sexta-feira, fevereiro 12, 2021

EM QUE DEVO ACREDITAR

Nesta sociedade global, com o seu mosaico religioso fortemente marcado pela pluralidade, esta questão surge qual grito de desespero, não propriamente num cenário de uma crise de fé, mas no de um actor de uma peça com dificuldade em construir a personagem. Se observarmos com atenção, temos as religiões da natureza, oriundas de África, América Latina e Ásia, se bem que os cinco continentes são todos marcados por uma forte ligação à natureza; temos depois as religiões taoistas, budistas e o Hinduísmo; temos as chamadas monoteístas, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo; temos as politeístas e as henoteístas; temos seitas baseadas em todas elas e com nuanças infinitas; temos o ecumenismo e o pluri-religiosismo; temos as temáticas de cada uma delas, teologias incidentes em determinados âmbitos tal como apocalipses, espiritualismos, etc, exotéricos e esotéricos; temos as sacrificiais e as suas opostas; temos os grupos espíritas; temos aquelas em que se grita e as outras em que se está no mais profundo silêncio; aquelas em que se dança e aquelas em que ninguém se mexe; temos as que defendem um deus vingativo e outras um amoroso; temos as que subjugam as mulheres e as que as idolatram; temos as que defendem a igualdade entre ambos os sexos; temos as que se baseiam em comprovação científica e as que desprezam a ciência, e temos outras que se ficam pelo meio-termo, etc. etc, etc. E temos tudo o mais que nem nos passa pela cabeça. E pergunta-se: Em que ficamos? Bom, o melhor será perguntar em que quer acreditar? De que é que a sua fé realmente precisa? O que é que as suas condições existenciais lhe exigem? Há que perceber que ninguém segue uma religião se esta não corresponder aos seus anseios e necessidades existenciais. Por outro lado, as respostas são sempre provisórias. Não caiamos no fundamentalismo de uma resposta definitiva. Também não há uma resposta global, universal. Não estamos todos dentro de uma caixa. Se num lado se pede chuva, noutro que ela pare; se num se pede calor, noutro pede-se frio. Também não se deve pensar religiosamente no fim dos tempos. É ridículo. Nunca deixámos de viver no fim dos tempos. Estamos permanentemente num eterno fim; todos os dias são fins dos tempos, os dias não se repetem. Além disso podemos cair para o lado a qualquer momento. É o fim, dos nossos tempos. A fé não é um delírio nem um vírus que se alojou na cabeça. Crer não é um tombo existencial de um ser que colapsou. A fé é o que nos torna a todos profetas em causa própria. Não procure adivinhos nem leitores de oráculos. Nem gente que fala com Espíritos superiores. Procure amigos, essencialmente gente capaz de deixar muita coisa por si. Acredite nisso. Acredite que os há. Se acreditar no amor tem aí a maior das religiões, só que essa ainda não existe. Ou melhor, existe, no coração daqueles que o procuram, ou que já o sentem. Quando as pessoas pregam mudanças religiosas do tipo,” a sua não presta, a minha é que é boa”, estão a entrar na intimidade do crente com Deus. Aqui, o Judaísmo tem razão. As pessoas não devem converter-se a nada, mas simplesmente seguir o Deus único, o Deus da Promessa, o Deus libertador. Por outras palavras, é a Deus que a pessoa se deve converter. As religiões são organizações transitórias como tudo é transitório neste mundo. Não existe eternidade religiosa; não existe uma fé inabalável, no sentido de estática. Existe uma permanente evolução da fé. Deixar de seguir esta ou aquela religião, deixar de ser verde e passar a cor-de-rosa não significa crescimento. Apenas que há um discurso que, para a sua vida, já se esgotou. As condições existenciais já não se satisfazem com aquele discurso. Quanto à evolução, isso é outra coisa. Porém, se a mudança significa, ingenuamente, que anda à procura da religião verdadeira, então perde o seu tempo. Estou a lembrar-me de, no final de uma conferência sobre estas temáticas, na antiga sede da Federação Espírita Portuguesa - Rua Maestro Pedro de Freitas Branco, n.º 24 – A, r/c, freguesia de S. Mamede, em Lisboa, era então presidente a Exmª Srª. D. Maria Raquel Duarte Santos - uma senhora colocou-me a seguinte questão: “Diga-me qual é a melhor religião. Já andei por uma série delas e estou bastante desiludida. Olhe, no fundo, são todas o mesmo. Estão todas erradas! Já não sei em que devo acreditar.” No alto dos meus vinte e poucos aninhos, e ao perceber que a intenção da senhora era que eu lhe desse a chave-mestra, respondi: “ O problema foi quando saiu da primeira. Quem acha que a religião em que se encontra simplesmente está errada, então é porque sente que já atingiu um patamar superior. Nesse caso, deve permanecer nela para a fazer evoluir com a sua superioridade intelectual; nunca se deve virar as costas, mas ensinar aos irmãos de grupo o que eles ignoram.” E fez-se um silêncio tumular na sala num sábado quente de Lisboa. A senhora andava há anos à procura da melhor ou da verdadeira. Erro crasso. Se se tiver a lucidez para procurar a que “for a melhor para mim” já é muito bom. Há quem nem isso perceba. As religiões são como um bolo de aniversário. A base pode ser a mesma, o que difere é a decoração. A base é estruturante para a decoração, a religião é estruturante para a sobrevivência do Homem. Podemos não gostar da base, mas a decoração é atractiva e agradável ao paladar. É o que torna o bolo singularmente delicioso. A religião é sempre necessária; a fé é o colorido cintilante, emanação de uma presença inefável, indizível e impermeável a outros inefáveis, indizíveis e impermeáveis. Enfim, tudo o que se sente e se não diz. Talvez nem seja por insuficiência linguística, mas porque não é, por natureza, expressável. Acredite em Deus. Sinta que Ele o/a possui e que você igualmente O possui. A base é a Terra. Também esta nos possui e nós a possuímos por ela. Crer é posse. É abrir-se a um sentido vivificante da vida. Os nossos dilemas existenciais baseiam-se em invenções de uma felicidade ou um bem que se desconhece e com o qual se sonha. O amargo da vida é olhar para o horizonte e querer impor-lhe limites. A existência humana planetizou-se, o ser humano transcendeu-se como nunca o tinha feito. De que horizontes falamos? Não os do ratinho dentro de uma roda a rodar, a rodar sem chegar a lado algum. A fé, e só a fé, nos pode libertar desse movimento infinito para lado nenhum. Fé em quê? Além de Deus, temos os profetas, a Lei. Mas temos a História, palco de encontro de todos eles. Temos o desconhecido que nos atrai quanto nos assusta. É na História que se manifestam os nossos dilemas existenciais, onde sentimos a tal presença, força impulsionadora, inevitavelmente, para a evolução. O pluralismo não é desencontro nem perdição. Mas um quadro colorido da convergência das cores do espectro formando qualquer coisa a que chamamos Planeta Terra. É como se Deus, através de nós e da nossa criatividade, tivesse despejado imensos baldes de tinta e feito esta disparidade. O mundo é a coisa mais real que há, se entendermos por realidade tudo o que Deus faz. O humano não tem capacidade, por si só, de criar esse colorido. Acreditemos nisso. Temos mundo. Isso significa que, para a fé, não estamos a falar de uma lenda, um mito, um sonho, uma fantasia, uma quimera, um desejo profundo do inconsciente. Pode lá estar tudo isso, mas a fé é, por natureza, um ímpeto de transcendência, uma antropologia, uma definição de outro Homem. O Messias? Judeus e Cristãos têm ambos o Messias: para uns está para vir, para outros já veio. Nada disso os distingue. Uns preparam-se para a vinda, outros procuram viver como o que já veio. O esforço de preparação é idêntico ao esforço de um cumprimento, porque o messias é o Messias. Nem o que está para vir, nem o que já veio difere na explicação da sua verdadeira natureza. Para uns é o horizonte sem fim, para outros uma arqueologia. Ambos inatingíveis, impenetráveis. Uns baseiam-se na história, manifestação de Deus como caminho para ele, outros baseiam-se nele, como manifestação de Deus para alterar a história; para uns há o desejo de ter muitos dias de vida, grande descendência e prosperidade económica, para outros há a relatividade da vida, alguns o celibato e a defesa da pobreza, outros o destino. No conjunto, ninguém sabe como é o Messias. Por isso, o modo como caminhamos para Ele é que é importante. O padre António Vieira entendeu muito bem essa questão, de tal forma que impôs-se pela defesa dos Cristãos Novos e da causa judaica. Há o Messias que lhes é comum, o planeta a sua casa, a história a trama dos seus caminhos. Tudo o mais… são filhos de Deus. É nisso que eu acredito. Leitura aconselhada: ANTÓNIO VIEIRA, Pe., Sermões Escolhidos, selecção, introdução e notas por Maria das Graças Moreira de Sá, Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, Lisboa, 1984.

quinta-feira, fevereiro 04, 2021

A SANTIDADE NA GEOGRAFIA DA FÉ

“ O que é um santo? Santo é alguém que alcançou uma remota possibilidade humana. Impossível de dizer que possibilidade é essa. Acho que tem alguma coisa a ver com a energia do amor. O contacto com essa energia resulta no exercício de uma espécie de equilíbrio no caos da existência. Um santo não dissolve o caos; se o fizesse, há muito que o mundo seria diferente. Não me parece que um santo dissolva o caos sequer para si mesmo, porque há algo de arrogante e de agressivo na noção de um homem ordenar o universo. A sua glória consiste numa espécie de equilíbrio. Desliza pela encosta como um esqui embalado. O seu trilho afaga a colina. O seu rasto é um desenho na neve no momento de um acordo particular entre vento e rocha. Há algo nele que ama tanto o mundo a ponto de se entregar às leis da gravidade e do acaso. Longe de voar com os anjos, marca com a precisão da agulha de um sismógrafo a paisagem sólida e sangrenta. A sua moradia é perigosa e finita, mas é no mundo que se sente em casa. Sabe amar as formas dos seres humanos, as formas delicadas e distorcidas do coração. É bom termos tais homens entre nós, tais pendulares monstros de amor.” L. COHEN Há muitos/as homens/mulheres que desejam ser santos/as através de sacrifícios e abstinências; há poucos/as homens/mulheres que desejam ser santos/as através de flagelações; há alguns/as homens/mulheres que desejam ser santos/as pelo muito amar. Aos primeiros falta-lhes o indispensável e vivem na precaridade; aos segundos superabundam os sacrifícios físicos e vivem nas trevas da dor constante; aos restantes transbordam os triunfos da luta pela felicidade no sacrifício do ciúme e da inveja. São os que vivem na partilha da alegria de viver. Os sacrifícios e as abstinências são próprios de quem tem alguma coisa de que não precisa, está a mais, porque quem nada tem, ou muito pouco, nada tem de que se sacrificar ou abster; quanto às flagelações, certamente são apanágio de quem já não sabe o que fazer da vida e, em desespero de causa, vive tão baralhado que sacrifica o corpo em vez da alma; mas ao amor entregam-se todos aqueles que espalham cor à sua volta e fazem dos problemas do outro os seus mesmos problemas. Estes são todos aqueles que fazem da Lei, dos profetas e de Cristo o manual de sobrevivência da salvação da alma, um código de amor sem fim. O santo não é um ET, um lunático, esgazeado e esquizofrénico, des-socializado, perdido num mundo que para ele está no avesso porque entregue à perfídia e à insolência. O mundo está farto de santos lunáticos, indivíduos a olhar desconfiados uns para os outros, tipo marcianos com cara de personagens estranhas dos filmes de ficção científica. Nem a religião é um discurso apático, nem os santos aprendizes de monstro. Se a religião não assumir que consiste num processo de humanização, que para isso não pode descurar o papel do crente enquanto homem/mulher, então continuará a confundir conceitos, práticas ascepticas libertadoras, como a oração, por exemplo, com desprezo pela natureza humana, espezinhando o crente no altar da tortura. A religião também não pode ser o prenúncio de um holocausto. Não pode promover a santidade através do desprezo pela vida valorando prioritariamente a morte, sacrificando o visível ao invisível. Quantos problemas do foro psiquiátrico isso foi trazendo aos longo dos séculos?! Gente que vivia na maior degradação, à espera que a felicidade caísse do céu, literalmente à espera da morte para atingir a saciedade, não mais que o prazer sem fim, o casamento com os anjos ou mesmo com Deus, num mundo que para eles estava carregado de impureza. Como explicar semelhante crueldade? Como explicar esta construção terrível de santos, heróis e mártires? Onde está a raiz da felicidade divina associada ao desprezo pela vida humana? A fé é uma força libertadora, e se o religioso não aprender os caminhos da liberdade está perdido. As nossas virtudes e os nossos vícios não são matéria religiosa, mas a massa de que somos feitos. O religioso deve ajudar a dirigir para Deus, mas independentemente de como cada um utiliza o fraco e o forte que há em si mesmo. Em Paulo, Gálatas 5:1, temos esta espectacularidade:”Pela liberdade Cristo nos libertou. Permanecei livres e não vos enredeis novamente num jugo de escravidão.”* Somos herdeiros de um Deus que não quer escravos. Somos herdeiros de um Deus que só Ele tem capacidade para libertar, isto é, que nos devolve a nós mesmos, na nossa condição não contra ela; esse Deus que não nos olha como um mal a abater, mas como seres que, apesar da sua condição, são portadores de uma força desmedida para Ele. A redundância linguística, “para a liberdade Cristo nos libertou, é uma forma de rejeição contra o aprisionamento religioso. As religiões impõem-se como organizações poderosas aprisionadoras e sufocadoras dos fiéis, infantilizando-os, menorizando-os, tornando-os dependentes de um super-poder: Deus. Desta forma, nada há de mais difícil que implementar a liberdade de fé. A nossa vivência é sempre religiosa, base estruturante que deve deixar a cada fiel o espaço para aprofundar as raízes do grupo religioso a que pertence. Isto implica que cada um deve sentir-se livre no contexto em que se encontra. Dito de outro modo, é no seio da religião que os fiéis devem sentir-se livres e não prisioneiros. Por outro lado, não compete à religião escolher quem se salva ou não. As assembleias religiosas não são uma massa de gente em que uns vão para o céu e outros para o inferno. As pessoas não distinguem por serem desta ou daquela religião, nem tampouco por terem religião, nem por cumprirem afincadamente os seus preceitos. Isso pode ser, e é, importante, mas não é decisivo. O valor de uma pessoa não se mede pela religião a que pertence, nem por ser mais ou menos piedosa nem mais ou menos caridosa, mas pela fé e pelo amor como forças impulsionadoras para essas mesmas, e outras, acções. O que define o crente é a sua natureza interior de amante, força mística que, antes de chegar a Deus, pensa no Homem. O crente tem que ser um filantropo desinteressado. Vão longe os tempos de Deus e depois o mundo. Estamos no mundo como caminho para Deus porque Deus também vem ao mundo, é nele que se manifesta. Só na liberdade para acções que não são pedidas, exigidas, comandadas, dirigidas de modo algum, aliciadas com o céu eterno que a fé é realmente fé. Fora disso temos a intolerância e o totalitarismo, e é contra o pensamento totalitário que Paulo, em Gálatas, nos adverte em 5: 13-16: Pois vós fostes chamados para a liberdade, irmãos. Só que não se trata da liberdade como via aberta para a carne; mas antes servi-vos uns aos outros através do amor. Pois toda a lei fica cumprida numa palavra, a saber: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Se vos morderdes e devorardes uns aos outros, tende cuidado para que não sejais aniquilados uns pelos outros.”* É o indizível que se manifesta sempre, é nele que cada um se ultrapassa e, munido de uma força que não domina, olha para o outro e percebe que, sem que ele lhe diga alguma coisa, sabe que ele precisa de si. É esse o santo, não pela pureza, mas por, ainda que ao delével, saber que é necessário onde o mais comum dos mortais não vê porque não está presente. Ora o santo é o que nunca está ausente. As caridades encarneiradas, estéreis quão frívolas, fora das quais não há salvação, dizem os insensatos, são caminho para a salvação e para o banquete com um deus avaro e muito caro; contrariamente, no amor incondicional ao próximo, a caridade não existe, é simplesmente Amor e visa acabar de vez com os necessitados cá neste mundo porque é uma prática lúcida. O amor sabe que o banquete no Reino de Deus não é redutível a um saco de víveres a uma família pobre. Isso é apenas o nosso dever de servos inúteis, aqueles que fazem apenas o que deve ser feito. Só se chega ao banquete no Reino de Deus mediante o excesso de amor, o desmedido e o insaciável amor. Emerge no humano crente, mais que na política, a fuga à tirania religiosa, a pior de todas. Nela, os crentes são levados a acreditar no que não existe, a sacralidade da religião e, o que é pior, por ordem directa de Deus. Acreditam em santinhos milagreiros, com ligação directa a Deus, privilegiados, a quem Deus deu super-poderes porque feitos de uma carne diferente da nossa. Mas a carne humana é toda a mesma e não é símbolo de pecado nem de virtude para ninguém. A carne não é pecado, nem o corpo símbolo de perdição, nem o erotismo anula a fé, nem o corpo se esgota na sexualidade. Tudo é muito mais do que isso, porque tudo é uma transcendência na imanência de um Deus superior que se passeia dentro de nós. Deus também quer e participa nas nossas sensações. Precisamos da religião para viver, não para sobreviver. Ela deve estar ao nosso serviço, congregar-nos, mas jamais estará ao serviço de Deus. Somos nós que precisamos da religião, Deus não precisa das religiões para nada, nem os Espíritos superiores. O acto litúrgico, o ritual, os paramentos, enfim, não servem a Deus, mas ao crente, como meio para chegar mais perto de um estado metafísico: remontar a um tempo longínquo ou uma forma de tornar presente um acontecimento muito antigo; estar lá, vivenciá-lo, fundir-se com ele. Só no religioso os seres humanos conseguem atingir este êxtase, e só a religião os distingue como seres humanos. Entrar no âmbito da religião é, por isso, entrar na liberdade em que cada crente comunica com algo que vem até ele trazendo-lhe a esperança da felicidade. Quanto aos cristãos, o que os define não é a referência a uma igreja qualquer, mas a Jesus, porque nenhuma igreja representa Jesus e porque Jesus, o Cristo, é irrepresentável, inclassificável. Uma igreja que representasse Jesus seria uma tirania, pois arvorar-se-ia como a detentora do sentido dos seus actos e palavras, bem como de todas as suas vivências. Ora, entre os cristãos, não pode haver dominadores nem dominados, mas uma comunidade de irmãos/ãs unidos/as pelo amor numa procura constante de uma vivência, a saber, o amor de Cristo. Cada uma pode ser um caminho. Ora o caminho pressupõe um caminhar, caminhar constante para um horizonte, mas há um nunca mais lá chegar porque nem o horizonte esgota o caminho, nem o caminho atinge o horizonte. O santo, não é um milagreiro, tal como Jesus não o foi, nem nenhum dos profetas. Urge descer ao humano e percebê-lo como um ser naturalmente cheio de potencialidades de que ele próprio é desconhecedor. O que sabemos nós de nós mesmos? Quem somos para nós? Ansioso por encontrar alguma estabilidade espiritual, paz na alma e paz na vida, o santo é quem domina essas matérias, não por as compreender, mas por fazer delas o real sentido da sua vida, não num ímpeto mágico como quem tira coelhos da cartola, mas através de uma fé libertadora e emancipada. O santo é aquele que toca as delicadas pétalas de uma flor, vendo Deus todo aí, e transcende-se na magnitude desse grão de poeira do universo. Precisa-se com urgência que os cultos cristãos sejam de reconciliação, pois só esta lhes confere o carácter de diálogo com a sua mesma transcendência. Religião, fé, santidade já é tempo que de identificarem. Para quê? Para as perdermos, libertarmo-nos delas, anularmo-las como desnecessárias, passarmo-las aos arquivos das bibliotecas na secção de arqueologia. Com o Cristo do judeu Paulo somos levados à grande interrogação, que é mais do que isso, é uma máxima: Já somos livres? Ou, pelo menos, já nos sentimos no caminho para a liberdade? Já não somos escravos, já saímos do Egipto? Que caminhos são os da nossa alma? Que geografia trazemos dentro de nós? Que montanhas e que mares? Que animal existe dentro de nós e no qual Deus se manifesta? Que noção de outro é que transportamos? Que outro representamos, olhamos, queremos conhecer? A que esse outro é que nos dirigimos? Que parte de nós deseja o outro? O que é desejar? Para quê a santidade? Para irmos para o outro mundo? Mas o outro mundo é aqui. É fácil, basta tentar. Cantemos com John Lennon. É uma saída. “Imagine there´s no haven It´s easy if you try No hell below us Above us only sky Imagine all the people Living for today Imagine there´s no countries It isn´t hard to do Nothing to kill or die for And no religion too.” Margarida Azevedo ______________________________________________________________________ Bibliografia citada COHEN, L., Poemas e Canções, I, Relógio D´Água, Lisboa, 2019, Belos Vencidos, O que é um Santo, p.233. * Bíblia, Novo Testamento, Apóstolos, Epístolas, Apocalipse, Vol.II, Lisboa, Quetzal Editores, 2017. Trad. de Frederico Lourenço,