, o bairro onde reside. Em suma, a responsabilidade da sua inércia é sempre do outro.

Por outro lado, há cidadãos que laboram de sol a sol com dignidade para enaltecer a vida na sociedade. Por oportuno, e com muita exultação, evocamos aqui no debate o célebre José Mujica, atual presidente do Uruguai, ele que é considerado o chefe de estado mais despojado do mundo. Possui um fusquinha e dedica cerca de 90% do salário para obras sociais. Vive assim por opção. É um idealista sincero e crê na igualdade e justiça dos homens para a conquista da paz. Adora mencionar Sêneca (1) quando diz que "pobres são aqueles que precisam de muito". Não proclama a "valorização da pobreza", mas do comedimento no viver. (2) Sem dúvida, Mujica é uma alma grandiosa e deveria ser inspiração para os homens públicos do Brasil.

O presidente uruguaio, em que pese o seu estupendo exemplo de vida, é arauto de uma sociedade igualitária. Será possível ou mera utopia o sonho de Mujica? Deus a nenhum homem concedeu superioridade natural, nem pelo nascimento, nem pela desencarnação: todos aos seus olhos são iguais. Eis o sentido correto da Lei de Igualdade. Portanto, perante Deus somos iguais a despeito da colossal fissura que se abre pelas disparidades sociais.

O Criador criou-nos essencialmente idênticos, contudo nem todos fomos criados na mesma época, e, por conseguinte, uns são mais velhos e somam maior conjunto de aquisições do que outros mais “jovens”. As desigualdades entre nós estão na diversidade dos graus da experiência alcançada e do exemplo nos caminhos do bem sob a tutela do livre arbítrio.

A variedade das aptidões, ao contrário do ideal igualitário, é um meio propulsor do progresso social, já que cada homem contribui com sua parcela de conhecimento. As desigualdades que apresentamos entre nós, seja em inteligência ou moralidade, não derivam de privilégios de uns em detrimento de outros, mas do maior ou menor aproveitamento desse “tempo cósmico”, no esforço do alargamento das habilidades e virtudes que nos são inerentes, consoante o melhor uso do livre arbítrio por parte de cada um. Destarte, as desigualdades naturais das aptidões humanas são os degraus das múltiplas experiências do passado. E cremos que essas diferenças constituem os agentes do progresso e paz social.

Como se vê, a nossa tese é contrária à pretendida igualdade sócio-econômica, frequentemente artificial na vida de relação dos Espíritos encarnados. Por que não são igualmente ricos todos os homens? Com base nas instruções do XVI capítulo do Evangelho Segundo o Espiritismo, aprendemos que não o são por uma razão muito simples: por não serem igualmente inteligentes, ativos e laboriosos para adquirir, nem sóbrios e previdentes para conservar. A pobreza é, para os que a sofrem, a prova da paciência e da resignação; a riqueza é, para os outros, a prova da caridade e da abnegação. (3)

A desigualdade social é o mais elevado testemunho da verdade da reencarnação, mediante a qual cada espírito tem sua posição definida de regeneração e resgate. “A pobreza, a miséria, a guerra, a ignorância, como outras calamidades coletivas, são enfermidades do organismo social, devido à situação de prova da quase generalidade dos seus membros. Cessada a causa patogênica com a iluminação espiritual de todos em Jesus-Cristo; a moléstia coletiva estará eliminada dos ambientes humanos. (4)”

Carece, pois, o pobre de motivo assim para acusar a Providência, como para invejar os ricos e estes para se glorificarem do que possuem. Se abusam, não será com decretos ou leis santuárias que se remediará o mal. As leis podem, de momento, mudar o exterior, mas não logram mudar o coração; daí vem serem elas de duração efêmera e quase sempre seguidas de uma reação mais desenfreada. A origem do mal reside no egoísmo e no orgulho: os abusos de toda espécie cessarão quando os homens se regerem pela lei da caridade. (5)

A Mensagem de Jesus não preconiza que os ricos do mundo se façam pobres e sim que todos os homens se façam ricos de conhecimento, porque somente nas aquisições de ordem moral descansa a verdadeira fortuna. Reconhecemos que o socialismo que vigora em muitos países da Terra é uma bela expressão de cultura humana, enquanto não resvala para os polos do extremismo. Porém, “a concepção igualitária absoluta é um erro grave dos estudiosos, em qualquer departamento da vida. A tirania política poderá tentar uma imposição nesse sentido, mas não passará das espetaculosas uniformizações simbólicas para efeitos exteriores, porquanto o verdadeiro valor de um homem está no seu íntimo, onde cada espírito tem sua posição definida pelo próprio esforço;”. (6)

Aos radicais segmentos progressistas vimos esclarecer que aceitar os preceitos espíritas não significa concordância conformista dos problemas de natureza econômica e política, porém maior compreensão desses estágios humanos. Os conceitos espíritas não concebem as desigualdades como algo estático e insensível a mudanças pelas nossas ações. As lições espíritas jamais visam privilegiar os interesses de uma elite rica no campo social. A necessidade de se transformar a nossa sociedade desigual em uma sociedade justa é o escopo doutrinário, sem necessidade absoluta de ideologias materialistas e tacanhas para esse desiderato.
Referências bibliográficas:

(1) Contemporâneo de Jesus foi um dos mais célebres advogados, escritores e intelectuais do Império Romano

(2) Disponível em http://epocanegocios.globo.com/Inspiracao/Vida/noticia/2013/05/vida-simples-de-pepe-mujica-presidente-do-uruguai.html

(3) Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. XVI, "Desigualdades das Riquezas"; RJ: Ed. FEB, 2000

(4) Xavier, Francisco Cândido. O Consolador, ditado pelo espírito Emmanuel, RJ: Ed FEB 2001, pergs. 55,56,57

(5) _____, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. XVI, "Desigualdades das Riquezas"; RJ: Ed. FEB, 2000

(6) _____, Francisco Cândido. O Consolador, ditado pelo espírito Emmanuel, RJ: Ed FEB 2001, pergs. 55,56,57



sábado, junho 01, 2013

O ANIMAL QUE FALA DE DEUS


Sendo verdade que o nosso cérebro tem uns meros dois minutos na História da Criação, se tomarmos como referência o espaço de vinte e quatro horas, como pensa Hubert Reeves (1), parece-nos plausível que a linguagem, como manifestação conjunta de sensibilidade, alguma racionalidade e campo lexical, tem que ser forçosamente bastante rudimentar.

Esta perspectiva remete-nos inexoravelmente para a necessidade de repensar o nosso processo evolutivo, não só como factor de desenvolvimento intelectivo, mas também como consequente dilatação dos horizontes lexicais.

O que somos? Um animal que fala, que vive as suas percepções, bastante condicionadas pelo inconsciente, que é não mais que o vasto armazém de que os genes nos dão “alguma” informação? Por outras palavras, seremos apenas um símio que fala? Um chimpanzé adaptado a condições sociais que ele mesmo criou, que vive cada vez mais uma vida distante da Natureza?

Por outro lado, a defesa dos animais tem tomado proporções cada vez mais incisivas, objectivas e, principalmente, mais culpabilizantes dos comportamentos nocivos do “chimpanzé falante” para com os seus congéneres. Não poderemos dizer que isso é uma forma de relevar o lado recôndito das nossas origens, que não queremos ver depreciadas, remetidas para o nada de direitos, ausência de valores? Olhar para os animais é reflectirmo-nos, repensarmo-nos na nossa animalidade, é o que parece; mas também a incongruência da nossa “humanidade”: negligência e abandono dos filhos e dos idosos, distância dos laços de grupo, perda da noção de comunidade.

Para muitos, e cada vez mais, esse olhar significa essencialmente uma reflexão antecipada do que virá a ser, neste mundo caracterizado pela transformação, aquele que por hora partilha connosco este planeta apresentando-se com pêlo espesso ou plumagem exuberante, e que um dia o virá a partilhar na condição de um ser radioso. E como nada evolui ao mesmo ritmo, seria muito bom, excelente, que esse ser radioso já fosse o “chimpanzé falante”!

Mas este não é o problema fundamental, parece-nos. O que se nos revela como verdadeiramente digno de menção é o facto de tudo isto parecer que tememos ser os únicos a viver a experiência da racionalidade. Primeiro, porque até agora ela tem-se revelado um presente envenenado, isto é, desconhecemos o que fazer com ela. Aquilo a que chamamos racionalidade tem sido uma forma de alienação dos nossos mesmos direitos enquanto ser animal, racional, espiritual (e o que será tudo isto?). A razão tem-nos conduzido a falácias, tanto assim que até o mundo invisível que dizemos estar ao nosso redor nos engana nos seus discursos, aparentemente racionais.

Parece que esta temeridade de estarmos sozinhos na razão tem sido o móbil para a construção de todo um vasto mundo fantasioso, um mar de códigos, mitos dos quais não conseguimos sair. Este “chimpanzé falante” tem utilizado a sua linguagem ao serviço da construção de um mundo paralelo à Natureza, artificial, descorado, porém atractivo, mas que não passa disso.

Os seres racionais a que chamamos Espíritos são por nós investidos dessa artificialidade linguística de tal forma que o que dizem pode ser outra coisa, só que a nossa razão ainda não é capaz de descodificar. Por outras palavras, não sabemos realmente o que são nem quem são. Afirmar que são os seres racionais que viveram na Terra é muito pouco. É apenas uma forma de não calar a sua existência, de os sentir perto e tão longe. Falam como nós, partilham connosco a experiência da linguagem, são os nossos congéneres em matéria discursiva, porém em dimensões que nos escapam. Do inferior ao superior vivemos a ignorância característica da nossa própria animalidade. Animalidade que em nós é desconcertante, pois já é espírito aflito no seu corpo, ténue apresentação do indizível.

Assim, urge perguntar: O que estará para além da razão? Porque têm falado contra ela as religiões? O fenómeno religioso apresenta-se como um caminho para uma nova discursividade para a qual a razão tem sido encarada como o inimigo principal. Hoje pretende-se o equilíbrio entre ambas. Mas isso não anula a fragilidade da razão. Não é porque ela está a tomar lugar no altar da adoração que se torna mais clara e convincente. A razão não pode ser adorada como um deus. A razão falha como aquele que a produz, assim como a fé que falha como aquele que acredita. Parece que estamos encurralados.

É a vertente animal a querer dar-se ares de grandezas na luta pela rejeição do símio que ainda é, e sê-lo-á por muito mais tempo. Procuramos o sentido dos sentidos, a palavra das palavras, a alteridade que a cada passo se faz sentir, altaneira.

Fé e razão, eis o grande binómio responsável por grandes momentos de contradição e lutas emancipadoras. Elas mais não são que o despotismo entre mitos e as formas diferentes de os encarar.

Desta forma, que fazer se um ser muito especial nos aparecesse de um momento para o outro? Um ser com outro sentido discursivo, outra fé, outro objectivo para o conhecer, descobrir? Um ser que nos desvendasse mistérios, tirasse o véu que cobre esta animalidade tão nossa? Que fazer se um ser nos quisesse, por momentos, retirar toda a simialidade que ainda nos caracteriza? Um ser que nos descobrisse (= tirasse a cobertura) perante nós mesmos, o mundo, o universo?

Não deturparíamos o seu discurso? Em que medida poderíamos afirmar que atingíamos o sentido que está para além do nosso?

Se lhe chamarmos Jesus, verificamos que estamos longe de compreender o alcance das suas afirmações. Ele não pretendeu impor-nos Deus, não nos legou qualquer explicação, palavra que O dissesse. Deus não se diz, vivencia-se, caminha-se para Ele. Foi isso que Jesus nos veio ensinar. Ele falou do Reino de Deus, não de Deus. A nossa animalidade está aquém de um discurso da sublimidade. Os exemplos que deu ao longo da sua vida pública, através das parábolas, foram todos eles referentes ao mundo em que vivemos, à nossa realidade, aos nossos modos de vida. Não podia ser de outro modo.

Porém, nem por isso deixaram de ser desconcertantes. Ensinar a um animal bípede os caminhos do Reino de Deus é senti-lo numa encruzilhada, perceber que atingiu um ponto de viragem, um grande momento.

Que símio é este que, na sua animalidade, já consegue pensar que há um Reino que é de Deus, movido por um ser que parece vir de um mundo longínquo, para o qual toda e qualquer discursividade não faz sentido, mas que está empenhado em novos actos e novas perspectivas?

Pensar no Reino de Deus é deslumbrante, tendo em consideração que vem de um símio. Como o fará quando deixar de o ser? Mais três gramas de cérebro é o que nos distancia do chimpanzé. É bom não esquecer.
Margarida Azevedo
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(1) HUBERT, Reeves, A Hora do Deslumbramento, Terá o Universo um Sentido?, Lisboa, Gradiva, 1986, pp. 52-53.