quinta-feira, novembro 25, 2010

É LAMENTÁVEL !






“O que é mais preocupante, não é o grito dos violentos, dos corruptos, dos desonestos ou dos sem ética. O que é mais preocupante é o silêncio dos que são bons.”

Martin Luther King


Todos nós aprendemos, penso, que a Doutrina Espírita assenta num conjunto de pressupostos entre os quais a modificação intrínseca do ser humano. Isto significa que, para medrar na sociedade e impor-se como resposta ao homem enquanto ser de problema, ela pressupõe um empenho grandioso por parte daqueles que têm a nobre tarefa de a transmitir aos que a não conhecem.
Desta forma, e foi assim que comecei, havia que trabalhar, estudar, aprender a orar, meditar em espírito de total gratuitidade por respeito por si mesmo, amor ao próximo, à vida e a Deus. Não estava em causa a mediunidade, nunca esteve. O importante era a nossa modificação, tudo o mais vinha por acréscimo. O trabalho na Casa Espírita não estava dependente de médiuns mas de pessoas empenhadas no bem-fazer, no nobre auxílio ao outro, na mais fiel divulgação da Doutrina, tendo sempre em conta as limitações de cada um uma vez que, como em qualquer outro lugar, há que saber usar as apetências de cada pessoa, ajudá-la a desenvolvê-las, pois só assim se chega a bom porto.
Sou do tempo, e sem querer ser saudosista, em que havia um entendido na doutrina que ensinava praticamente o Centro inteiro. Era humilde, caridoso, amigo. Era presente, bom ouvinte, e tinha todos os requisitos de um bom orador: não sabia pregar, simplesmente falava com o coração ao coração. Era uma conversa que ia de acordo ao que se precisava de ouvir, mas sem subterfúgios cínicos, pomposos ou desejo de protagonismos, como a gora se chama à vaidade. Sim, de facto já não há vaidosos nem vaidade, há apenas protagonistas e protagonismo. E nesta leva deixe-me que lhe diga, amigo Leitor, também já não há falta de amor, há falta de tempo; deixou de haver egoísmo ou egocentrismo, há somente a procura do seu eu interior, porque vivemos numa selva à procura de identidade; a violência e a agressividade crescentes e assustadoras não são falta de educação cívica, mas um estado de nervosismo, uma espécie de nervos em franja de quem procura justiça social. Enfim, voltando ao nosso orador simpático e competente, ele era o rosto do Centro, a autoridade afectiva e sábia com a qual todos aprendiam.
Quando comecei a fazer parte de um grupo de trabalho mediúnico, aprendi que as regras fundamentais eram o recolhimento e a oração, o silêncio e a paz interiores e que ninguém, mas ninguém mesmo, era superior a ninguém, fosse trabalhador ou necessitado. Aprendi, aliás, que tudo é tão efémero como a fragilidade das nossas estruturas afectivas ou cognoscitivas, que o aprendizado é permanente como permanente é a luta pela nossa modificação. Verifiquei que para além do estudo e do aprendizado, essa tal modificação é o ponto mais importante, caso contrário o que dizemos é como o sino que tine e palavras leva-as o vento.
Aprendi que a palavra em qualquer doutrina tem que ser acompanhada de verdade e amor. Nós não somos os únicos a defendê-lo, nem uma doutrina é mais ou menos válida por dizer coisas diferentes. A diferença e a valor de uma doutrina está no modo como diz e como age. Erguer-se enquanto corpus doutrinário é fácil, difícil é manter a sua integridade por entre solicitações que, não raro, com pele de cordeiro são lobos vorazes. Estruturante do pensamento, a palavra é representativa do nosso registo afectivo interior, da nossa vivência ética e axiológica; completamente oca e vã se proferida de forma mecanizada o que, de som vivificante, torna-se castradora de expectativas e projectos.
Hoje, porém, vão longe estes tempos. Parece que foi há séculos que as coisas eram assim. Aquilo a que assisto nos Centros Espíritas é a um chorrilho de ignorância, a cursos, chamados assim com toda a pompa, levados a efeito por gente que não sabe rigorosamente nada da Doutrina, ou muito mas mesmo muito pouco, baseados numa literatura que não sabem interpretar e, por isso, fora de toda a crítica porque não há conhecimentos para a fazer e consequentemente a plasticidade para o permitir, onde tudo é aceite sem passar pelo crivo da interrogação. Numa “aula”, quem colocar uma questão um pouco fora do suposto ambiente fraterno está mal intuído, está a pensar de forma diferente e perigosa, é um indivíduo a afastar.
As perseguições dentro dos Centros Espíritas são uma constante, assim como a maledicência e a desconfiança, tornando a Doutrina num discurso chato e incoerente, ultrapassado, socialmente descontextualizado, perdido e à procura de um lugar entre as demais doutrinas.
Nos tempos que correm, cada vez mais se trabalha em termos ecuménicos, mas a maioria dos espíritas não sabe o que isso significa, nem quer saber. Nos meus tempos áureos, tinha encontros com a Teosofia, grupos protestantes, organizações espiritualistas emergentes, budistas e hindus, etc… Ia com duas ou três pessoas do Centro, convivíamos, trocávamos impressões. Fazíamos amigos. Saíamos sempre mais fortalecidos e mais empenhados.
Completamente isolados dos outros parceiros de religião, os espíritas nem sabem do que por aí se faz, quais as preocupações mais agudas em debate nas outras doutrinas, preocupações essas que no fundo são de todos, as novidades em termos de interpretações quer do Novo Testamento quer do Antigo, de quem somos herdeiros. Nas reuniões ecuménicas sou a única espírita convidada a participar nos estudos bíblicos e nos debates, simpósios e congressos.
O ecumenismo não é a absorção da doutrina do outro por mim, o fundir-se e perder a identidade ideológica. Muito pelo contrário. Ele é o encontro vivificador de quem já atingiu o ponto de que precisa e tem consciência de que o seu progresso e crescimento passa pelo diálogo com a diferença. O ecumenismo exige o amadurecimento naquilo que cada um defende, quais os seus propósitos, a fim de saber situar-se na sociedade. A descoberta da minha doutrina enquanto diferente da do outro e igualmente portadora de uma resposta para a problemática do ser humano, tão válida uma quanto as outras, é tarefa ecuménica. Há que perceber que por melhor que a minha doutrina me pareça, ela não é a única, há mais. Todas são igualmente válidas na medida em que pretendem dirigir o homem para Deus. E é precisamente este discurso que os espíritas não aceitam. Pretendem ser os únicos, os detentores da verdade suprema. Até poderiam ser, como qualquer outra doutrina, não fosse o excesso de apego às coisas materiais que ainda caracteriza o Homem. Digo o homem em geral, não os Protestantes, os Católicos, os Hindus, os Teósofos… e os Espíritas.
Excessivamente preocupados com a mediunidade, mas nada empenhados em educá-la, os espíritas giram em torno dos mesmos temas, e das mesmas abordagens, numa bibliografia que se repete, resultado da facilidade com que as Entidades menos escrupulosas conseguem enganá-los, intuindo-lhes sentidos falsos não apenas ao vasto léxico doutrinário, mas também à vastíssima rede comportamental que nos caracteriza enquanto seres humanos. Qualquer um diz o que lhe parece, dá a sua opinião como sendo uma verdade universal, sem respeito pela Doutrina, pelo outro, pelo Centro, por si próprio, por Deus, enfim. Ao penetrarem nos Centros onde encontram terreno fértil, as Entidades sofredoras, levianas e maléficas, cujos potenciais destruidores são enormes, ao invés de serem esclarecidas são recebidas como seres de luz só porque falam de amor ou descrevem alguns episódios do que se passa no além. Toda a gente acredita, toda a gente aceita.
A continuar assim, os Centros estão a caminhar para o colapso, a gerar uma autêntica epidemia espiritual, pois estão a atrair a si e ao mundo Entidades cada vez mais ignorantes que, em vez de virem aprender são elas que ditam as regras. A humildade desapareceu, a vaidade tomou conta de tudo e de todos. Os trabalhadores ludibriam-se uns aos outros e é vulgar ouvir, depois de uma palestra medíocre, alguém dizer ao orador, geralmente um amigalhaço, “foi uma conferência excelente.”
Como exemplo de abordagens, já ouvi coisas do género:
- os católicos acreditam num Deus morto (ignoram o que significa a Crucificação para um católico);
- os materialistas são pessoas perigosas (referem-se assim aos não espíritas);
João Evangelista era o"disciplo amado" porque "era amoroso" e "repousava a cabeça no colo do Mestre".

Alguns vão pregar em bares, em ambientes de ruído, alcóol e drogas, sob o pretexto de irem levar a boa-nova aos ambientes degradados. Armados em gurus, mas de um modo geral vestidos de roupas escuras, lá vão eles felizes da vida pregar a doutrina aos infelizes.
Desta forma, os Centros mais parecem lugares em que tudo está em estado de sítio, cada um a pregar para o seu lado, onde cada um diz o que lhe vem à cabeça e se alguém tem a pouca sorte de, ainda que muito timidamente e com o máximo cuidado, dizer que isso não está bem, a resposta não se faz esperar: “ O Centro não tem quaisquer responsabilidades no que os oradores dizem.” E assim aprendi que se o orador exortar a assistência aos comportamentos mais disparatados, se disser que Jesus não teve religião, que os redactores do Novo Testamento eram apóstolos directos de Jesus, ou que a Páscoa é a festa dos ovos e dos coelhinhos brancos, está tudo bem.
É importante referir ainda que esses oradores não dão uma palestra de tarde em tarde, mas são os trabalhadores habituais. Para o Centro são os grandes médiuns passistas, para os que lá vão pela primeira vez são gente muito esquisita. Para quem os observa com atenção são os imitadores de outros médiuns, os que, embora não o dizendo expressamente, recebem mensagens de Entidades muito conceituadas fazendo-se passar por enviados, uma espécie de profetas domésticos. E o circo está armado. O espectáculo montado e a representação apurada. Ainda foi há poucos meses que vi um orador tremer as mãos, modificar a voz, encolher-se todo, gesticular, simulando estar a receber o discurso de uma dessas Entidades. No entanto, perdidos no espalhafato, ou porque simplesmente não pensam, parece que ninguém se apercebeu ou não quis aperceber-se, de que não estava ali entidade nenhuma, era teatro.
Em suma, a Doutrina não é um discurso alucinado proferido em ambiente carnavalesco; não é uma colagem de autores em que, em power point, fazem colagens de citações que não sabem interpretar.
A Doutrina é respeito, oração, trabalho e muito amor. Sem amor perde-se, e perdida perde cada um de per si e toda a Humanidade.

Margarida Azevedo