domingo, abril 17, 2022

PÁSCOA 2022

“ (…), de novo gritando com voz grande, deixou o espírito.” Mt 27: 50 “Mas Jesus, soltando um grito enorme, expirou.” Mc 15: 37 “Dando um grito forte, Jesus disse: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.” Tendo dito isto, expirou.” Lc 23: 46 “(…) e, inclinando a cabeça, entregou o espírito.” Jo19:30 “Da morte brota a vida.” Dimas de Almeida Como falar da Páscoa hoje? Que mensagem, que mudança, que inovação, mas principalmente que universo de esperança nos oferece? Vive-se uma época de imposição rígida, descontextualizada no tempo e no espaço, hipoteticamente disfarçada por meio de ideais que não estão definidos e que se mostram cada vez mais escusos. O século XXI não deixou partir os fantasmas. Percebeu-se que alimentá-los é enfraquecer os mais fracos e fortalecer os mais fortes. A designação de traumas de infância veio para ficar, é o grande cliché. Os espertos servem-se disso cruamente, aventando saídas airosas que vão desde a expulsão definitiva dos demónios às curas das mais variadas doenças, passando pelo apagão da memória traumática. São as tais máximas libertadoras individuais e colectivas, que tanto podem vir de políticos hábeis, como de líderes religiosos perspicazes. E assim se destroem países em nome desses fantasmas, se enfraquecem as forças de bem, reduzem-se a pó memórias, impõe-se pela força bélica uma flacidez à palavra; num estalar de dedos cai-se no trágico. O pão sem fermento, símbolo da escravatura em terra estrangeira, as ervas amargas, o vinho, tornaram-se outros porque “tornei-me novamente escravo, só que desta vez na minha própria casa!” De repente, a casa caiu, afundou-se no vazio e no sangue, “caí morto no chão da minha rua, ou quando ia buscar pão, algumas ervas, um pouco de vinho” simbolizados em algum leite, água, sopa, fraldas das mãos dos anjos da paz. De repente, até parece que nem tampouco tive casa alguma vez. Que Páscoa!” Vejamos, os evangelhos foram escritos numa época em que Jesus era insignificante, quer para o mundo quer para a cultura. No entanto, o que é que aconteceu na vida daqueles homens e daquelas mulheres para proclamarem o amor no meio do ódio, a vida no meio da morte? Que mudança de perspectiva foi essa e como aconteceu? Foi semelhante à nossa, hoje? O Império Romano também foi um invasor, uma potência com um vastíssimo território conquistado. Há semelhanças com o ano de 2022? Tal como para o povo hebreu, também hoje só queremos a libertação da nossa terra, da nossa casa, mas livres para traçar o nosso caminho. Porque a nossa casa encontra-se num contexto universal, está naturalmente cercada de outras casas, fazendo um mundo, em conjunto. De facto, tudo isto é notável: nos momentos de grande catástrofe individual e colectiva, quando estão em causa soberanias, livre pensamento, livre manifestação de fé, a imagem do Egipto aprisionador, a renitência do faraó em libertar o povo hebreu e a respectiva luta de um povo pela sua autonomia, o concurso de actos mágicos e insólitos, a majestade dos elementos da Natureza implicados nos acontecimentos, a esperança, enfim, vêm-nos à memória como a Grande Memória, paradigma de todas as memórias, de todos os episódios, tão complexos quão deploráveis, de soberanos que se julgam acima de todas as coisas. A fé de Israel dá-nos a noção da importância que tem a liberdade como força identitária de um povo, de que só por seu intermédio a fé se torna força de coesão, unificadora de um mesmo ideal. Jesus proclamou um poder que até hoje ainda não entendemos. Sabemos que é um poder que põe em causa poderes, que os minimiza e esmaga. É natural, se considerarmos que o poder não advém nem da justiça, nem da temperança, nem de qualquer outra virtude. O poder é filho da ilusão, da discórdia, do separatismo, do metal com que se compram todas as coisas, até gente. Não dizemos “Pessoa” porque tal conceito é filho do pensamento cristão e significa Ser, Ente portador de uma individualidade inviolável, criado à imagem e semelhança de Deus. Contrariamente, somos uma humanidade cada vez mais vulnerável, refém do poder que não é poder, sem casa, escrava do perecível e transitório. Porém, Jesus confronta-nos com o facto incontornável da Cruz, que só faz sentido porque há a Ressurreição. Não há maior esperança nem maior alegria que a de saber que o Reino de Deus é, apesar de todas as vicissitudes, o refúgio para os arrependidos, para todos aqueles que se julgavam perdidos e condenados para sempre. Só a qualidade do bem possui a mercê de eternidade, lembremos. O mal termina quando o coração humano sair das cavernas da ignorância destruidora, e viver na Ressurreição e não na Cruz. Isto significa que há um horizonte de sentido que surge com a morte, a não-morte. Uma loucura inspiradora, não só dos evangelhos, mas da poesia. Escrever, poetar sobre um crucificado, esmaga os ideais da heroicidade e inaugura a eternidade da pessoa na fusão com Deus. O ser humano tem que se apaixonar pala Vida. Tomemos o exemplo de Jesus. Esteja onde estiver, como estiver, os profetas não são prisioneiros das nossas vãs e desastrosas doutrinas. Eles são forças ao serviço de Deus. Este judeu muito especial veio fazer-nos despertar para a noção da fraqueza que é força, a da força que é fraqueza; que o limitado e o ilimitado se confundem, assim como o dependente e o independente. A morte não é uma fatalidade, é a grande passagem. Nesta Páscoa, sinta-se um ressuscitado, um desfatalizado; passe para um qualquer lado das coisas tão simples e tão belas que este planeta tem para nós. Presenteie-se com a liberdade e ore como só oram aqueles que pretendem ser hoje melhores do que ontem e amanhã melhores do que hoje. Não se deixe enganar pelas coisas vãs e, com Jesus, coma a Páscoa da Terra Prometida no seu lar em nome do fim da escravatura e na certeza da Ressurreição. Que Jesus esteja consigo, hoje e sempre. Ámen. Margarida Azevedo Citações do evangelho: Bíblia, vol.I,, Novo Testamento, os Quatro Evangelhos, Quetzal, Lisboa, 2016, trad. Frederico Lourenço.

domingo, abril 03, 2022

JESUS E O MITO DO SALVADOR MILAGREIRO

(continuação) 2ªParte Mercê da forte influência do Paganismo, a que jamais deixaremos de pertencer, e uma mais-valia para a fé cristã, deu-se uma sobrevaloração do milagroso nos meios cristãos. Por um lado, a prática pagã é fértil em espiritualidade: a comunicação com os Espíritos, impondo-se pela atracção pelo oculto presente nas forças da natureza, cujo desvendar, crê-se, não está ao alcance de toda a gente, impõe a atracção pelo misterioso. Por outro, a forte influência do helenismo no judaísmo contemporâneo de Jesus, e entre os primeiros cristãos, sedimentou o velho pensamento filosófico pré-socrático de que “a verdadeira constituição das coisas gosta de ocultar-se” (Heraclito de Éfeso) (1). Ora, tendo como referência um Crucificado/Ressuscitado, e com ele o sofrimento como bandeira da purificação, caminho directo para Deus, tornou-se difícil articular a prática cristã com a mística pagã. Além disso, tendo em conta que o mais comum dos mortais pretende ter saúde, viver em paz e ser feliz, o lado milagreiro venceu fazendo de Jesus o seu digno e verdadeiro representante. Mais, o único representante legítimo, porque “muitos falsos profetas se levantarão e desencaminharão muitos” (Mt 24: 11) (2). Assim se deu o mote para que os cristãos depressa impusessem os seus milagres contra os dos pagãos. Isto é, perante a dor e as crises existenciais da vida, é natural que só por meio de uma intervenção sobre-humana, ou seja, divina, seja possível alguns momentos de felicidade neste mundo, os quais só através da intervenção ou em nome de Jesus é possível. Assim, para muitos cristãos, Jesus apresentou-se como o Messias, importante por ver o mundo ao contrário (as parábolas vão ao arrepio da nossa racionalidade, tal como o sermão da montanha), mas sobretudo como o investidor de forças ocultas nos seus seguidores, tornando-os capazes de falarem línguas desconhecidas, curarem os enfermos e espalhar a Palavra. Ser cristão tornou-se sinónimo de um ser possuído por uma força sobrenatural, uma fé superior, um transportador de uma mensagem salvífica, milagreira, superior a todas as outras, pois que o próprio Jesus disse que “vós sois o sal da terra (…). Vós sois a luz do mundo” (Mt 5: 13-14) (3). Desta forma, o Jesus-Milagreiro-Messias, enfim, o Jesus-Deus sobre-humano fazedor de deuses, (que nada têm a ver com os referidos no salmo 82), sobrepôs-se ao Jesus profeta pregador do Reino de Deus. Não perceberam que o espalhar a Boa-Nova, curar os enfermos e expulsar os demónios não são actos milagrosos, nem de supostos poderes ocultos, mas uma resultante da muita fé com o amor incondicional ao próximo. O cliché “Eu Sou o caminho e a verdade e a vida. Ninguém chega ao Pai a não ser através de mim” (Jo 14:6) (4), que, num contexto joanino, nada tem a ver com o Jesus-Deus milagreiro, é o referencial para Deus; em João não há milagres, mas sinais, o que não é a mesma coisa, o que significa que caminho, verdade e vida vêm na linha do muito amar; tudo o que acontece de espantoso não é milagre, mas o resultado do poder do amor porque o amor é a coisa mais poderosa que há. O amor é a voz de Deus no coração humano. Porém, se o cristão pretende flagelar-se para se identificar com a crucificação; estudar as parábolas, com as quais se identifica no quotidiano; meditar através dos hinos cristológicos, como força e coragem para sedimentação da fé; desenvolver o amor incondicional ao próximo, isso vai depender do modo como está na fé. Tudo é muito válido, porém, o melhor seria que todos se identificassem com a união e paz no mundo, a começar pelos seus próprios corações, com o sacrifício dos pensamentos e comportamentos viciosos, que fugissem da puritanice hipócrita e que vissem em Jesus um homem ao serviço de Deus. Ser cristão não significa crucificação, mas ressurreição. Contrariamente, na ânsia de ser como Jesus e de o imitar, foram implementadas práticas sacrificiais, assemelhando-se, pensam, à crucificação, para agradar a Deus, ao invés de um trabalho intenso sobre a modificação interior. Sobre esta temática, o Espiritismo afirma claramente: “Não enfraqueçais o corpo com privações inúteis e macerações sem objectivo, pois que necessitais de todas as forças para cumprirdes a vossa missão de trabalhar na Terra. Torturar e martirizar voluntariamente o corpo é contrariar a lei de Deus, que vos dá os meios de o alimentar e fortalecer. Enfraquecê-lo sem necessidade é um verdadeiro suicídio. (…) Se quereis um cilício, aplicai-o à alma e não ao corpo; mortificai o espírito e não a carne; fustigai o orgulho; aceitai as humilhações sem deplorar a vossa sorte; mortificai o amor-próprio; imponde-vos com firmeza contra a dor da injúria e da calúnia, mais pungente do que a dor física” (5), porque o cristão é um aprendiz e praticante da modificação interior. Para o Espiritismo, Jesus, o Cristo, não é um ser mitológico e milagreiro, mas o Messias para quem o Reino de Deus começa na luta contra as más paixões e na ajuda incondicional ao próximo: “Se suportardes o frio e a fome para aquecer e alimentar os necessitados, e se o corpo com isso sofre privações, eis o sacrifício abençoado por Deus. Vós que deixais as vossas salas elegantes e perfumadas para irdes à mansarda imunda levar consolo; vós que sujais as mãos delicadas a tratar das chagas; vós que vos privais do sono para velar à cabeceira de um doente que apenas é vosso irmão em Deus; vós, enfim, que gastais a vossa saúde na prática das boas obras, tendes aí o vosso cilício, verdadeiro cilício abençoado (…).” (idem, ibidem). Não compreendendo, por um lado, a crítica feita por Jesus ao Judaísmo de então, nem o fundamento da Natureza para o Paganismo, por outro, os cristãos procederam a uma fusão entre a imagética pagã e a lei judaica. Deus tornou-se representável na figura de Jesus. Neste ponto, foi feita tábua rasa do pluralismo judaico, e com o tempo do próprio cristianismo das origens, olvidando que na casa do Pai há muitas moradas (Jo 14:2), e a importância da Lei e dos Profetas (Mt 5: 17-19), que Jesus não anulou, mas cuja importância reforçou ao criticar o modo como os crentes a praticavam, principalmente os seus representantes. Isto é, Jesus veio sedimentar o papel da fé como protagonista da História, num processo evolutivo que não fechou a porta, e que, segundo os evangelhos, assenta na necessidade de o crente se repensar existencialmente. O sonho ou a esperança da vinda de um Messias profético, sacerdotal e político, para os judeus, tem o tamanho do dos cristãos, para quem o Messias já veio. Só que o dos cristãos é um Messias-Deus, todo-poderoso, um fazedor de milagres que vem por ordem no mundo. Ora, o Messias político, profético e sacerdotal é um ser à escala humana, um Enviado, respondente às necessidades existenciais dos homens e das mulheres. Mas, vejamos, será que Jesus não foi tudo isso? Político: A laicização do Estado, “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22:21; Mc 12: 13-17; Lc 20: 20-26); profético: previu a destruição do Templo, no ano 70 (Mt 24: 1-2; Mc 13: 2; Lc 19: 44), a destruição de Jerusalém e catástrofes, (Mt 24: 6-9, 15-19; Lc 17: 31-35, 21: 10-24), fenómenos naturais (Mt 24: 29-Lc 21: 25-26); a mais importante quanto a menos praticada, podemos dizer ignorada e que vale sempre a pena recordar na íntegra: “Sobre aquele dia e sobre aquela hora ninguém sabe . Nem os anjos dos céus, nem o Filho; só o Pai.” (Mt 24: 36) (6). Dito de outro modo, há coisas que só Deus sabe e mais ninguém, estabelecendo o limite entre profecia e devaneio, entre as capacidades sempre limitadas dos seres criados e as ilimitadas do seu Criador. Por fim, o Messias sacerdotal: não às preocupações (Lc 21: 34-36), o ensino no templo (Lc 21: 37-38), o sermão da montanha (Mt 5,6,7) e na planície (Lc 6), o ensino através das parábolas. Ou seja, Jesus é o Messias, não é uma crendice do inconsciente individual ou colectivo, mas o profeta que mostra a outra face do político, do profético e do sacerdotal. Ter esperança de que todo o mal, todo o sofrimento têm um fim, que há uma justiça que vai vencer e que há um Ser Supremo que a comanda, em parceria com o arrependimento, é uma coisa; outra coisa é aniquilar o humano, isolá-lo do mundo, porque este é mau, com o objectivo de atingir um suposto estado de pureza numa fusão com Deus no mundo dos privilegiados, e por meio de uma conduta sacrificial. Se, para o primeiro, a vida já é suficientemente complexa e dura, para o segundo é-lhe acrescentado o suplício. O mito da terra antro de pecado, da sexualidade como acto vergonhoso, tombou num falso amar a Deus. A atracção sexual faz parte da nossa natureza, e da Natureza no seu todo. O erotismo é uma componente humana como outra qualquer. No evangelho é sobrevalorizado e tomado como referência de um acto exemplar de fé, de tal forma importante que faz parte dos quatro evangelhos, como um gesto cujo exemplo ficará registado para sempre e será lembrado em memória de quem o praticou (Mt 26:6-13; Mc 14:1-9; Lc 7:36-36-49; Jo 12:1-8). O resultado da imposição de celibato purificador e não como livre opção de vida, do acto sexual apenas com fins procriativos, porta aberta ao adultério, e não como manifestação de amor, do orgasmo como obra de satanás e não do natural equilíbrio psico-afectivo, deu no que deu. Nem vamos falar disso. Tudo isto faz parte do retrato de Jesus como um ser único na medida em que é capaz dos milagres mais incríveis, o grande mago. Abafar o importante quão decisivo papel da fé (Mt 9:22; Mc 5:34, 10:52; Lc 8:48); da observância do carácter provisório e pedagógico do milagre, isto é, teimando no erro, com toda a certeza novos tormentos surgirão e, por isso, “vai e não tornes a pecar” (Jo 8:11); mais importante ainda, “o que eu faço, vós também podeis fazer “ (Jo 10:34, 14: 1-17), significa retirar ao milagre a sobrenaturalidade que lhe é impingida pela ignorância dos crentes. Por fim, temos “sede perfeitos (Mt 5:48; Mc 32-364: 26-34, 13; Lc 6: 27; Jo 15:5), uma sobrevaloração da mudança imperiosa da nossa natureza (Mt 7:7, 11, 21: 22; Mc 9: 29, 11: 24; Jo 14: 13-14), com um suporte que move montanhas, a fé do tamanho de um grão de mostarda (Mt 17:20). Em suma, o milagre propriamente dito não existe, o que existe é a incomensurável força da fé. Não está em causa como e se aconteceram as ressurreições de Lázaro (Jo 11: 1-46), do filho de uma viúva (Lc 7: 11-15) e da filha de Jairo (Mt 9:18-26; Mc 5: 21-43; Lc8: 40-56). O que está em causa é que, teologicamente, essas ressurreições têm um período limitado, pois os ressuscitados, mais cedo ou mais tarde, irão morrer definitivamente. Então, qual o interesse nessas ressuscitações? Eis uma grande questão. Contrariamente, a ressurreição de Jesus é um acontecimento com carácter de eternidade: Jesus não volta a ser morto, porque a ressurreição de Jesus não é a ressurreição de um cadáver. É outra coisa. Não é um milagre, mas a eternidade da transcendência da vida como obra suprema de Deus. Ora, a imortalidade de Jesus tornou-se símbolo da certeza da imortalidade humana, a qual irá viver para sempre purificada. Mas não é para todos/as. Ela só está ao alcance daqueles que forem selecionados após a separação entre merecedores e não merecedores da mesma: os que mais sofrerem e cumprirem os preceitos de uma moral rígida. Assim, ao longo destes dois milénios, viveu-se a colagem da moralidade dos deuses pagãos a Jesus, com a sua agressividade e intolerância, com as suas mutações cognitivas face à relação com a Natureza e com a simbologia dos seus produtos, ao invés da procura de uma afinidade com os seus ensinamentos, principalmente no acrescento de amar o próximo como a si mesmo. A Bíblia Hebraica, a problemática em torno da Terra Prometida, os profetas, enfim, tornaram-se distantes, difíceis de compreender e apenas ao alcance de eruditos, de tal forma que o comum dos mortais, porque desprovidos de alcance intelectual e espiritual, permaneciam no analfabetismo bíblico. Chegou mesmo a ser pecado ler a Bíblia. É claro, se ela não for ensinada de que nos serve?! Na impossibilidade de anular o Paganismo, o Cristianismo impôs o sincretismo. As representações pagãs, onde que cada aspecto da Natureza e do Homem era representado por uma figura humana, animal ou mista (metade humana, metade animal), passou a ser representado pelos santos. Alguns com uma multiplicidade de atributos, como é o caso de Santa Maria (Nossa Senhora das Dores, da Boa Viagem, dos Remédios, etc.). Seguem-se os representantes das forças da Natureza, Santa Bárbara protectora contra as trovoadas; das diferentes partes do corpo humano, Santa Luzia protectora dos olhos; das profissões, motoristas e viajantes S. Cristóvão. Em suma, o Jesus milagroso é a grande comédia do Cristianismo. Se lhe adicionarmos a tragédia do sofrimento, temos uma fé baseada no terror. Ora isso não é fé, é um escândalo. Oferecer à sociedade a pobreza como uma virtude é estagnar o progresso. Fazer dos templos casas de refúgio de míseros, da interpretação dos textos discursos consoladores dos deserdados é iludir os crentes. Compreenda-se, rejeitar livremente a riqueza porque vê nisso uma forma de libertação e crescimento espiritual, é uma opção individual; impor essa prática como condição sine qua non universal, necessária ao progresso espiritual de todo o ser humano, é fanatismo, obsessão, erro crasso. Muitos são os caminhos para Deus, e viver à mercê de esmolas não parece que seja o mais assertivo. Rejeitar a riqueza é, com toda a certeza, bem mais fácil do que combater a luxúria, a maledicência e a inveja, expulsar a vaidade, desenvolver o gosto por servir ao invés de ser servido. Se quisermos falar de milagres, tomemos como exemplo o empedernido coração humano. Pregar o amor universal como Jesus pregou, acreditar que é possível sedimentá-lo de forma definitiva no coração do mais comum mortal humano, isso sim, é um verdadeiro milagre. Como Jesus acreditava em nós! O seu trabalho profético foi o de pregar o Reino de Deus, que está ao alcance de todos, independentemente de divergências de fé, religião, ritos, enfim, depositando a salvação nas mãos do próprio Homem através do amor a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Ter compaixão, ser generoso, ser compreensivo para com os outros, eis a verdadeira praxis da fé. Com isso, há uma difusão da fé como força tão livre quão maior o amor que o coração transportar. E é essa realidade metafísica do Reino de Deus que acaba por ser seminal a um novo entendimento da política: ou o ser humano se repensa e ruma à fraternidade, ou a estrutura da sociedade vive na espectativa de um milagre, ou seja, na aceitação da derrota humana Numa época caracterizada pela instabilidade, a arma devoradora de quem governa, só a fé com amor conseguirá arrepiar caminho. Jesus não veio para os pobres, como defende a Teologia da Libertação. Jesus veio para a humanidade inteira. As suas viagens custavam dinheiro. Talvez a famosa Maria Madalena fosse uma das entidades patrocinadoras, entre outras. Continuar a defender que o cristão é o pobrezinho, que é na pobreza que está a virtude dos cidadãos, ou que é dos pobres o reino do céu, é fazer do Cristianismo uma religião degradante e perpetuar o escolho entre ricos e pobres. O ser humano pensa que se tornou poderoso por meio da tecnologia, da ciência, e de toda uma série de conhecimentos que adquiriu. Deixá-lo pensar. É verdade que não é graças às religiões que as condições materiais da vida melhoram. Podemos dizer que não é esse o trabalho do religioso. No entanto, de certeza que não, de todo, o de perpetuar ideais miserabilistas para com isso encher os templos de crentes ávidos de uma nesga de justiça social e à procura de riqueza no céu. A fé não deve impor-se pela falta de meios materiais, mas evidenciar-se como força emancipada e emancipadora de um ser que sabe que há o Ser divino ao qual deve orar e pedir a força e a coragem para continuar a progredir. Hoje, estamos perante a difusão de novas formas de oração e novas formas de arte sacra. Há quem pense que esta está em crise. Não, não está. Apenas a necessidade de representação figurativa da fé passou a outro registo. Tornou-se mais abstracta, mais irrepresentável. Há uma profusão de uma série de figuras que passaram a fazer parte do universo de fé. Talvez porque mais livre e mais consistente com uma religiosidade associada à noção de Homem como ser cósmico; uma fé que toca o universo inteiro, ou melhor, o pluriverso. Se dantes a fé viajava nas caravelas à procura da descoberta de novos mundos, agora vai à procura de uma nova transcendência sem sair da sua casa. Nunca a mente humana se transportou tão longe, permanecendo no seu lugar existencial e identitário. Mas se o mito da pobreza como virtude, e o de Jesus como o seu representante têm que desaparecer, também a confusão entre rico e pecador. Ricos só são alguns, pecadores somos todos. O dinheiro não peca. O Cristianismo não pode estar a viver a angústia da sua decomposição. Essa é uma falsa questão. O Cristianismo está em franca multiplicação na prática da solidariedade como nunca se viu. A sua pluralidade de bem-fazer é a sua riqueza. Com ela cai o deus cruel e impõe-se Deus como O grande morador no coração humano, Pai amantíssimo, transcendente na imanência humana. O pluralismo cristão é bem representativo do desejo de Deus na vida de todos/as homens/mulheres. Há uma feliz insaciedade de Deus em nós. Não queremos um deus de contradições, do que custa é que deus agradece. Queremos o Deus da liberdade, de gente cheia de defeitos mas empenhada em crescer; o Deus da fé do tamanho da semente de mostarda, da esperança infinita; o Deus para Quem todos somos diferentes, mas em perfeita articulação pelo Seu Amor. Só pode haver tolerância na diferença. Margarida Azevedo Referências (1) KIRK, G.S., RAVEN, J.E., Os Filósofos Pré-Socráticos, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1982, 2ª ed., Heraclito de Éfeso, frag.211, p.195. (2) Bíblia, Novo Testamento, Os Quatro Evangelhos, Quetzal, Lisboa, 2016, 1ª ed., Trad. Francisco Lourenço, p.136. (3) ___________ Mt 5:13-14, p.74. (Ver cap. na íntegra). (4) ___________ Jo 14: 6, p. 386. (5) KARDEC, A., L´Evangile, selon le Spiritisme, Les Editions Philman, Marly-le-Roi, 2001, cap. V, Bienheureux les Affligés, Epreuves volontaires. Le vrai cilice, pp. 111-113. Trad. M. Azevedo (6) O.c., p.138.